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Iguais só em campo
Em novo livro,
o antropólogo Roberto DaMatta reitera que o futebol
mimetiza
a justiça social,
apesar dos escândalos
recentes
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
futebol é uma das
atividades mais relevantes na vida
dos brasileiros.
Apesar disso, ainda é muito pouco discutido
dentro das universidades.
Desse ponto de vista, "A Bola
Corre Mais do que os Homens"
[ed. Rocco, 216 págs., R$ 27,50],
coletânea de crônicas e ensaios
do antropólogo Roberto DaMatta, cumpre importante
função.
Essa carência interpretativa
no país, contudo, cria uma curiosa distorção. É uma quase
regra geral, quando qualquer
tipo de livro ligado ao esporte é
lançado, que ele seja recebido
como obra-prima, sendo com
freqüência qualificado com
metáforas futebolísticas (coisa
de craque, golaço, arremate
certeiro etc.).
Ou seja, o obviamente problemático raciocínio parece
ser: já que há poucos, que sejam louvados simplesmente
por terem sido publicados.
Para não incorrer nele, deve-se dizer que os textos de DaMatta são desiguais, alternando momentos de brilho, como
os comentários sobre a trave
ou a reconstrução histórica do
crescimento da importância do
futebol no Brasil, e pontos frágeis, como o excesso de redundâncias e um certo patriotismo
que beira o piegas.
Além disso, talvez mereça
mais discussão a suposição de
que é possível compreender a
prática no Brasil atual sem levar em conta a questão da corrupção (e da violência), adotando a idéia de que se trata de um
"espaço específico", que o autor defende no livro e nesta entrevista, concedida por e-mail.
FOLHA - Gilberto Freyre é, como o
sr. destaca em um dos textos, o único dos nossos grandes intérpretes a
discutir o futebol. Por que esse esporte tão importante no cotidiano
brasileiro é tão pouco estudado?
ROBERTO DAMATTA - Porque o futebol, como um fenômeno muito próximo de nós, não era um
objeto da sociologia clássica,
cujos modelos e teorias eram
importados. Como escrever sobre a sociedade falando de outros objetos que não fossem as
"raças" (alvo de todos os teóricos do Brasil até o advento, em
1933, de "Casa Grande e Senzala"), como falar do Brasil sem
falar no "meio geográfico", como faz Euclydes da Cunha, e,
mais recentemente, como falar
do Brasil sem falar em "classes
sociais", esse apanágio da [academia] paulistana?
Se os modelos mais avançados e generosos de estudo do
social se fundavam nesses objetos e nesses temas, esses intelectuais iam procurar tais coisas no Brasil.
Claro que, às vezes, era um
problema -por exemplo, como
encontrar interesses de classe
num sistema patronal e fundado numa política de facções e
famílias? Mas como, na vida e
na pesquisa, a gente acha sempre o que procura, como dizia
um antropólogo inglês, o
Evans-Pritchard [1902-73], encontrávamos essa temática nobre e eurocêntrica também entre nós, muitas vezes passando
por cima de seus componentes
nativos ou locais.
Paralelamente a isso, deixamos de lado fenômenos importantes, mas sem esses pedigrees intelectuais, como a
praia, o Carnaval, o jogo do bicho, os rituais católicos e o futebol. Há uma norma na sociologia que diz ou menos o seguinte: quanto mais próximo e
mais importante (sobretudo no
sentido emocional), menos estudado. É a versão erudita do
"santo de casa não faz milagre".
FOLHA - O sr. reitera algumas vezes
em seus ensaios a idéia de que o futebol "proporciona à sociedade brasileira a experiência da igualdade e
da justiça social". Como isso é possível quando se pensa nos inúmeros
escândalos envolvendo personagens de todos os âmbitos desse esporte no país?
DAMATTA - Porque o futebol se
circunscreve a um espaço específico, o espaço do esporte, que
também tento deslindar no
meu livro. A hipótese é que o
futebol é popular porque proporciona uma experiência concreta de vitória e de igualdade
substantiva, concreta, num sistema que tem negado isso no
campo político.
O que valida a paixão pelo futebol seria precisamente essa
distância do cotidiano negro,
marcado pela falcatrua e pela
ausência de talento real. É pelo
futebol que as pessoas do povo
aprendem que a regra vale mesmo para todos, que quem é bom
(e sabe jogar) vence mesmo e,
sobretudo, que não se pode
vencer ou perder sempre.
A rotinização dessa experiência liberal, de igualdade de
todos perante as regras, é que
permite o contraste e, a meu
ver, como digo no livro, explicar a popularidade do futebol e
do esporte no mundo moderno.
FOLHA - Mas, quando um juiz altera resultados de jogos, como aconteceu em 2005 no Campeonato Brasileiro, ou quando dirigentes pagam
para obter vantagens para seus times, isso não distorce essa "experiência de igualdade e de justiça social"? O futebol está mesmo distante desse "cotidiano negro"?
DAMATTA - Um juiz roubar no
futebol é muito mais extraordinariamente anômalo e complicado, justamente pela transparência democrática e pela ênfase no desempenho maior, do
que em outras atividades humanas, sobretudo na administração pública.
Claro que há corrupção no
esporte e futebol, mas, devido à
ênfase no desempenho e ao fato
de que as regras são simples, é
muito mais complicado continuar ou estruturar esse tipo de
conduta. No futebol não há caixa 2 nem plano B. A torcida logo
descobre a fraude, faz algo se as
autoridades não o fazem.
FOLHA - O Brasil vai ganhar a Copa
do Mundo?
DAMATTA - Espero que sim.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
USP e autor de "O Abismo Invertido" (Globo).
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