São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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+ história

Obra lançada na França narra a "transferência" de um forte português da costa africana para o Brasil

A cidade que cruzou o Atlântico

JEAN SOUBLIN

Foi o último forte dos portugueses na costa marroquina. Haviam semeado meia dúzia desses a partir do final do século 15, escalas úteis para a África e a Índia, todos retomados pelos mouros cem anos depois. Todos exceto Mazagão (hoje El-Jadida). Durante três séculos, esse entreposto exerceu conscienciosamente seu papel de espinho fincado na carne marroquina. Suportou alguns cercos, organizou algumas incursões de ataque, mas viveu a maior parte do tempo em bom entendimento com as populações locais.


Foi para o Pará que se enviaram os maza-ganitas, como se os consideras-sem especiali-zados em fronteiras ameaçadas


Desenvolveu-se aí uma espécie de cultura de posto-avançado feita de tenacidade, de febre obsidional e gosto pelo heroísmo inútil. Um pequeno grupo, uma praça-forte na fronteira, e do outro lado um vazio ameaçador, tentador, angustiante. No tempo das Luzes, havia lá aristocratas em temporadas curtas que tentavam se fazer notar, ou esquecer, conforme o caso. Camponeses militarizados à força, assediados pelas corvéias e pelas escaramuças, e colonos instalados havia muitas gerações. Como em todo o império, era grande o número de religiosos.

Turbulências portuguesas
Tudo isso, naturalmente, custava caro aos portugueses. A época era muito difícil para o pequeno reino. Ele havia sofrido o terremoto, os ingleses ameaçavam as Índias, a Espanha questionava as fronteiras do Brasil, cujas minas de ouro começavam a declinar, e a prisão brutal dos jesuítas havia perturbado consciências. Para manter o controle, era necessário todo o punho de Pombal, ajudado por seus dois irmãos, um dos quais cuidava da Inquisição, e outro, das colônias.
Este último, Mendonça Furtado, decidiu em 1769 cortar os custos, abandonar Mazagão e sua fortaleza depois de tê-la preparado numa última emboscada aos mouros: muitos morreram. Mas o que fazer da guarnição? Todas aquelas pessoas -cerca de 2.000- não sabiam fazer muita coisa além de suportar sítios e contestar seus dirigentes: um punhado de heróis ruidosos totalmente inadequados à vida na metrópole e certamente não às urbanidades de Lisboa. Todo mundo no governo concordava. Além disso, eles vinham na maior parte dos Açores, ou do norte de Portugal. Instalaram então esses refugiados longe do centro, no bairro de Belém, à sombra do esplêndido mosteiro dos Jerônimos.
Ali ficaram seis meses, e parece que muitos morreram na maior indigência. Mendonça Furtado conhecia bem o Pará, a Amazônia portuguesa, que ele havia governado durante seis anos. Sabia como essa colônia carecia de braços e também conhecia, e temia, o apetite dos vizinhos espanhóis e sobretudo franceses que cobiçavam faixas desse território subpovoado.
Foi portanto para o Pará que se enviaram -se deportaram- os mazaganitas, como se os considerassem especializados em fronteiras ameaçadas. Eles formavam um grupo considerável, cuja unidade se quis preservar, às vezes sob coerção, para manter a imagem de um punhado de heróis coloniais, símbolo glorioso, mesmo que no fim das contas houvessem atirado a toalha.

Heróis envelhecidos
Construiu-se então para eles uma cidade, alguns barracões à beira de um braço de rio: a Nova Mazagão, não longe da atual Macapá. Ali eles apodreceram lentamente, entre heróis envelhecidos, sem nunca mais terem a oportunidade de defender alguma coisa.
O historiador Laurent Vidal conta [em "Mazagao - La Ville qui Traversa L'Atlantique Du Maroc à L'Amazonie (1769-1783)" (Mazagão - A Cidade que Atravessou o Atlântico do Marrocos à Amazônia, Aubier, 320 págs., 22,50 - R$ 66)] essa história magnífica com uma competência meticulosa. Descobriu fontes inexploradas e cuidou de sua iconografia. Mostra bem o destino posterior dos dois Mazagão, cuja possessão, no tempo do protetorado, era qualificada de Deauville marroquina.
Ele salienta o papel do nacionalismo português na historiografia subseqüente do posto-avançado, muito presente na literatura nacional do século 19, enumera até as festas locais que ainda hoje, nas aldeias amazônicas, mitificam o passado. Mas é feliz sobretudo ao se interrogar sobre o ponto de vista dos atores, das vítimas -o que na Acádia, na mesma época, chamava-se de "perturbação". Era sobretudo gente simples, as fontes são naturalmente muito tênues, e o autor deve conjeturar, o que faz com humanidade e compaixão.

Este texto foi publicado originalmente no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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