São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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O papa militante



Karol Wojtila reage ao neoliberalismo e prega nova política fora do político
ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

Alguns anos atrás escrevi uma matéria cujo título era "A Quinta Internacional de Papa Wojtyla". Ironizava, naquele artigo, as esquerdas parlamentares -européias e americanas- que o papa Wojtyla, numa encíclica social, superara com grande ímpeto. Wojtyla sustentava que o neoliberalismo triunfante, longe de ser uma teoria econômico-política aceitável e quase natural, representava um adversário da justiça e dos povos, e que, portanto, tinha de ser combatido, propondo aos trabalhadores e aos humildes outro modelo de sociedade.
O papa da derrota dos sovietes propunha-se (e propunha à igreja militante) a recolher as bandeiras que as Internacionais social-democráticas e comunistas tinham arrastado na lama e tornar a erguê-las na luta contra o neoliberalismo, quando não contra o capitalismo. Nestes últimos meses, Wojtyla retomou a sua campanha, primeiramente em sua abertura anticapitalista durante a viagem cubana e, depois, no último período, numa série de discursos europeus em que, diante do alastrar-se do desemprego, pede que os governos estabeleçam instrumentos excepcionais de intervenção e que garantam, de qualquer modo, o mínimo vital para todo o cidadão.
Mas Wojtyla não se dirige apenas aos governos: o seu programa é um grito de indignação dirigido, como se dizia, à igreja militante; um convite à ação, portanto, dirigido a todos. Será que, após as Internacionais operárias (anárquica a primeira, social-democrática a segunda, leninista a terceira, trotskista a quarta), veremos a Quinta Internacional católico-wojtyliana? Uma Internacional operária e social-católica a denunciar a traição ou, de qualquer modo, os flertes da social-democracia com o neoliberalismo? Uma coisa destas eu até acharia divertida, mas sinceramente duvido que seja uma hipótese realística.
Ainda assim não creio, absolutamente, que tudo isso possa ser tomado por uma simples boutade. Ainda mais que, ultimamente, papa Wojtyla tem enfrentado o problema de outro ponto de vista: ou seja, perguntou-se quais seriam os meios adequados às tarefas que os seus discursos e suas encíclicas propõem. Uma transposição totalmente política. Mas, no mesmo instante em que coloca esta questão, Wojtyla parece eludi-la. Pois, de fato, ele não quer falar às forças políticas, mas ao povo.
Mas aí, para que as suas palavras possam ter um significado e serem ouvidas, para que o povo possa torná-las suas, tem de enfrentar alguns nós, aparentemente abstratos, mas só aparentemente -e de qualquer maneira complexos: que significado tem propor uma ação política, quando a política já não tem valor para as pessoas de moral? Quando -restringindo-se a ação dos governos ao gerenciamento do mando neoliberal mundializado, ou imperial- a política democrática já não tem poder? É neste ponto que as perguntas de Wojtyla cruzam, creio, com as de todas as pessoas, religiosas ou atéias, que observam com perplexidade o atual desdobramento da política mundial e se perguntam como uma política feita pelas pessoas, uma política reorganizada por valores democráticos, poderia renascer nos dias de hoje.
Quanto à resposta de Wojtyla, ela é totalmente explícita. A igreja militante tem de operar para a construção de novas classes dirigentes da política, mas tem de fazê-lo no meio do povo, colocando-se a serviço dos pobres, agindo concretamente para construir alternativas aos regimes sociais do neoliberalismo e da miséria, aos valores induzidos pelo consumismo, às desastrosas consequências do mando monetário no mundo. A indicação central de seu ensinamento é: a nova política constrói-se fora do político.
O que isso significa? Significa que -diante de um político reduzido à corrupção e a uma política imperial que tolhe qualquer autonomia das pessoas e dos povos- a dimensão comum da liberdade, do trabalho e do amor pode (e deve) construir, a partir de baixo, dispositivos de reapropriação da democracia. Dispositivos que, da base, modifiquem a situação social e que, do âmago da sociedade, intervenham contra a corrupção e a pobreza. O homem tem de modificar o seu meio enquanto reproduz a própria vida, de modo livre e solidário. Wojtyla coloca tudo isso a serviço da transcendência e, talvez, de um projeto temporal de igreja.
O episódio da repressão da "teologia da liberação", liquidada por seu ímpeto democrático que a levou a influir sobre as formas da comunidade eclesial, nos induz à suspeita, exatamente no momento em que a igreja torna próprios muitos dos objetivos daquela teologia. Mas, isto posto, permanece o fato de que as indicações de Wojtyla tocam um ponto central: a nova política só pode nascer fora do político; a liberação do destino de miséria que o neoliberalismo nos promete pode ser o fruto de uma nova militância social. E a situação social, o sentir das pessoas estão maduros para esta transposição política. Nestes meses, na França do neoliberalismo triunfante, hipocritamente reelaborado em formas administrativas social-democráticas, desenvolve-se um grande movimento de desempregados e trabalhadores em situação irregular. Pedem uma renda garantida de cidadania.
Estes movimentos atacaram a sociedade, impuseram a sua hegemonia até aos setores garantidos e corporativistas da classe operária, conseguiram o apoio da grande maioria da opinião pública. Mas a característica fundamental é a de terem se originado de um movimento decididamente implantado fora do político. São o produto de uma rede de associações, de grupos, de indivíduos. Representam novos sujeitos (cada vez mais amplos na cena social) que vivem o caráter indistinto de vida e trabalho, de um trabalho que torna a vida precária e a inclina, a toda hora, para a possível pobreza.
Estes movimentos constroem novos parâmetros do político, arrancando-o das mãos da polícia monetária e da disciplina econômica do neoliberalismo, esvaziando a administração estatal de sua legitimação imperial. Novos sujeitos constroem na França um laboratório excepcional para uma nova política, e na Europa já estão se tornando exemplos a ser seguidos. O que isso tem a ver com o ensinamento de Wojtyla? Nada. A não ser que ambos (a experiência de luta dos trabalhadores em situação irregular na França e o ensinamento do papa) se cruzam ao apontar a militância (não na administração, não no sindicato, não na representação parlamentar -mas aquela da multidão) como único poder de um novo exercício de liberdade e justiça. De reconstrução da política democrática também? A hipótese é interessante.


Antonio Negri é filósofo e cientista social italiano. A Ed. 34 lançou no Brasil seu livro "A Anomalia Selvagem". Ele escreve mensalmente.
Tradução de Roberta Barni.



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