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+ Literatura
Simpatia pelo demônio
Autora de "Brokeback Mountain", a escritora Annie Proulx lança novo e elogiado livro de contos nos EUA
IRVINE WELSH
Entre todas as maneiras experimentadas e
testadas que um escritor respeitado pode
usar para apagar o
sorriso satisfeito no rosto de
seu editor quando eles se sentam para um almoço juntos, seria difícil superar as palavras
"meu próximo livro vai ser uma
coletânea de contos".
Pois, embora todos pensemos que contos são uma ótima
idéia -mais ou menos como é
boa idéia salvar os pandas-, a
verdade nua e crua é que nós,
como leitores, preferimos nos
sentar para ler um romance.
Felizmente, alguns autores
de contos são tão bons que se
erguem acima de tais preocupações menores. Alice Munro
[de "Fugitiva"] é uma pessoa
que poderia nos vir à mente.
Outra seria Annie Proulx,
que encontramos em ótima
forma aqui com o novo tomo da
série Contos do Wyoming, "Fine Just the Way It Is" [Bom do
Jeito Que Está, Fourth Estate,
240 págs., US$ 25, R$ 48].
Seria um erro nos deixarmos
enganar pelo título presunçoso
e autocongratulatório: ele tem
um aspecto distintamente irônico. Annie Proulx se especializa em arrancar da vida americana seus revestimentos falsamente simpáticos.
Segredos perturbadores
O conto inicial dá o tom ao livro. Um velho empregado de
fazenda, dando um depoimento num asilo para idosos do
qual nunca mais irá sair, revela
segredos tenebrosos e perturbadores de seu passado, que
sua neta, que está fazendo um
trabalho de compilação do legado familiar, automaticamente "higieniza".
Mas, ao editar a história, eliminando toda a dor e o sofrimento, ela banaliza e nega a vivência de seu avô.
Ele não quer
uma santificação falsa -quer
apenas ser humanizado, tendo
sua história reconhecida.
Assim, um processo que visava a aproximá-lo de sua família
acaba por separá-los no crepúsculo de sua vida. É um trabalho
poderoso, especialmente nos
EUA, onde, desde os tempos
coloniais, muitas pessoas têm
se sentido compelidas a inventar passados totalmente limpos
para si.
Mas Proulx nunca será uma
escritora pudica e reprimida. O
conto seguinte apresenta o diabo, satiricamente, na pessoa de
um construtor imobiliário engajado em um projeto ambicioso para remodelar a terra e o inferno. Lúcifer retorna no conto
"Swamp Mischief" [Picardia do
Pântano], brincando de enganar um ornitólogo ao reintroduzir no Wyoming pterodáctilos manufaturados às pressas.
Talvez não seja coincidência
o fato de Deus estar ausente da
ficção de Proulx, e existe um lado brincalhão na malevolência
de seu Satanás.
Ela o responsabiliza por corromper o engenheiro escocês
James Watt, com isso atirando
todos nós numa vida industrial/tecnológica para a qual somos mal equipados, o que, por
sua vez, nos coloca acelerados
no rumo do inferno.
Gótico moderno
O conto sobre o caubói cantor Archie e sua companheira
Rose é repleto de verdade incômoda, amarga e ao mesmo tempo doce, e "Testimony of the
Donkey" [Depoimento do Asno] é narrativa gótica moderna
das mais sombrias.
É a história dura da corajosa
Catlin, que, depois de brigar
com seu pomposo namorado,
Marc, parte numa caminhada
solitária na natureza selvagem.
A situação de risco em que se
coloca é mundana, mas também sinistra e assustadora.
Mas o clímax da coletânea
vem com "Tits Up In a Ditch"
[Escangalhada numa Vala], a
história trágica da jovem Dakota, que segue seu marido, de
quem estava separada, entrando no Exército.
Sua filha, deixada numa fazenda paupérrima aos cuidados de avós amargurados, morre num acidente agrícola bizarro, enquanto Dakota perde seu
novo amor -e seu braço- numa explosão no Iraque.
Miniépico
Fantástica história contra a
guerra, destituída de qualquer
indício de discurso ou polêmica
proposital, o conto é um daqueles miniépicos tristes, comoventes e habilmente observados que Proulx converteu em
sua marca registrada.
Apesar do tom sombrio, esta
coletânea também é calorosa e
espirituosa, terna e generosa.
Se mais pessoas fossem capazes de escrever contos como estes, o gênero romance correria
sério risco.
IRVINE WELSH é escritor escocês, autor de
"Trainspotting" (ed. Rocco).
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain .
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