São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005 |
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+ autores Para defensores do pensador em sua suposta relação com o nazismo, o Holocausto foi resultado do avanço sem limites da técnica -que ele criticou-, e não um ato de uma potência e do ódio contra um povo Heidegger, filósofo judeu?
JACQUES RANCIÈRE
Mas como estabelecer o vínculo decisivo que comprova a solidariedade entre o terror nazista e a guerra declarada pelo filósofo aos fundamentos da lógica ocidental, ou a continuidade entre o engajamento temporário de Heidegger e a própria estrutura de seu projeto filosófico? Emmanuel Faye teve uma boa oportunidade para restabelecer, em sua crueza ideológica e guerreira, as palavras que o mestre ou seus herdeiros às vezes corrigiram para a edição de seminários e as idéias que os discípulos propositalmente afogaram em circunlóquios. Do mesmo modo, porém, ele se satisfaz com a simples presença de palavras reveladoras no texto. Entretanto, como toda a estratégia teórica de Heidegger na época consistia em reivindicar um sentido mais profundo e mais original para as palavras do léxico nazista, a demonstração cabal torna-se impossível. E o autor é obrigado, então, a recorrer a associações incontroláveis com a evolução deste ou daquele colaborador ou o papel deste ou daquele intermediário, a ponto de supor que um dos redatores dos discursos de Hitler tenha sido um discípulo de Heidegger, senão o próprio filósofo. É verdade que os argumentos factuais dos irredutíveis, sempre baseados nos mesmos testemunhos, nas mesmas declarações retrospectivas e nas mesmas distorções de interpretação e de comentário, não são mais conclusivos. Na realidade, porém, não é sobre esse tipo de provas que eles fundamentam sua apologia. Eles procuram cada vez menos comprovar a inocência de Heidegger em seu contexto histórico. Em lugar disso, deslocam o terreno e invertem o argumento: colocam-se no presente e pretendem provar que os verdadeiros culpados são os que hoje o atacam, porque, com isso, eles estariam atacando o único pensamento que nos permite tirar a medida do crime nazista, logo, de nos prevenir contra sua perpetuação. Todo crime é, para começar, um crime contra o pensamento -ele tem sua origem na recusa em pensar, argumenta um dos defensores mais ardentes do filósofo, o também filósofo Henri Crétella. E o crime nazista é de um radicalismo tal que só um pensamento de radicalismo ainda superior pode nos salvar dele. Portanto, conclui, é preciso "trabalhar para que não se possa continuar a caluniar Heidegger". Resumindo: hoje, o crime de atacar Heidegger, que encarna o pensamento, é análogo ao crime nazista. Logo, a melhor maneira de ser antinazista é proibir a crítica a Heidegger. Por seu caráter sumário, esse argumento ilustra bem a reviravolta da perspectiva: pouco importa, nos dizem seus partidários, em última análise, que Heidegger tenha acompanhado o nazismo por um período mais ou menos longo. O importante é que o pensamento que ele elaborou sobre o nazismo, meditando silenciosamente sobre ele, nos proporciona, hoje, o meio de nos salvarmos dele, dando-nos a chave que o torna inteligível. Essa chave é a hegemonia da técnica, que significa a colocação à disposição ilimitada de tudo, longe do abrigo do Ser. De acordo com uma célebre conferência do pós-guerra, é essa colocação à disposição que teria conduzido à "fabricação de cadáveres" dos campos de extermínio. Analista da essência da técnica, Heidegger seria, portanto, o pensador que nos liberta do totalitarismo nazista, e seus críticos, por inconsciência ou por cumplicidade secreta, atacariam o único pensamento capaz de nos proteger contra as obras do "totalitarismo doce" ou da "doce barbárie" que comanda nossas vidas. Assim, a "defesa" de Heidegger se converte em ataque. E esse ataque também é testemunho da mutação do olhar lançado hoje sobre o nazismo e o extermínio por uma parte crescente da intelligentsia ocidental. Sabe-se como esta, há algum tempo, passou a colocar no centro de seu pensamento a singularidade radical do extermínio dos judeus da Europa. O paradoxo é que, para isso, precisou separar esse acontecimento de sua causa real, da ideologia em cujo nome ele foi perpetrado. Ela tende a deixar de lado a ideologia racial do nazismo, a mitologia do solo e do sangue na qual ela tem suas raízes. Para fazer do extermínio a realização da essência da técnica denunciada por Heidegger, ela precisa negar que seja conseqüência de uma ideologia reativa e de uma mitologia arcaica. Ela precisa transformar essa ideologia em crime moderno, o crime de uma sociedade democrática voltada à satisfação, por meio da técnica, das necessidades e dos desejos insaciáveis de indivíduos não afiliados e voltados exclusivamente ao culto do consumo. Dentro dessa lógica, não foram os nazistas que mataram os judeus, foram as câmeras de gás; e, nas câmeras de gás, é a modernidade técnica que adere fortemente à modernidade democrática. Democracia assassina Foi definitivamente a democracia que matou os judeus: foi essa a tese defendida recentemente pelo autor do livro repleto de repercussões "Les Penchants Criminels de l'Europe Démocratique" (As Tendências Criminosas da Europa Democrática), Jean-Claude Milner. É ela que transmite uma inesgotável literatura filosófico-jornalística que denuncia, dentro dos fenômenos do consumo de massas e dos programas de televisão-realidade, as marcas de uma barbárie ainda mais radical que a dos campos de extermínio. Assim, tudo se volta do avesso: o extermínio não é mais o crime historicamente situado de uma potência movida pelo ódio aos judeus e à democracia -é um futuro que nos ameaça. E são os inconscientes detratores do filósofo que, ainda hoje, estariam trabalhando pela vitória planetária do totalitarismo democrático, ao caluniar o pensamento que, 50 anos atrás, já nos prevenia contra essa ameaça. Para concluir a inversão das coisas, falta apenas um passo a ser dado, passo esse que alguns já descrevem. Heidegger é um pensador eminentemente judeu, nos explica o inspirador da campanha, Stéphane Zagdanski, para quem o "ereignis" do filósofo é idêntico ao dom da Torá. O mesmo autor já havia dedicado um livro à tentativa de fazer de Céline um escritor judeu por excelência. É verdade que todas as inversões são possíveis numa era em que o homem mais freqüentemente saudado por sua ação revolucionária se chama George W. Bush. Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34). Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: Biblioteca básica - Régis Bonvicino: Poeta em Nova York Próximo Texto: + história: A cidade que cruzou o Atlântico Índice |
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