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+ brasil 500 d.C.
Nas Festas do Divino o impossível se torna realidade: as crianças governam o mundo, e as prisões e o trabalho são abolidos
O reino do imprevisível
Hermano Vianna
A "fusão" entre America Online e
Time Warner e a compra da EMI
por esta última pode ser muito
bem pensada como um sinal evidente do fim do mundo. Contudo, mesmo imersos no delírio escatológico cibercapitalista, é imperioso concordar
com o fato de que o mundo ainda não
acabou. Aliás, com a chegada do ano
2000, pouca coisa realmente, ou virtualmente, mudou.
Eu fui ver a queima de fogos em Copacabana na passagem do ano. Talvez tenha durado alguns poucos, pouquíssimos, minutos a mais do que nas viradas
de ano passadas. Talvez houvesse alguns
poucos, pouquíssimos, milhares de festeiros a mais na praia. Até que a multidão
se comportou muito educadamente, fingindo que estava vivendo um momento
extraordinário na história da humanidade. Mas dava para perceber, sob a chuva
fina e todas as manifestações de felicidade, uma corrente de frustração reprimida, ou rapidamente sublimada: afinal, o
grande espetáculo (o Apocalipse) estava
mais uma vez adiado.
Deveríamos ter aderido à proposta feita em 1988 por Jean Baudrillard no jornal
francês "Libération": "Lançar uma petição coletiva [..." para que sejam suprimidos por antecipação os anos de 1990 e
que nós passemos diretamente de 1989
ao ano 2000. Pois, este final de século já
estando aqui, com todo seu "pathos" necrocultural, suas lamentações, comemorações, museificações que não acabam
nunca, será que vamos nos entediar por
mais dez anos nesta galera?".
Seguir esse conselho "irado" teria nos
poupado muitos outros aborrecimentos,
inclusive o do bug do milênio. Cortar a
década final do último século era uma
sugestão de inspiração ironicamente milenarista.
Praia vazia
Em outro artigo, este de
1985, intitulado "O Ano 2000 Não Passará", Baudrillard produziu a seguinte declaração niilista: "O final de século está
diante de nós como uma praia vazia". Na
minha experiência, o final de século está
agora para trás, como uma Copacabana
cheia. Mas não há muita diferença entre
as duas imagens. Algo de fundamental
falta a ambas: "Alguma coisa como um
desafio ao tempo", um curto-circuito da
história que nos levasse furiosamente ao
seu fim (o fim da história) ou à chegada
imediata do Reino dos Céus anunciado
como próximo por Jesus Cristo.
A impaciência com o lento, sofrido e
entediante desenrolar da história motivou o aparecimento de muitas heresias:
"Os primeiros tempos do cristianismo
serão marcados por uma resistência veemente, mesmo entre os crentes, em ver a
chegada do Reino de Deus transportada
para um futuro indefinido".
Essa resistência, mais ou menos veemente, continuou provocando acontecimentos históricos decisivos, não por findar com a história, mas muitas vezes por
complexificá-la, arrastando paradoxalmente todo o planeta para suas duras
leis, tendo inclusive servido de base
"ideológica" (como apontou o historiador Jean Delumeau no seu livro "Mil
Anos de Felicidade", Companhia das Letras) para as grandes navegações portuguesas e o eventual "achamento" do Brasil. Vejamos, como num videoclipe acelerado, o que nossos 500 anos de história
têm a ver com o desejo de fim da história.
Uma nova era
Seitas heréticas e ordens monásticas diversas foram criadas
a partir de interpretações não-ortodoxas
de versículos da Bíblia, como o Apocalipse (20, 1-7), que serve de inspiração
principal para todas as vertentes milenaristas. Um anjo desce dos céus, algema o
Dragão e a Serpente e os acorrenta por
um milênio (daí o termo milenarismo).
Não é ainda a chegada do fim da história,
mas o início bem-aventurado do fim:
"Aqueles que não tinham adorado a fera
ou sua imagem" viveram "uma vida nova e reinaram com Cristo por mil anos".
Outro texto profético que inspirou
muitas heresias foi a interpretação, feita
por Daniel (Daniel, 2, 1-49), do sonho do
rei Nabucodonosor com a grande estátua de "pés de barro" (na verdade, mistura de barro e ferro) representando os cinco reinos do mundo, sendo o quinto suscitado por Deus, "um reino que jamais
será destruído e cuja soberania jamais
passará a outro povo".
Inúmeros cristãos, das mais variadas
tendências, misturaram essas profecias,
e fizeram seus próprios cálculos para
acelerar ou apenas detectar a mais que
desejada chegada do Reino dos Céus.
Um exemplo importante para encurtar o
caminho que nos levará ao Brasil: Joaquim de Flora, monge da Ordem de Cister, que viveu o final do século 12, acreditava na sucessão de três reinos -o do
Pai, o do Filho, o do Espírito Santo- e
anunciava para breve a instauração desse terceiro reino, purificando a Igreja.
Tanto a idéia de um Quinto Império,
retirada das profecias de Daniel, quanto
a da próxima vinda do Espírito Santo, influência joaquinista, tiveram decisiva e
mobilizadora repercussão na cultura lusitana, gerando outras tantas idéias e
costumes dos quais ainda somos "tributários". Jean Delumeau afirma que "Portugal foi atravessado do século 15 ao 17,
inclusive, por profundas correntes milenaristas, sem o conhecimento das quais a
história desse país é incompreensível".
Caravelas abençoadas
Não foi um
consumo passivo de heresias importadas: Portugal encontrou uso próprio para essas idéias, colocando-se no centro
dos acontecimentos que iriam instaurar
no mundo, descoberto por caravelas
abençoadas pela Cruz da Ordem de Cristo (herdeira da Ordem dos Templários,
por sua vez herdeira, via São Bernardo,
da também austera Ordem de Cister),
um reino "universal e messiânico".
Na sua "História do Futuro" (que pode
ser lida via Internet, graças ao trabalho
voluntário de Richard Zenker e ao excelente projeto Textos Literários em Meio
Eletrônico, do Núcleo de Pesquisas em
Informática, Linguística e Literatura, da
Universidade Federal de São Carlos), depois de comentar detalhadamente as
profecias de Daniel e ao falar sobre o
Quinto Império vindouro, o padre Antônio Vieira (difusor e metamorfoseador
do joaquinismo, segundo Maria Leonor
Carvalhão Buescu) resume séculos de
aventuras e esperanças:
"A melhor parte dos venturosos futuros que se esperam e a mais gloriosa deles será não somente própria da Nação
portuguesa, senão única e exclusivamente sua. Portugal será o assunto, Portugal
o centro, Portugal o teatro, Portugal o
princípio e fim destas maravilhas; e os
instrumentos prodigiosos delas, os Portugueses".
"Encantaria" local
O padre Vieira
escreveu o início dessa "História do Futuro" no Maranhão, justamente o Estado
brasileiro que, por motivos pouco claros
(não estou sugerindo nenhuma conexão
esotérica), mais manteve vivos, em várias de suas tradições populares, determinados aspectos do milenarismo. Há
inclusive, na ilha dos Lençóis, uma vertente da "encantaria" local em que fiéis
são possuídos por espíritos de membros
da família real portuguesa.
Há também a crença em um touro,
com uma estrela pintada entre os chifres,
que vaga nas noites de suas praias: quem
conseguir enfiar uma espada na estrela
vai ver o touro transformado em dom
Sebastião, e a ilha, na Nova Jerusalém.
É no Maranhão que também encontramos, com maior devoção popular, diversos tipos de homenagens ao Espírito
Santo e a seus "Impérios". Esse culto, segundo vários autores, teria sido introduzido em Portugal, junto com outras
idéias de Joaquim de Flora, pela rainha
Isabel, "a santa".
Sua difusão, também nos Açores, foi
duradoura. Tanto que até o século 19, como está descrito no interessantíssimo "O
Império do Divino", livro de Martha
Abreu (Nova Fronteira, 1999), a Festa do
Divino realizada no campo de Santana,
Rio de Janeiro, era a maior e mais importante festa popular brasileira, na qual,
além da celebração sagrada, havia teatro,
valsa, batuque e danças de bonecos ("autômatos negros dançando jongo"!), reunindo "a plebe, a burguesia, o escravo e a
família, o aristocrata e o homem de letras" (a influência do Divino nas artes
populares brasileiras está mapeada em
outro livro precioso: "Divino", de Eduardo Etzel, ed. Kosmos e Giordano).
A escravatura do trabalho
Agostinho da Silva, o mais indispensável professor luso-brasileiro desses últimos 500
anos (e que por isso mereceria todas as
nossas melhores homenagens nas comemorações que estão por vir), foi também
o pensador que tirou as consequências
mais radicais dessa herança milenarista
portuguesa. Nos seus livros e entrevistas,
as lições do joaquinismo ganham uma
interpretação desconcertante e libertadora. O Pai teve o reino da ordem, do
previsível, do regular. O Filho instaurou
o reino do perdão, eliminando alguns
efeitos prejudiciais da ordem. O Espírito
Santo completará o trabalho do Filho,
instaurando o reino do imprevisível,
"solto de qualquer limitação".
Nas Festas do Divino, segundo Agostinho da Silva, o povo português, em seu
"mais autêntico e espontâneo culto",
identifica as limitações que cerceiam a
imprevisibilidade e propõe o impossível
que se torna realidade no dia festivo: as
crianças devem governar o mundo; o
que se consome de básico deve ser abundante e gratuito; as prisões devem ser
abolidas.
Nosso professor libertário, com a autoridade singela de quem lutou tanto contra a ditadura de Salazar quanto contra o
regime militar brasileiro, e de quem também ajudou a fundar a Universidade Federal da Paraíba, a Universidade Federal
de São Carlos, a Universidade de Brasília
e o Centro de Estudos Afro-Orientais da
Bahia (onde influenciou o pensamento
de, entre outros novos "professores",
Glauber Rocha), acrescenta: que acabem
os hospitais (porque acabaram as doenças, e a doença dos médicos é "ter clientes"); que tenham fim a instrução obrigatória e os diplomas ("mas pondo todas as
escolas ao alcance de todos"); que seja
abolida "a escravatura do trabalho".
Império das Crianças
Mas, antes
de tudo, que se incentive o imprevisível.
Está no Evangelho segundo São Mateus
(Mateus, 12, 31-32): "Todo pecado, toda
blasfêmia, será perdoado aos homens;
mas a blasfêmia contra o Espírito não
lhes será perdoada. Todo o que tiver falado contra o Filho do homem, será perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito
Santo não alcançará perdão nem neste
mundo nem no que há de vir". Agostinho da Silva define esse único pecado
inexpiável "como aquele que destruísse
o meu poder de ser imprevisível". Então,
território da radical imprevisibilidade, o
Império do Espírito Santo, e das Crianças, seria "o único digno de ser o Quinto
de Vieira e Pessoa, o único capaz de esquecer de vez dom Sebastião".
Se não for pedir demais: seria bom poder esquecer também os conselhos "sinistros" de Jean Baudrillard ou as previsões tolas (de catástrofes ou paraísos) feitas no final do milênio passado. Resumindo: ficam aqui meus mais sinceros
votos de que as festas das próximas viradas de milênio sejam realmente extraordinárias e imprevisíveis. Ou que tudo
possa ser imprevisivelmente Divino e
Maravilhoso.
Melhor: quem resume tudo mesmo é o
final do samba-enredo "Brasil, Teu Espírito É Santo" (autoria de Mauro, Claudinho Strutline, J. Bodão e Márcio do
Swing!), com o qual a Caprichosos de Pilares desfila hoje no Sambódromo, no
Rio: "Capricha na virada, amor, amor. O
futuro é todo seu. Teu Espírito é Santo, é
Guerreiro. Sou mais você, valeu".
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo
Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (Jorge Zahar).
Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da
Folha.
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