São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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Ponto de Fuga

Antropofagia

Jorge Coli
especial para a Folha

O espetáculo "Os Solitários" reúne duas peças de Nicky Silver, "Pterodáctilos" e "Homens Gordos de Saia". É dirigido por Felipe Hirsch. Esteve em São Paulo e agora estréia no teatro João Caetano do Rio. Conserva sua força dentro da encenação límpida, que garante a verossimilhança de situações as mais aberrantes e malucas. O cerne está na família, que inventa falsos semblantes e relações frustradas -há algo nisto de Tenessee Williams.
Mas seria um Tenessee Williams que tivesse tomado ácido ou entrasse em surto surrealista. Tudo derrapa e os desejos, os ódios, os ressentimentos se vestem de absurdo, sem cair para o símbolo grosseiro. Nas situações brutais e grotescas se infiltra uma violência maior pela finura do diálogo irônico, pela direção precisa e poética, pela qualidade dos atores.
Nos papéis principais estão Marieta Severo e Marco Nanini: dois monstros de cena, está claro, mas que em nenhum momento cedem à suficiência, à cabotinagem. Entram em sintonia com os mais jovens, todos excelentes. Essa interação é necessária, pois o espetáculo superpõe à farsa e à crueldade uma vibração de pavor frio e fundo. Por exemplo, mãe e filho, que aprenderam o canibalismo numa ilha deserta, ao voltarem para a civilização, devoram o macho da casa, pai e marido. A cena se presta à risada grossa e ao Grand Guignol [gênero teatral francês de horror"; o menino declara que aquilo vale por anos de terapia. Mas são antes o isolamento de cada um, os pactos sórdidos e doentios, que assustam. Podem-se chamar as duas peças de comédia; o que elas suscitam de fato são medos contagiantes.

Voltagem - "Ma perchè sento rizzarmi il crine?" "Mas por que sinto arrepiar-me o cabelo?" Com essa pergunta, logo no começo da ópera, o personagem de Macbeth, recriado em sons por Verdi, dá o tom. A música que se põe a serviço da tragédia deve abalar os nervos do espectador, carregando a atmosfera de eletricidade. Do recitativo conciso às grandes árias, duetos, ou corais, do início ao fim tudo se encadeia numa efervescência violenta. Em "Macbeth", de Verdi, é o mundo todo que treme, vítima dos crimes cometidos pela ambição sem limites.
Nem sempre, porém, as representações correspondem ao gênio do compositor. Um espetáculo de ópera pode ser às vezes céu, às vezes inferno. "Macbeth", apresentada há pouco no teatro Municipal de São Paulo, foi um purgatório. Toda a tensão concebida por Verdi estava ausente. Cenários mínimos, pobres de imaginação; direção de cena indiferente; regência do maestro Ira Levin rotineira e pouco inspirada: o espetáculo trotou direitinho para o final, sem desastres, mas sem interesse. O barítono finlandês Juha Uusitalo com uma bela voz, clara e bem colocada, revelou-se imaturo demais para o papel do usurpador escocês. Eduardo Itaborahy, tenor, e Luiz Otávio Queiroz, baixo, ambos brasileiros, em partes menores, fizeram sucesso; excelente o Coral Lírico, em grande forma.

Exagero - Verdi escreveu que queria, para sua Lady Macbeth, uma voz "aspra, soffocata, cupa" -áspera, sufocada, escura. Que não servia a perfeição do canto; melhor seria se ela "não cantasse". A americana Gail Gilmore, tal como se apresentou em São Paulo nesse papel, foi muito, muito além do que Verdi podia jamais ter desejado.

Escolha - A discografia de "Macbeth" inscreve a única interpretação de Maria Callas, captada ao vivo no teatro alla Scala, de Milão, em 1951. Ela encarnou a "presença trágica do mal", no dizer de um crítico que assistiu àquela representação. Porém, apesar da histórica regência de De Sabata, o resto da distribuição não faz justiça à grande cantora. Há ainda belas versões sob as batutas de Muti, de Abbado, de Sinopoli. Eletrizante acima de todas, aquela gravada em 1959, com direção musical de Leinsdorf e com uma diabólica Leonie Rysaneck. Sobretudo, Leonard Warren encabeça o elenco: nunca nenhum outro barítono atingiu sua complexidade interpretativa. É o mais estupendo Macbeth que o disco registrou.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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