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A civilização pela bola
Simbiose
entre tática e improviso fez a seleção evoluir
mais que
a sociedade
brasileira
desde os anos 80
TALES A.M. AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Após chegar ao ápice
de seu futebol e de
uma era no futebol
mundial, com o terceiro gol contra a
Argentina -que, com Maradona e tudo, estava destruída em
campo-, a seleção brasileira de
1982 pareceu relaxar, em um
movimento também muito típico do futebol brasileiro.
No fim do jogo, já com Maradona expulso por nítido desespero, e com o grande volante
Batista em campo em uma saída de bola despretensiosa na
intermediária do Brasil, o ponta Éder, que não deveria estar
ali, tem a bola roubada de forma surpreendente por Tarantini, que toca para Ramón Diaz,
que acerta um chute forte da
entrada da área desprotegida
do Brasil.
O gol era inútil e, aparentemente, totalmente inócuo.
Sintoma
Não fosse o fato de o segundo
gol da Itália, na trágica partida
seguinte que nos desclassificou, ocorrer por uma falha na
saída de bola -o famoso passe
errado de Cerezo- que apanhou o Brasil no contrapé, no
mesmo ponto do campo em
que teve início o gol argentino,
aquele gol de Ramón Diaz não
teria nenhum significado.
Mas, talvez, ele faça parte de
um mesmo sintoma difícil cuja
identificação tanto custou para
o futebol brasileiro e para a história do próprio esporte.
Como se sabe, na partida entre Brasil e Itália se jogou o destino histórico do futebol, ao
menos nos 20 anos que se seguiram. Tratou-se de uma luta
muito ampla entre a dedicação
tática estrita e marcação cerrada, tendendo a tomar todo o
campo, e o investimento libidinal na técnica, na fantasia qualificada e no amor irrestrito pelo gol. Uma vez definidos os horizontes ideológicos com a vitória italiana e a fantasia mestra
que regularia o futuro do jogo,
só restava ao Brasil uma longa e
penosa revisão dos fundamentos táticos e técnicos de sua
própria concepção do esporte.
Voltemos ao pomo da discórdia. O gol do passe errado de
Cerezo nas costas de Falcão,
que não sabia se podia voltar
para alcançar a bola ou se a deixaria passar para Júnior, deixando-a enfim para a sombra
invisível de Rossi -assim como
o gol da Argentina na partida
anterior e também, de outros
modos, os demais dois gols italianos-, insistia sempre em
uma mesma fragilidade, no time e no gramado: a cabeça da
área, a zona indefinida e pouco
nobre, para o futebol brasileiro,
entre a zaga e a primeira bola
do meio de campo.
O estranho passe de Cerezo,
sem objeto útil para o time e
que tomou para si todos os
muitos sentidos daquela partida, indicava assim o lugar de
um vazio, o vetor de uma força
que dava no nada, o xis de um
ponto negativo, em que nosso
futebol, tão autoconsciente,
gostava de se perder.
Esforço dialético
De fato nossos volantes clássicos, de Zito a Clodoaldo, de
Gérson a Falcão, nunca se pensaram como apenas destruidores, como seria a função tática
essencial para aquela posição a
partir de 1982. E, ainda menos,
o próprio time não pensava que
deveria contribuir inteiro para
a plena realização daquela função, introjetando de forma impensável para nossas aspirações lúdicas e estéticas uma
forte estrutura retentiva em
seu espírito e corpo.
O movimento histórico nessa
direção foi longo e trabalhoso,
uma espécie de trabalho dialético do sintoma que insistiu no
auge de nosso futebol ideal: a
seleção do superfutebol de 82.
Ao que parece, apesar da regressão manhosa que passou a
negar aquela seleção no baixo
mundo do futebol brasileiro,
havia uma falha no coração do
diamante.
Os três zagueiros de 1990, os
três volantes e a retranca, muito retentiva, de 1994, a tentativa de descongelamento de 1998
e, finalmente, o equilíbrio relativamente fluido entre a defesa
muito forte e o ataque perigoso
de 2002 representam o longo
trabalho de assimilação e de
nomeação daquele vazio, que o
futebol brasileiro não podia se
dar ao luxo de ignorar.
Síntese
O sintoma, desse modo, é
também um desconhecido, que
aparece como derrota e cujo
trabalho histórico é o seu próprio preenchimento.
Acredito que essa história de
nosso futebol no último quarto
de século tenha seus dois pólos
de solução, um no plano da
grande arte e outro no da competitividade tática, nos times
de Telê Santana de 1982 e de
Luiz Felipe Scolari de 2002.
Enquanto o ponto de fuga
negativo, a invasão do recalque
como forma de paralisação retentiva, teria encontrado seu
ápice no time campeão de 1994,
de Carlos Alberto Parreira, com
um traumatizado 0 a 0 com a
famigerada Itália. A seleção
atual, talvez, venha a ser uma
síntese verdadeira desses momentos de nosso futebol.
Sem paralelo social
Por outro lado, se o recuo civilizatório na direção obsessiva
e controladora de nosso futebol, equalizando-o ao campo
técnico do inimigo europeu,
pôde chegar a conviver com a
genialidade criadora de nossos
craques -fruto de uma oferta
natural que o povo brasileiro
faz quando se trata de jogar bola-, o mesmo tipo de tentativa
obsessiva, identificada com o
agressor, não funciona no todo
da vida social no Brasil.
Tal recuo conservador ao
plano geral do capitalismo contemporâneo simplesmente não
dá conta do secular déficit social brasileiro e não há avanço.
Diante de tal fragilidade e
violência, afora meia dúzia de
sambas e de craques, não temos
tido nada de bom, bonito ou
verdadeiro para equiparar ao
grau da técnica do tempo.
Tales A.M. Ab'Sáber é psicanalista, autor de "O
Sonhar Restaurado" (ed. 34).
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