São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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A civilização pela bola

Simbiose entre tática e improviso fez a seleção evoluir mais que a sociedade brasileira desde os anos 80

TALES A.M. AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após chegar ao ápice de seu futebol e de uma era no futebol mundial, com o terceiro gol contra a Argentina -que, com Maradona e tudo, estava destruída em campo-, a seleção brasileira de 1982 pareceu relaxar, em um movimento também muito típico do futebol brasileiro. No fim do jogo, já com Maradona expulso por nítido desespero, e com o grande volante Batista em campo em uma saída de bola despretensiosa na intermediária do Brasil, o ponta Éder, que não deveria estar ali, tem a bola roubada de forma surpreendente por Tarantini, que toca para Ramón Diaz, que acerta um chute forte da entrada da área desprotegida do Brasil. O gol era inútil e, aparentemente, totalmente inócuo.

Sintoma
Não fosse o fato de o segundo gol da Itália, na trágica partida seguinte que nos desclassificou, ocorrer por uma falha na saída de bola -o famoso passe errado de Cerezo- que apanhou o Brasil no contrapé, no mesmo ponto do campo em que teve início o gol argentino, aquele gol de Ramón Diaz não teria nenhum significado. Mas, talvez, ele faça parte de um mesmo sintoma difícil cuja identificação tanto custou para o futebol brasileiro e para a história do próprio esporte. Como se sabe, na partida entre Brasil e Itália se jogou o destino histórico do futebol, ao menos nos 20 anos que se seguiram. Tratou-se de uma luta muito ampla entre a dedicação tática estrita e marcação cerrada, tendendo a tomar todo o campo, e o investimento libidinal na técnica, na fantasia qualificada e no amor irrestrito pelo gol. Uma vez definidos os horizontes ideológicos com a vitória italiana e a fantasia mestra que regularia o futuro do jogo, só restava ao Brasil uma longa e penosa revisão dos fundamentos táticos e técnicos de sua própria concepção do esporte. Voltemos ao pomo da discórdia. O gol do passe errado de Cerezo nas costas de Falcão, que não sabia se podia voltar para alcançar a bola ou se a deixaria passar para Júnior, deixando-a enfim para a sombra invisível de Rossi -assim como o gol da Argentina na partida anterior e também, de outros modos, os demais dois gols italianos-, insistia sempre em uma mesma fragilidade, no time e no gramado: a cabeça da área, a zona indefinida e pouco nobre, para o futebol brasileiro, entre a zaga e a primeira bola do meio de campo. O estranho passe de Cerezo, sem objeto útil para o time e que tomou para si todos os muitos sentidos daquela partida, indicava assim o lugar de um vazio, o vetor de uma força que dava no nada, o xis de um ponto negativo, em que nosso futebol, tão autoconsciente, gostava de se perder.

Esforço dialético
De fato nossos volantes clássicos, de Zito a Clodoaldo, de Gérson a Falcão, nunca se pensaram como apenas destruidores, como seria a função tática essencial para aquela posição a partir de 1982. E, ainda menos, o próprio time não pensava que deveria contribuir inteiro para a plena realização daquela função, introjetando de forma impensável para nossas aspirações lúdicas e estéticas uma forte estrutura retentiva em seu espírito e corpo. O movimento histórico nessa direção foi longo e trabalhoso, uma espécie de trabalho dialético do sintoma que insistiu no auge de nosso futebol ideal: a seleção do superfutebol de 82. Ao que parece, apesar da regressão manhosa que passou a negar aquela seleção no baixo mundo do futebol brasileiro, havia uma falha no coração do diamante. Os três zagueiros de 1990, os três volantes e a retranca, muito retentiva, de 1994, a tentativa de descongelamento de 1998 e, finalmente, o equilíbrio relativamente fluido entre a defesa muito forte e o ataque perigoso de 2002 representam o longo trabalho de assimilação e de nomeação daquele vazio, que o futebol brasileiro não podia se dar ao luxo de ignorar.

Síntese
O sintoma, desse modo, é também um desconhecido, que aparece como derrota e cujo trabalho histórico é o seu próprio preenchimento. Acredito que essa história de nosso futebol no último quarto de século tenha seus dois pólos de solução, um no plano da grande arte e outro no da competitividade tática, nos times de Telê Santana de 1982 e de Luiz Felipe Scolari de 2002. Enquanto o ponto de fuga negativo, a invasão do recalque como forma de paralisação retentiva, teria encontrado seu ápice no time campeão de 1994, de Carlos Alberto Parreira, com um traumatizado 0 a 0 com a famigerada Itália. A seleção atual, talvez, venha a ser uma síntese verdadeira desses momentos de nosso futebol.

Sem paralelo social
Por outro lado, se o recuo civilizatório na direção obsessiva e controladora de nosso futebol, equalizando-o ao campo técnico do inimigo europeu, pôde chegar a conviver com a genialidade criadora de nossos craques -fruto de uma oferta natural que o povo brasileiro faz quando se trata de jogar bola-, o mesmo tipo de tentativa obsessiva, identificada com o agressor, não funciona no todo da vida social no Brasil. Tal recuo conservador ao plano geral do capitalismo contemporâneo simplesmente não dá conta do secular déficit social brasileiro e não há avanço. Diante de tal fragilidade e violência, afora meia dúzia de sambas e de craques, não temos tido nada de bom, bonito ou verdadeiro para equiparar ao grau da técnica do tempo.


Tales A.M. Ab'Sáber é psicanalista, autor de "O Sonhar Restaurado" (ed. 34).


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