São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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As culturas sem choque de Franz Boas

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Pela primeira vez vem a lume no Brasil um livro de Franz Boas (1858-1942), coletânea organizada por Celso Castro, que escreveu uma límpida e inteligente apresentação sobre o simpático e progressista antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, professor de alunos brilhantes como Alfred Kroeber, Edward Sapir, Ruth Benedict, Margaret Mead e Meville Herskovitz.
Neste livro os estudantes e professores de antropologia poderão tomar conhecimento da importante distinção entre raça e cultura, por meio do conceito de relativismo cultural, que imortalizou Franz Boas na história das ciências sociais. Esse conceito de relativismo cultural merece ser posto em relevo e sempre enaltecido porque demoliu o preconceito que postulava a existência de culturas inferiores e culturas superiores.
Trata-se de um ardil supostamente de caráter científico, mas inteiramente falso que terá seríssimas implicações no mundo da política e das concepções sobre a sociedade humana.
O detalhe significativo é que quase simultaneamente a esses textos de Franz Boas estava subindo a maré nazifascista na Alemanha, que traz embutida uma concepção de cultura antípoda do conceito de relativismo cultural. Os textos de Franz Boas, de inequívoca dimensão ecumênica, devem ser lidos e apreciados tendo como contraposição a loucura etnocêntrica hitleriana. Que o leitor atente para o fato de que a expansão do capitalismo a partir do século 16 teve como suporte ideológico a falácia da superioridade de determinadas culturas sobre as outras. Por outro lado, Boas critica o racismo nos EUA. Um racismo que acaba por atribuir causas raciais à subalterna posição social e econômica do negro, sobretudo do negro que foi explorado nas "plantations" do sul dos Estados Unidos.

Boas e Freyre
Concebida no limiar do século 20, a tese principal de Franz Boas é de que a mistura tem efeito favorável sobre a raça. Isso significa dizer que a miscigenação opera milagres. Destarte, é preciso lembrar que esses e outros textos do famoso antropólogo alemão, professor brilhante da Universidade Columbia, exerceram influência decisiva na mentalização de "Casa-Grande e Senzala" (1933), de Gilberto Freyre, o qual dizia que seu mestre, Franz Boas, era entusiasta do procedimento mouro, ou seja, a cópula inter-racial sem distinção de raça.
O conceito de relativismo cultural, além de fonte da atual voga em torno do multiculturalismo na antropologia, serve para mostrar quão infundada é a idéia de que um único tipo de desenvolvimento deveria nos conduzir necessariamente a um padrão de cultura europeu ou norte-americano.
Ao contrário de muitos badamecos por aí, que continuam usando a palavra "folclore" em sentido pejorativo, Franz Boas tinha o maior apreço pela "ciência do povo". Ele foi um dos patronos da Sociedade Americana do Folclore. Sem o folclore, lembrava nosso Luis da Câmara Cascudo, não existiria "The Mind of Primitive Man", o grande livro de Boas, publicado em 1938.
Nesta coletânea muito bem cuidada, aparece Boas como antropólogo que sabia auscultar a sociedade, conforme se verifica pelos seus notáveis textos sobre linguagem e etnologia.
Infelizmente ele não conheceu o Brasil. Coincidência. Quem veio para cá foi o francês Lévi-Strauss, que por sinal estava almoçando na Columbia, sentado ao lado de Franz Boas, quando este morreu de um ataque cardíaco aos 82 anos.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela).


Antropologia Cultural
110 págs., R$ 19,00 de Franz Boas. Tradução de Celso Castro. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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