São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Iguais só em campo

Em novo livro, o antropólogo Roberto DaMatta reitera que o futebol mimetiza a justiça social, apesar dos escândalos recentes

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O futebol é uma das atividades mais relevantes na vida dos brasileiros. Apesar disso, ainda é muito pouco discutido dentro das universidades. Desse ponto de vista, "A Bola Corre Mais do que os Homens" [ed. Rocco, 216 págs., R$ 27,50], coletânea de crônicas e ensaios do antropólogo Roberto DaMatta, cumpre importante função. Essa carência interpretativa no país, contudo, cria uma curiosa distorção. É uma quase regra geral, quando qualquer tipo de livro ligado ao esporte é lançado, que ele seja recebido como obra-prima, sendo com freqüência qualificado com metáforas futebolísticas (coisa de craque, golaço, arremate certeiro etc.). Ou seja, o obviamente problemático raciocínio parece ser: já que há poucos, que sejam louvados simplesmente por terem sido publicados. Para não incorrer nele, deve-se dizer que os textos de DaMatta são desiguais, alternando momentos de brilho, como os comentários sobre a trave ou a reconstrução histórica do crescimento da importância do futebol no Brasil, e pontos frágeis, como o excesso de redundâncias e um certo patriotismo que beira o piegas. Além disso, talvez mereça mais discussão a suposição de que é possível compreender a prática no Brasil atual sem levar em conta a questão da corrupção (e da violência), adotando a idéia de que se trata de um "espaço específico", que o autor defende no livro e nesta entrevista, concedida por e-mail.

 

FOLHA - Gilberto Freyre é, como o sr. destaca em um dos textos, o único dos nossos grandes intérpretes a discutir o futebol. Por que esse esporte tão importante no cotidiano brasileiro é tão pouco estudado?
ROBERTO DAMATTA -
Porque o futebol, como um fenômeno muito próximo de nós, não era um objeto da sociologia clássica, cujos modelos e teorias eram importados. Como escrever sobre a sociedade falando de outros objetos que não fossem as "raças" (alvo de todos os teóricos do Brasil até o advento, em 1933, de "Casa Grande e Senzala"), como falar do Brasil sem falar no "meio geográfico", como faz Euclydes da Cunha, e, mais recentemente, como falar do Brasil sem falar em "classes sociais", esse apanágio da [academia] paulistana? Se os modelos mais avançados e generosos de estudo do social se fundavam nesses objetos e nesses temas, esses intelectuais iam procurar tais coisas no Brasil. Claro que, às vezes, era um problema -por exemplo, como encontrar interesses de classe num sistema patronal e fundado numa política de facções e famílias? Mas como, na vida e na pesquisa, a gente acha sempre o que procura, como dizia um antropólogo inglês, o Evans-Pritchard [1902-73], encontrávamos essa temática nobre e eurocêntrica também entre nós, muitas vezes passando por cima de seus componentes nativos ou locais. Paralelamente a isso, deixamos de lado fenômenos importantes, mas sem esses pedigrees intelectuais, como a praia, o Carnaval, o jogo do bicho, os rituais católicos e o futebol. Há uma norma na sociologia que diz ou menos o seguinte: quanto mais próximo e mais importante (sobretudo no sentido emocional), menos estudado. É a versão erudita do "santo de casa não faz milagre".

FOLHA - O sr. reitera algumas vezes em seus ensaios a idéia de que o futebol "proporciona à sociedade brasileira a experiência da igualdade e da justiça social". Como isso é possível quando se pensa nos inúmeros escândalos envolvendo personagens de todos os âmbitos desse esporte no país?
DAMATTA -
Porque o futebol se circunscreve a um espaço específico, o espaço do esporte, que também tento deslindar no meu livro. A hipótese é que o futebol é popular porque proporciona uma experiência concreta de vitória e de igualdade substantiva, concreta, num sistema que tem negado isso no campo político. O que valida a paixão pelo futebol seria precisamente essa distância do cotidiano negro, marcado pela falcatrua e pela ausência de talento real. É pelo futebol que as pessoas do povo aprendem que a regra vale mesmo para todos, que quem é bom (e sabe jogar) vence mesmo e, sobretudo, que não se pode vencer ou perder sempre. A rotinização dessa experiência liberal, de igualdade de todos perante as regras, é que permite o contraste e, a meu ver, como digo no livro, explicar a popularidade do futebol e do esporte no mundo moderno.

FOLHA - Mas, quando um juiz altera resultados de jogos, como aconteceu em 2005 no Campeonato Brasileiro, ou quando dirigentes pagam para obter vantagens para seus times, isso não distorce essa "experiência de igualdade e de justiça social"? O futebol está mesmo distante desse "cotidiano negro"?
DAMATTA -
Um juiz roubar no futebol é muito mais extraordinariamente anômalo e complicado, justamente pela transparência democrática e pela ênfase no desempenho maior, do que em outras atividades humanas, sobretudo na administração pública. Claro que há corrupção no esporte e futebol, mas, devido à ênfase no desempenho e ao fato de que as regras são simples, é muito mais complicado continuar ou estruturar esse tipo de conduta. No futebol não há caixa 2 nem plano B. A torcida logo descobre a fraude, faz algo se as autoridades não o fazem.

FOLHA - O Brasil vai ganhar a Copa do Mundo?
DAMATTA -
Espero que sim.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido" (Globo).

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