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Uma idéia no lugar
Espetáculo
em Zurique criou super-realidade que fundiu nacionalismo democrático
da Copa
de 1950 com
o ufanismo
de 1970
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Paulo Coelho, Dunga,
Ricado Teixeira, dona Marisa, Aécio,
Martha Suplicy, Lula
e Globo. Vai ter tanta
simbologia assim em Zurique!
Para a alegria da galera e o
deleite dos empresários e empreiteiros nacionais, a tropa da
elite da nação trouxe a Copa de
volta. Era o que precisávamos
para acreditar que a modernidade nos deu uma segunda
chance e que seremos amanhã
a China que fomos anteontem.
O mito JK renascido em
FHC e transmutado em Lula
reviverá no mesmo Maracanã
construído pelo sonho desenvolvimentista.
Com o milagre de Dunga (jogador cascudo que num passe
de mágica se fez "professor" da
maior seleção que este país terá) e a fé refeita no progresso
dessa terra em que o Cristo Redentor é uma das maravilhas
do mundo, o anjo vingador mudará a história.
Teremos a vingança de 1950,
aquele momento em que o Brasil ia dar certo, mas perdeu a
Copa por "culpa" de um brasileiro pobre, negro e de codinome Barbosa. O mago Paulo
Coelho e o "baixinho" (ah, as
maravilhas da proximidade)
Romário -este o mago dos pequenos espaços (e das negociatas vascaínas) e craque globalizado- estavam lá para garantir
que a mágica será completa.
Pelé não estava lá, mas você
há de convir que ele é meio
"modernista" demais (digamos
que restará como uma das relíquias do getulismo).
Nunca antes na história deste país o nacionalismo foi tanto
uma idéia no lugar.
Desde o "gente que faz" tucano, passando pelo brasileiro
que não desiste, pelas minisséries da Globo, pela alegria de
Galvão Bueno, pelos índices
em alta do Banco Central, pelos
índices em baixa de criminalidade do governo paulista (sempre tão questionados, mas
quem se importa?), pelo sucesso de Kaká e dos ronaldos, até a
retomada do cinema "de qualidade": passadas as privatizações, voltamos a aceditar em
nós mesmos de tal maneira que
até empresários andam sacando a honra da nação para deter
uma certa "invasão espanhola".
Mas quem somos nós? O livro "A Cabeça do Brasileiro"
[de Alberto Almeida, ed. Record] e a revista "Veja" nos
mostram que somos dois.
A elite educada é democrática (não sei se Luciano Huck fez
faculdade, mas ele é educadinho e democrata), e o povo é
um poço de atraso e preconceito (seria o caso de Ferréz, que é
escritor, mas não fez faculdade,
e escreve o que passa na cabeça
de gente ignorante e bárbara)
-e a esquerda não sabe de nada disso.
Andam nos dizendo todos os
dias que o péssimo salário dos
professores não tem nada a ver
com a péssima qualidade de
ensino. Até o diretor de "Tropa
de Elite" [José Padilha] jura
que pobreza não tem nada a ver
com violência. A realidade é
mais "complexa".
Mas o que é "realidade" para
a elite e para a tropa? Uma pesquisa mundial da consultoria
Nielsen mostrou que o Brasil
(ao lado das Filipinas) é o país
que mais acredita no que a publicidade diz que as coisas são.
Somos fanáticos fundamentalistas da imagem manipulada:
acreditamos nos comerciais assim como os talebãs acreditam
em Alá.
Segundo a pesquisa, o "consumidor" brasileiro acredita
mais na referência vinda da TV
do que na de um amigo. Nossa
cordialidade foi transferida para o departamento de marketing. A propaganda é o ópio da
tropa e da elite (a pesquisa foi
feita com internautas, e não
com desdentados analfabetos).
E foi esse espetáculo, essa
máquina de criar super-realidades, que vimos sacramentar
em Zurique o casamento do
nacionalismo da Copa de 50
com aquele da Copa de 70.
Uma pergunta "estrangeira"
sobre violência quase estraga a
festa. Mas tínhamos Ricardo
Teixeira para defender as
honras nacionais. Violência
tem em qualquer lugar, ele responde a uma jornalista canadense (sic).
Mas o que ele não disse, e
nem precisava, é que nosso novo nacionalismo se legitima de
outra maneira: temos a elite
pura (ainda que cansada), bem-pensante e democrática, a elite
ex-sindical no governo, a elite
do futebol mundial e agora
também a "tropa de elite" da
elite. O Brasil agora é um país
de elite, e a nossa combinada
ação elitista irá nos levar para
dentro da elite mundial.
Mas e a realidade de Terceiro
Mundo? Isso a propaganda não
vende, portanto não existe, é só
uma permanência do pensamento de esquerda que também já morreu.
Crença nas imagens da propaganda, nas virtudes da elite
rica e letrada e nos deméritos
do povo ignorante: tudo isso
mais o nacionalismo tresloucado que assistimos na TV, altar
da nossa fé, constituirá a lona
que cobrirá esse circo de horrores e delícias que será o Brasil
daqui até 2014.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de história
contemporânea e de história social da arte na
Universidade de São Paulo.
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