São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001 |
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O diário íntimo de Milan Kundera
O escritor tcheco, autor de "A Insustentável Leveza do Ser", escreve sobre o modernismo, o riso e a loucura e discute as obras de Kafka, Robert Musil e Salman Rushdie Pierre Lepape De "Le Monde"
Desde 1986, ano da publicação de "A Arte do
Romance", Milan Kundera recusa conceder
entrevistas, julgando que somente seus romances falam por ele. A pedido do jornal francês "Le Monde", o autor de "A Valsa do Adeus" aceitou
completar o dicionário pessoal que havia iniciado para
uma revista a pedido do historiador Pierre Nora. Ele se
compõe de suas palavras-chave, suas palavras-problema. Palavras novas que aclaram o universo de Kundera.
Nas quais se trata de piadas judaicas e reflexões sobre o
mal, de Salman Rushdie e do mau gosto da história.
Milan Kundera atribui grande importância às palavras. Todos concordarão que isso é normal, em se tratando de um escritor. Um escritor é um homem que sabe pela experiência, pelo ofício, o que as palavras querem dizer e o que elas não dizem. Sua prática lhe ensinou que uma palavra inserida no lugar de outra -ou a
mesma palavra deslocada no interior de uma frase-
pode trair o pensamento e trair quem a enuncia, de forma tão certeira quanto todas as censuras. Ou até de forma ainda mais certeira: a censura deixa um branco, que
a denuncia; a palavra oblíqua não deixa traços. Kundera
recusa abandonar a outros o domínio de suas palavras e
de suas frases. Ele experimentou na pele a traição, tanto
mais temível por ser realizada de boa-fé.
Sem dúvida sua história pessoal contribuiu para radicalizar sua recusa de entrevistas. Milan Kundera se estabeleceu na França em 1975. Tinha 46 anos. Seus dois
primeiros livros -um romance, "A Brincadeira", e um
ciclo de novelas, "Risíveis Amores"- tinham sido publicados, em 1965 e 1968, por uma editora de Praga.
Mais tarde, após a intervenção russa na Tchecoslováquia, os livros de Kundera foram banidos das bibliotecas e das livrarias. Ele próprio foi privado de seu cargo
no Instituto Cinematográfico de Praga.
Se bem que já possuísse um sólido domínio do idioma
francês, Kundera, ao chegar à Universidade de Rennes,
em 1975, ainda não se achava à vontade na expressão
oral francesa. Porém, mais que a sua situação linguística, é a sua situação política que encoraja a empreitada
reducionista por parte dos jornalistas: abandona-se a
obra do escritor, sua concepção pessoal do romance, da
existência humana, da cultura e da história, para se interessar apenas pela sua condição de testemunha: da ditadura comunista, da "Primavera de Praga" e de sua repressão, do futuro dos países sob domínio soviético.
Ele queria falar do que lhe dizia ao coração e ao espírito, da crise da modernidade e do progresso, do papel do
romance -"uma arte nascida do riso de Deus"-, da
situação do homem europeu, em sua existência, sua
identidade e sua história; em sua maneira de amar, rir,
sonhar, recordar, conviver e acolher a morte. Da sobrevida ou desaparecimento do indivíduo, questão maior
de nossa época.
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