São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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O laboratório Alemanha




"O Incêndio" discute os ataques que devastaram as cidades alemãs na 2ª Guerra e anteciparam o "bombardeio estratégico", no Vietnã e no Iraque

PAULO FAGUNDES VIZENTINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Jörg Friedrich, "O Incêndio", é um estudo surpreendente. Aborda um tema por décadas incômodo, que constitui um certo tabu político e uma relativa lacuna historiográfica, considerando-se sua gravidade e caráter polêmico -qual seja, os gigantescos bombardeios anglo-americanos sobre a Alemanha na Segunda Guerra. Mas não é isso que o faz ser surpreendente, e sim o tom em que é escrito. Ao longo de quase 600 páginas, o leitor encontra uma abordagem rigorosa com aspectos técnicos, científicos, militares e político-diplomáticos sobre a destruição das cidades alemãs, combinados com relatos sobre o sofrimento e o comportamento da população. Seria de esperar que o autor, sendo alemão, empregasse um tom acusatório e apaixonado, mas não é isso que ocorre. Ele utiliza uma linguagem de imparcialidade e objetividade que absorve completamente o leitor, um pouco ao estilo das obras do historiador inglês Antony Beevor, mas combina as informações de tal maneira que torna o texto chocante e aterrador. Chocante pelo drama humano que encerra, pelo desconcertante comportamento das pessoas e do regime político que as enquadra, e aterrador por mostrar de forma singela a decepção dos estrategistas aliados por destruir uma cidade inteira sem lograr obter os 100 mil mortos planejados, essencialmente civis. Ou a determinação de Churchill em utilizar um bombardeio bacteriológico com antraz, que não foi possível devido ao desembarque aliado e seu avanço para as cidades alemãs, que não poderiam estar contaminadas. Demonstra de forma inquestionável que, apesar da ampla destruição lograda, os bombardeios não conseguiram quebrar a capacidade militar alemã e que a ocupação de cada cidade por terra seria inevitável. Mas deixa antever a importância política do terror aéreo para "passivizar" a população (e a elite), de forma que ela aceitasse o futuro reordenamento jurídico-político do país pelos ocupantes no pós-guerra. Da mesma forma, está implícito que a teoria do bombardeio estratégico, criada pelos ingleses após a Primeira Guerra Mundial, constituía também um instrumento para a formatação da ordem mundial pós-Segunda Guerra Mundial, na medida em que os soviéticos não dispunham de bombardeiros de largo raio de ação. A bomba atômica, empregada contra os japoneses mais tarde, seria apenas um complemento de tal estratégia. A teoria do bombardeio estratégico, que visava derrotar o inimigo por meio da superioridade industrial e tecnológica, por meio da aviação, sem a necessidade de demasiadas perdas humanas por parte dos anglo-saxões (que já dominavam os mares) nos combates terrestres, prenunciava uma nova era na ciência militar. Como se viu na Coréia, no Vietnã, na Iugoslávia e no Iraque, a estratégia passou a ser uma regra, sem distinguir a população civil dos combatentes (às vezes, inclusive, visando especialmente os civis). Ela apenas foi aperfeiçoada com a chegada dos mísseis, mas não alterada. Todavia também ficaria claro que as guerras não podem ser ganhas exclusivamente dessa maneira. Chama a atenção no livro o esforço alemão de preservar bibliotecas e tesouros nacionais do holocausto aéreo, numa interação paradoxal entre a população em geral, resignada, e a ação determinada dos agentes nazistas. Da mesma forma, está implícito o debate sobre a punição coletiva, uma vez que o Terceiro Reich também bombardeou a Inglaterra. Enfim, se trata de um livro para iniciados no tema, mas as notas de rodapé introduzidas pelo tradutor permitem ao leitor leigo compreender a complexa trama da narrativa. "O Incêndio" tem, finalmente, o mérito de abrir um debate sobre um tema minimizado ou diluído no conjunto das ações da Segunda Guerra durante os anos da Guerra Fria.
PAULO FAGUNDES VIZENTINI é professor titular de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O INCÊNDIO
Autor: Jörg Friedrich
Tradução: Roberto Rodrigues
Editora: Record
Quanto: R$ 64,90 (588 págs.)


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