São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006 |
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Comunidades imaginadas
Algo historicamente novo é o acontecimento da bela jogada como fascinação estética central nas modalidades de esporte de equipe: a epifania, a manifestação de uma coreografia e de uma forma corporizadas
A primeira tem como meta levar a jogada a uma finalização bem-sucedida e está numa situação de neguentropia (princípio estrutural); a segunda, que não está com a posse da bola, tem como meta impedir que a outra equipe seja bem-sucedida na sua jogada e está numa situação de entropia (princípio do caos). Ambos os lados confiam quase exclusivamente em jogadas treinadas (programas) para ganhos estruturais e empecilhos estruturais, cujo eventual emprego depende, sobretudo, de pressuposições a respeito da provável jogada seguinte da outra equipe. Tal como o xadrez, o futebol americano, o basquete e o handebol são lutas estratégicas, nas quais se defrontam diferentes sistemas de jogo. Em contraste, o futebol se deixa descrever de forma mais adequada como uma combinação de intenções e de formas da contingência (quer dizer: incerteza), sendo que a diferenciação entre intenção e contingência não é função da posse da bola. Porque a contingência não se refere apenas à meta da equipe que não está com a posse da bola -que é a de impedir que se concretize uma jogada de ataque. Ela também inclui sempre os limites do controle da bola por parte da equipe que está com sua posse. Dessa forma, no futebol, a passagem do ataque para a defesa se torna fluida, o que significa que ele oferece mais espaço para a intuição e para as reações rápidas de mudança de tática do que outras modalidades esportivas, que permitem o toque da bola com a mão. Por outro lado, no futebol a possibilidade de implementação direta de programas é tão limitada que só podem se tornar efetivos enquanto sugestões iniciais para os jogadores. Também seria possível descrever o mesmo contraste como oposição entre uma fascinação geométrica (no caso do basquete ou do futebol americano) e um gesto existencialista (no caso do futebol). Tais diferenciações esclarecem por que a dimensão da observação do estilo -a observação das continuidades da forma que se impõem e sobressaem sem programas- é mais próxima para o espectador de futebol do que para um de basquete, de futebol americano e, evidentemente, de xadrez, em que o embate entre os sistemas de jogo está em primeiro plano. Aliás, pelo fato de os tipos de estilo não poderem ser identificados tão nitidamente quanto os programas ou sistemas nem poderem ser facilmente adjudicados a determinados inventores, não surpreende que os tipos de estilo, uma vez observados, possam ser relacionados com conceitos de identidade relativamente vagos, como os de caracteres nacionais. Faz parte da identidade cultural do futebol que suas variantes e transformações sejam interpretadas de forma quase obsessiva como sintomas de realidades supostamente "mais profundas" ou "mais significativas". Saber se os resultados de tais interpretações podem ser "adequados" -e sob quais condições- é uma questão totalmente diferente. Maturidade Em 1930, a imprensa de Montevidéu celebrava com verdadeira magnanimidade a vitória do escrete uruguaio contra a Argentina, na primeira final mundial, como prova da maturidade alcançada pelas civilizações sul-americanas. Naturalmente, os jornalistas esportivos da Itália de Mussolini viam os triunfos obtidos pela "squadra azzurra" em 1934 e 1938 como provas cabais da superioridade do fascismo. Uma prova antiga e eminente de uma interpretação culturalista provém do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), a cujo livro fundamental "Casa Grande e Senzala" remonta a convicção de que a própria cultura estaria marcada pela dominância de elementos africanos (mais exatamente, na terminologia de Freyre, elementos "mulatos"). Depois de ter sido eliminada nas oitavas-de-final durante as duas primeiras Copas do Mundo, a seleção brasileira conseguiu, na Copa de 1938, na França, vitórias difíceis, mas muito elogiadas, contra a Polônia e contra a seleção vice-campeã da copa anterior, a Tchecoslováquia, vitórias essas que fizeram surgir, no Brasil, as primeiras manifestações coletivas de euforia futebolística. Questionado por um repórter do "Diário de Pernambuco" a respeito de sua reação diante dos jogos ganhos (aos quais se seguiu uma derrota diante da Itália), Freyre respondeu que essas vitórias seriam o prêmio pela coragem de ter enviado para uma Copa do Mundo, pela primeira vez, um escrete não exclusivamente composto de jogadores brancos. "O estilo mulato, afro-brasileiro no foot-ball" seria "uma forma de dança dionisíaca", que ele mais tarde denominou "expressão singular de uma formação social democrática" no Brasil. Aquilo que Freyre denominou "uma forma de dança dionisíaca" era o que os observadores europeus de hoje admiram e ao mesmo tempo criticam como "namoro com a bola" ou "inspiração individual" dos jogadores brasileiros. As interpretações do futebol feitas nos nossos dias não foram muito mais longe. Se formos politicamente corretos e riscarmos a palavra "mulato", que hoje em dia tem certo ar de racismo, a interpretação de Freyre corresponde àquela predominante neste início do século 21, que confia no paradigma da "expressão coletiva" para explicar a predominância mundial permanente do futebol brasileiro, algo que em 1938 era inimaginável e que só começou a se esboçar em 1958. Se quisermos aceitar tal tese, esse ponto de vista não é suficiente para explicar a diferença entre o potencial de 1938 e a sua atualização no presente. Mas será que a história do futebol é incapaz de fornecer pontos de vista alternativos para a explicação dos evidentes estilos nacionais de jogo? Toda resposta a essa pergunta que tenha a pretensão de ser levada a sério tem que começar com a constatação decepcionante de que, devido à falta de material iconográfico, nunca será possível descrever, nem de forma aproximada, as primeiras formas de futebol que causaram "frisson" mundo afora nos primórdios do século 20. Mas o que os textos referentes àqueles acontecimentos nos transmitem permite-nos conjecturar que, mais do que os caracteres nacionais, foram o modelo, a influência e, sobretudo, o sucesso de determinados jogadores, determinados técnicos e suas equipes os fatores decisivos na configuração de estilos nacionais de jogar futebol, os quais, mais tarde -tal como ocorreu com as tradições das oficinas na história das artes plásticas-, se configuraram e desenvolveram como continuidades formais. Áustria, Hungria Logo, as intervenções programáticas tiveram um papel mais importante no surgimento dos diferentes estilos de futebol do que normalmente se supõe. Mas, no fim das contas, só se tornam eficazes quando feitas sob medida para jogadores especialmente talentosos. O exemplo mais antigo dessa espécie de gênese estilística que ainda podemos apreender seria o chamado "escrete maravilha" austríaco do início da década de 30, que literalmente varreu dos campos com humilhantes diferenças de gols todas as seleções européias de renome, exceto a inglesa, então ainda considerada invencível. Hugo Meisl, o técnico austríaco, conseguira inventar e cultivar em volta do célere artista da bola Mathias Sindelar (comparado à leveza de uma folha de papel) um estilo coletivo com o qual foi difícil competir em nível internacional durante um breve período. O futebol húngaro também angariou uma reputação de jogo tecnicamente bem cuidado, sem inicialmente chegar aos níveis de absoluta proeminência internacional do "escrete maravilha". No intervalo entre as Copas de 1950 e 1954, a partir da sinergia de uma série de jogadores muito talentosos em volta de Ferenc Puskas e Sandor Kocsis e dos novos métodos do técnico (e ministro dos Esportes) Gusztáv Sebes -que salientava a capacidade física dos esportistas-, surgiu uma equipe que foi além da fama internacional do "escrete maravilha" ao vencer a Inglaterra por 6 a 3 [em Wembley, em 1953], infligindo-lhe a primeira derrota em casa. Mesmo assim, circunstâncias que mereceram comentários mais amplos do que qualquer outro acontecimento da história dos esportes fizeram com que a seleção alemã, vista inicialmente como "outsider", vencesse a seleção húngara, favorita, na final de 1954. Mais notáveis do que essa vitória e essa derrota foram suas conseqüências sobre os estilos nacionais do futebol húngaro e do alemão. Após esse traumático 4 de julho de 1954 (e depois da fuga dos mais proeminentes jogadores húngaros, quando do fracasso da revolução anti-soviética na Hungria, em 56), nunca mais houve uma seleção húngara digna de nota. Por outro lado, teve início na mesma data a tradição alemã desde então continuamente confirmada e reforçada de formar seleções muito bem-sucedidas, baseadas na conjunção entre prontidão para o sacrifício e estratégias sólidas. Essa imagem do futebol alemão não tinha nenhuma pré-história que conduzisse à Copa de 1954, e ela pouco mudou na sua apreciação internacional devido ao jogo, mais brilhante do que laborioso, da seleção do começo da década de 70. Os dois mais recentes e notáveis estilos futebolísticos nacionais são o "catenaccio" italiano e o "futebol total" dos holandeses. As suas respectivas circunstâncias de origem confirmam a hipótese de que as formas de jogar capazes de criar tradições surgem, sobretudo, de uma cooperação bem-sucedida entre excelentes jogadores e a percepção planejadora de técnicos flexíveis. A ambição do técnico argentino Helenio Herrera, de aperfeiçoar o sistema de segurança do assim chamado "ferrolho suíço" para o time da Inter de Milão, inspirou-se nos anos 60 e enriqueceu-se com as variantes de ataque graças às capacidades psíquicas e físicas do defensor Facchetti, capaz de assumir simultaneamente o papel de defensor e de ponta. A base do novo estilo holandês foi, pouco tempo depois, a idéia do técnico do Ajax, Rinus Michels, de minimizar o espaço para o ataque do adversário, mediante uma corrente de quatro jogadores que avançam e retrocedem, segundo o caso, maximizando assim também o espaço para o próprio ataque. A implementação dessa idéia foi possível, sobretudo, graças às condições técnicas e às qualidades de liderança do capitão Johan Cruyff. Fim dos espaços vazios Devido à convergência de sua influência internacional, os estilos futebolísticos nacionais da Holanda e da Itália configuraram um novo estilo de época, que confronta os jogadores de todas as posições com exigências de desempenho físico praticamente inimagináveis há um quarto de século. Desde que (sob influência italiana) os jogadores da defesa apareceram no ataque e (sob influência holandesa) os atacantes assumiram tarefas de defesa, as chances de sucesso de dribles prolongados e de passes a longa distância ficaram reduzidas a quase zero. Porque os famosos "espaços vazios", que antes eram a terra prometida das táticas de futebol, quase não mais existem. Na recepção de cada passe, o jogador de hoje se vê confrontado com pelo menos um adversário, que aumenta a contingência do domínio da bola e o torna mais precário e difícil. Mas, embora esse novo estilo não possa ser identificado como um estilo nacional, ele levou à superioridade de um estilo tradicionalmente identificado como "nacional" a dimensões nunca antes imaginadas. Pois nunca antes -nem mesmo na década de Garrincha, Didi e Pelé- a superioridade do futebol brasileiro e de sua seleção foi tão gritante como hoje. A única razão que poderia impedir o Brasil de se tornar hexacampeão em 2006 é o potencial problemático criado às vezes por um excesso de jogadores de nível mundial. E por que há hoje em dia (ainda) mais jogadores brasileiros de nível mundial do que nunca? Porque as características nacionais fundamentais do futebol brasileiro -ou seja, a perfeição técnica, a capacidade de mudar de ritmo e a flexibilidade individual- têm, neste novo estilo de época do futebol, uma posição central e um maior potencial de funcionalidade do que no futebol tradicional -o dos longos flancos e dos passes em profundidade. A posição excepcional de Ronaldinho Gaúcho é hoje em dia a corporificação mais evidente dessa situação fundamentalmente diferente. E mesmo aquilo que os técnicos europeus teriam criticado antigamente -isto é, que Ronaldinho Gaúcho não se dirige sempre e imediatamente em direção ao gol adversário- contribui hoje para sua superioridade. Saber se as virtudes do futebol brasileiro, cujo valor de mercado cresceu imensamente nos últimos tempos, têm realmente algo a ver com a componente africana dessa cultura, como Gilberto Freyre sugeriu na alvorada histórica da glória futebolística nacional, constitui outro problema. Em vista da afinidade praticamente inegável entre os estilos futebolísticos do Brasil e da África, esse problema nos conduz inevitavelmente para as proximidades de uma zona intelectualmente tabu, na qual -por bons motivos, por motivos quase políticos- eu não gostaria de tocar aqui. HANS ULRICH GUMBRECHT é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de "Modernização dos Sentidos" (ed. 34). Texto Anterior: + arte: A porta sublime Próximo Texto: A civilização pela bola Índice |
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