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TROPA DE ELITE
Futebol une a aparência de igualdade da festa popular
ao teatro político dos organizadores,
constituindo-se em símbolo da "sociedade do espetáculo"
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A pátria já calçou as
chuteiras. Melhor
dizendo, parte da
pátria: o cidadão comum torna-se espectador de um jogo político-econômico, de agora à Copa do
Mundo de 2014, a ser realizada
no Brasil. Para Flavio de Campos, pesquisador da história sociocultural do futebol, o problema está no "cinismo" com
que se assiste ao evento e suas
potenciais conseqüências
-econômicas, urbanísticas e
de corrupção.
Campos, professor no departamento de história da USP,
ressalta que, "numa sociedade
em que cotidianamente as
fronteiras entre o público e o
privado são tênues e promíscuas", o brasileiro corre um risco maior do que ser relegado à
arquibancada: pode se tornar
"ator figurante de um grande
espetáculo que submete as pessoas pelas imagens e cujo roteiro e direção não se ousa questionar". Leia abaixo trechos da
entrevista que concedeu à Folha por e-mail.
FOLHA - A candidatura única do
Brasil à Copa causou incômodo, a
ponto de ser abolida a rotatividade
de continentes. Como podemos relacionar as constantes mudanças de
regra da Fifa -outro exemplo seria
a necessidade de o campeão disputar as eliminatórias, reinstituída
quando o Brasil era detentor do título- aos procedimentos das ligas diplomáticas de nações?
FLÁVIO DE CAMPOS - Não chamaria de incômodo, mas de pretexto para que os europeus possam sediar mais Copas. A expansão do futebol além da Europa e das Américas, politicamente articulada por João Havelange na década de 1970, teve, como conseqüência, a necessidade de permitir a realização de Copas na Ásia (Coréia do
Sul/Japão em 2002) e na África
(África do Sul em 2010).
Vale lembrar que a alternância entre os continentes já foi
quebrada por força das relações
diplomáticas internacionais na
década de 1930, com a realização de dois mundiais em território europeu, significativamente sediados por países que
se enfrentariam na Segunda
Guerra Mundial: Itália (1934) e
França (1938).
Na década de 1950, situação
análoga: Suíça (1954) e Suécia
(1958). Veja que a proporção é
de dois para um, levando-se em
conta as Copas do Uruguai
(1930) e do Brasil (1950). Entre
1958 e 2006 ocorreram 13 Copas, sete delas disputadas na
Europa.
Ou seja, a alternância se restringe a uma Copa na Europa e
outra fora, qualquer que seja o
continente.
A exceção ocorre agora, entre
2010 e 2014. Pela primeira vez,
haverá duas Copas consecutivas disputadas fora do continente europeu. Assim, o fim da
rotatividade não é uma mudança de regras.
Na verdade, é a confirmação
de uma prática que procura
manter a realização de um dos
maiores espetáculos contemporâneos (e dos mais rentáveis)
nas fronteiras de maior concentração de capital (em termos do futebol), de jogadores
renomados e de clubes importantes: a União Européia.
FOLHA - O sr. supõe que, em nossas
atuais condições sociais, políticas,
de segurança e de organização esportiva, ter essa oportunidade, que
acarretará vultosa transferência de
recursos, ficará na história como
uma vitória do Brasil ou como um
mau investimento?
CAMPOS - Há uma vultosa
transferência de recursos públicos anunciada pelas autoridades federais e estaduais.
Mais incrível do que a maneira como a burguesia brasileira
adora brincar de capitalismo
com recurso públicos é o cinismo em relação a essa prática
consagrada, disseminado na
imprensa e na sociedade.
Evidentemente, a construção de estádios modernos, a
melhora dos transportes públicos, a questão da segurança poderiam fazer parte de um interessante projeto de intervenção e inclusão social a partir do
apelo esportivo representado
pela realização de uma Copa do
Mundo e pelo volume de capital envolvido. Um projeto que
não se encerrasse em 2014.
Mas, até o momento, parecem-me operações cosméticas,
circunstanciais e desarticuladas, em sintonia com a característica do governo Lula.
A inauguração dos estádios,
repaginados ou não, seguirá a
lógica municipal de quem inaugura um chafariz. Aliás, algo
que o presidente já fez aqui em
São Paulo, no parque Ibirapuera, ao lado da também cosmética ex-prefeita Marta Suplicy
[2001-2004].
Se o Brasil vencer a Copa,
apesar das vozes dissonantes, o
mau uso do dinheiro público
será abafado duplamente. De
um lado, pela euforia do sucesso esportivo. De outro, pela hipocrisia de todos aqueles que
engordaram suas já polpudas
contas bancárias.
FOLHA - Com o ufanismo estimulado pelas autoridades, assistiremos
daqui até 2014 à ascensão de um
"nacionalismo de chuteiras"?
CAMPOS - A Copa de 2014 já começou. O nacionalismo de chuteiras já foi calçado por jornalistas, locutores, dirigentes, autoridades e empresários.
É significativo como um dos
espaços de apropriação dos
símbolos nacionais -prerrogativa das elites brasileiras até a
década de 1920- como é o futebol tenha se tornado uma das
expressões da nossa "comunidade imaginada", posta à prova
muito mais nos campos de futebol do que em outras áreas.
A partir de agora, temos, no
entanto, farto material para
pensar as relações sociais no
Brasil.
A entrevista coletiva concedida por Ricardo Teixeira, presidente da CBF [Confederação
Brasileira de Futebol], logo
após a oficialização da Copa de
2014 [na terça-feira passada],
foi modelar, deixando transparecer a máxima "você sabe com
quem está falando?", quando
interpelado por alguma pergunta mais crítica, em geral formulada por jornalistas estrangeiros. É claro, porque havia
uma legião de jornalistas "chapa-branca" que não ousariam
fustigá-lo.
FOLHA - O sr. acha inevitável que,
como conseqüência, os políticos tenham sua vida facilitada? Ou temos
razões para crer que a sociedade
brasileira possa evitar que a preocupação com a Copa enfraqueça o
combate à corrupção?
CAMPOS - Não só os políticos,
mas diversos setores da sociedade. Os governos FHC e Lula
completaram a incorporação
de setores das elites até então
alijados das estruturas de poder. A sanha pragmática que
orientou suas decisões os levou
a reproduzir velhas práticas da
política brasileira, com alianças espúrias, trocas de favores,
tolerância e incentivo a esquemas escusos, como carreirismo
e aparelhismo.
Diante disso, numa sociedade em que cotidianamente as
fronteiras entre o público e o
privado são tênues e promíscuas, a leitura política leva a
uma perversa sensação de que
a corrupção é invencível e inevitável, alimentada ainda mais
pela enxurrada de denúncias
semanais.
E, o que é pior, provoca um
efeito apático do ponto de vista
das iniciativas políticas, transformando o cidadão num espectador.
Ou, o que é até mais pernicioso, num ator figurante de
um grande espetáculo que submete as pessoas pelas imagens
e cujo roteiro e direção não se
ousa questionar.
O show não pode parar. Copa
do Mundo, para "vingar" a derrota diante dos uruguaios em
1950, para "argentino nenhum
botar defeito", como afirmou
Lula, e para provar que temos
condições de organizar uma
festa com a qualidade e o requinte do Primeiro Mundo.
FOLHA - As festas da Copa do Mundo tomaram o lugar dos cortejos
reais, seja como espetáculo, seja como veículo de manipulação social?
CAMPOS - Há um sentido de
festa nas atividades esportivas,
mais pronunciado no futebol
em razão de sua disseminação
mundial. O calendário do futebol, a preparação e a seleção
realizada durante as eliminatórias. A Copa é o momento mais
intenso, que obedece à lógica
de uma sociedade do espetáculo, como sugeriu Guy Debord
[1931-94, pensador francês].
Cria tempos extraordinários
em contraposição aos tempos
ordinários do cotidiano. Combina características das festas
tradicionais, onde as fronteiras
entre atores e espectadores são
frágeis, e características dos espetáculos eruditos, em que os
espectadores estão apartados
completamente da cena principal, realizada pelos atores.
Assistir a uma partida de futebol, num estádio, não é apenas acompanhar os lances dos
jogadores. As ações e reações
das torcidas, as coreografias, os
hinos, palavras de ordem, símbolos e manifestações criam
um ambiente de festa.
Há uma abolição temporária
de diferenças sociais, uma integração numa comunidade
maior (pátria) ou menor (torcida de um clube).
Ao mesmo tempo há diferenciações demarcadas, como os
espaços especiais ocupados por
privilegiados (tanto as tribunas
quanto as cadeiras numeradas
e até mesmo o centro das torcidas organizadas), que reafirmam as diferenças sociais.
FOLHA - No mundo das logomarcas, os escudos de times serão os últimos herdeiros dos brasões da heráldica tradicional?
CAMPOS - Há semelhanças, sem
dúvida. A heráldica tornou-se, a
partir do século 12, uma forma
de identificação dos cavaleiros
medievais, que decoravam escudos e armaduras com cores e
distintivos especiais, com alusão a animais, senhorios, flores,
árvores e seres monstruosos ou
imaginários. Era parte daquilo
que se denominou "reação folclórica", com o resgate e a disseminação de temas míticos
pagãos como origem de genealogias medievais.
Muitos clubes europeus, como o Real Madrid [Espanha],
Sporting [Portugal] e Chelsea
[Reino Unido] possuem emblemas que revelam a presença de
elementos semelhantes aos da
heráldica tradicional.
No Brasil, a maior parte dos
clubes tem emblemas mais
simplificados, com funções de
identificar as origens dos clubes, mas apresentando apenas
as iniciais, as cores ou o próprio
nome. Note-se, no entanto, como exemplos contrários, os
emblemas do Sport Club do Recife (leão), do Paraná Clube
(gralha), do Cruzeiro (constelação) e do Cene, do Mato Grosso
do Sul (Pégaso).
FOLHA - A regularidade do São
Paulo Futebol Clube assegurou a ele
o quinto título brasileiro. A preferência pelo torneio de pontos corridos sobre as decisões em "finalíssima" pode ser vista em paralelo com
a passagem da modernidade romântica, "trágica", à racionalidade
contemporânea, "tecnocrática"?
CAMPOS - Não penso assim.
Acho que o campeonato de
pontos corridos estabelecido
na Inglaterra em 1888 não é
tecnocrático.
Tal fórmula reduz o componente sorte ("alea"), que é salientado quando se disputa um
título numa única partida ou
até mesmo numa melhor de
três. E os clubes que têm melhor planejamento e melhor organização tendem a obter melhores resultados.
FOLHA - Na era do videogame, o
esporte "real" perde força no imaginário lúdico?
CAMPOS - Acho que não. Vivemos numa sociedade lúdica, como sugeriu [o economista francês] Alain Cotta. Os elementos
lúdicos estão disseminados nos
programas de TV, nas reuniões
familiares, nos jogos e esportes
em geral.
Os games eletrônicos reproduzem um universo imaginário
que contagia e atrai. Que ilude,
porque o lúdico se sustenta a
partir de uma situação ilusória,
que cria uma ordem especial,
um espaço lúdico, com tempos,
espaços, regras e valores específicos e, muitas vezes, diferentes daqueles da vida cotidiana.
É por isso que o grande inimigo do jogador não é o adversário trapaceiro. Este é apenas
um adversário que está de tal
modo tomado pela ilusão do jogo que é capaz de tudo para
vencê-lo.
O inimigo é o desmancha-prazeres, aquele que aparece na
sala quando o torcedor de futebol está desesperado porque
seu time está perdendo e, surpreso, lhe pergunta: "Por que
tanto descontrole diante de um
simples jogo?".
O inimigo é aquele que tenta
acabar com a ilusão do jogo. Por
mais sofisticado que seja o game eletrônico, é difícil imaginar algo tão excitante quanto
assistir a uma partida de futebol num estádio lotado. Mesmo
que seja tudo ilusão.
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