São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Para defensores do pensador em sua suposta relação com o nazismo, o Holocausto foi resultado do avanço sem limites da técnica -que ele criticou-, e não um ato de uma potência e do ódio contra um povo

Heidegger, filósofo judeu?

JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Mais uma vez o assunto é [o filósofo alemão Martin] Heidegger [1889-1976], o reitorado de 1933 e a questão do seu engajamento político. A discussão certamente não é exclusividade francesa, mas sempre assume um caráter especialmente agudo na França. E mais ainda agora, já que desta vez é um autor francês que a traz à tona, denunciando não apenas o engajamento público do reitor Heidegger em 1933, mas, ainda mais fundamentalmente, a solidariedade de sua filosofia com a ideologia nazista.
O título do livro de Emmanuel Faye -"Heidegger - L'Introduction du Nazisme Dans la Philosophie" (Heidegger - A Introdução do Nazismo na Filosofia, Albin Michel, 568 págs., 27,55 - R$ 81)-, publicado em Paris há poucos meses, é explícito a esse respeito. E a avalanche de protestos que caiu sobre os jornais que o noticiaram, assim como a intensa campanha travada na internet pelos defensores de Heidegger, é testemunha das paixões suscitadas.
Não seria o caso de nos interessarmos por isso se fosse apenas uma nova contagem de pontos num duelo já conhecido. Desta vez, porém, a querela deixa entrever outra coisa: uma mudança da paisagem ideológica que merece ser observada. Ela não diz respeito apenas à apreciação da atitude de um pensador com relação ao nazismo, mas à própria percepção do nazismo e de sua relação com as chamadas "democracias liberais" nas quais supostamente vivemos.

Adesão
Está claro, de fato, que a questão do engajamento político de Heidegger a serviço do nazismo jamais será confirmada por nenhum argumento decisivo, pois o problema é sempre o mesmo. De um lado, há os fatos bem estabelecidos e as declarações públicas que constituem testemunho da adesão do reitor Heidegger ao novo regime estabelecido em 1933. Há também os seminários da época, que, por meio do estudo dos fundamentos da lógica ou dos poemas de [Friedrich] Hölderlin [1770-1843], revelam a presença e força de problemas e temas que integravam o projeto nazista: os do combate decisivo, do povo a ser reunido sob a tempestade sagrada em prol de um destino novo, o da comunidade a ser fundada novamente naquilo que possuía de mais essencial.


Tudo se volta do avesso: o extermínio não é mais o crime de uma potência movida pelo ódio aos judeus e à democracia -é um futuro que nos ameaça


Mas como estabelecer o vínculo decisivo que comprova a solidariedade entre o terror nazista e a guerra declarada pelo filósofo aos fundamentos da lógica ocidental, ou a continuidade entre o engajamento temporário de Heidegger e a própria estrutura de seu projeto filosófico?
Emmanuel Faye teve uma boa oportunidade para restabelecer, em sua crueza ideológica e guerreira, as palavras que o mestre ou seus herdeiros às vezes corrigiram para a edição de seminários e as idéias que os discípulos propositalmente afogaram em circunlóquios. Do mesmo modo, porém, ele se satisfaz com a simples presença de palavras reveladoras no texto.
Entretanto, como toda a estratégia teórica de Heidegger na época consistia em reivindicar um sentido mais profundo e mais original para as palavras do léxico nazista, a demonstração cabal torna-se impossível. E o autor é obrigado, então, a recorrer a associações incontroláveis com a evolução deste ou daquele colaborador ou o papel deste ou daquele intermediário, a ponto de supor que um dos redatores dos discursos de Hitler tenha sido um discípulo de Heidegger, senão o próprio filósofo.
É verdade que os argumentos factuais dos irredutíveis, sempre baseados nos mesmos testemunhos, nas mesmas declarações retrospectivas e nas mesmas distorções de interpretação e de comentário, não são mais conclusivos. Na realidade, porém, não é sobre esse tipo de provas que eles fundamentam sua apologia. Eles procuram cada vez menos comprovar a inocência de Heidegger em seu contexto histórico. Em lugar disso, deslocam o terreno e invertem o argumento: colocam-se no presente e pretendem provar que os verdadeiros culpados são os que hoje o atacam, porque, com isso, eles estariam atacando o único pensamento que nos permite tirar a medida do crime nazista, logo, de nos prevenir contra sua perpetuação.
Todo crime é, para começar, um crime contra o pensamento -ele tem sua origem na recusa em pensar, argumenta um dos defensores mais ardentes do filósofo, o também filósofo Henri Crétella. E o crime nazista é de um radicalismo tal que só um pensamento de radicalismo ainda superior pode nos salvar dele. Portanto, conclui, é preciso "trabalhar para que não se possa continuar a caluniar Heidegger". Resumindo: hoje, o crime de atacar Heidegger, que encarna o pensamento, é análogo ao crime nazista. Logo, a melhor maneira de ser antinazista é proibir a crítica a Heidegger.
Por seu caráter sumário, esse argumento ilustra bem a reviravolta da perspectiva: pouco importa, nos dizem seus partidários, em última análise, que Heidegger tenha acompanhado o nazismo por um período mais ou menos longo. O importante é que o pensamento que ele elaborou sobre o nazismo, meditando silenciosamente sobre ele, nos proporciona, hoje, o meio de nos salvarmos dele, dando-nos a chave que o torna inteligível. Essa chave é a hegemonia da técnica, que significa a colocação à disposição ilimitada de tudo, longe do abrigo do Ser.
De acordo com uma célebre conferência do pós-guerra, é essa colocação à disposição que teria conduzido à "fabricação de cadáveres" dos campos de extermínio. Analista da essência da técnica, Heidegger seria, portanto, o pensador que nos liberta do totalitarismo nazista, e seus críticos, por inconsciência ou por cumplicidade secreta, atacariam o único pensamento capaz de nos proteger contra as obras do "totalitarismo doce" ou da "doce barbárie" que comanda nossas vidas.
Assim, a "defesa" de Heidegger se converte em ataque. E esse ataque também é testemunho da mutação do olhar lançado hoje sobre o nazismo e o extermínio por uma parte crescente da intelligentsia ocidental. Sabe-se como esta, há algum tempo, passou a colocar no centro de seu pensamento a singularidade radical do extermínio dos judeus da Europa. O paradoxo é que, para isso, precisou separar esse acontecimento de sua causa real, da ideologia em cujo nome ele foi perpetrado. Ela tende a deixar de lado a ideologia racial do nazismo, a mitologia do solo e do sangue na qual ela tem suas raízes.
Para fazer do extermínio a realização da essência da técnica denunciada por Heidegger, ela precisa negar que seja conseqüência de uma ideologia reativa e de uma mitologia arcaica. Ela precisa transformar essa ideologia em crime moderno, o crime de uma sociedade democrática voltada à satisfação, por meio da técnica, das necessidades e dos desejos insaciáveis de indivíduos não afiliados e voltados exclusivamente ao culto do consumo. Dentro dessa lógica, não foram os nazistas que mataram os judeus, foram as câmeras de gás; e, nas câmeras de gás, é a modernidade técnica que adere fortemente à modernidade democrática.

Democracia assassina
Foi definitivamente a democracia que matou os judeus: foi essa a tese defendida recentemente pelo autor do livro repleto de repercussões "Les Penchants Criminels de l'Europe Démocratique" (As Tendências Criminosas da Europa Democrática), Jean-Claude Milner. É ela que transmite uma inesgotável literatura filosófico-jornalística que denuncia, dentro dos fenômenos do consumo de massas e dos programas de televisão-realidade, as marcas de uma barbárie ainda mais radical que a dos campos de extermínio.
Assim, tudo se volta do avesso: o extermínio não é mais o crime historicamente situado de uma potência movida pelo ódio aos judeus e à democracia -é um futuro que nos ameaça. E são os inconscientes detratores do filósofo que, ainda hoje, estariam trabalhando pela vitória planetária do totalitarismo democrático, ao caluniar o pensamento que, 50 anos atrás, já nos prevenia contra essa ameaça.
Para concluir a inversão das coisas, falta apenas um passo a ser dado, passo esse que alguns já descrevem. Heidegger é um pensador eminentemente judeu, nos explica o inspirador da campanha, Stéphane Zagdanski, para quem o "ereignis" do filósofo é idêntico ao dom da Torá. O mesmo autor já havia dedicado um livro à tentativa de fazer de Céline um escritor judeu por excelência. É verdade que todas as inversões são possíveis numa era em que o homem mais freqüentemente saudado por sua ação revolucionária se chama George W. Bush.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Clara Allain.


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