São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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+ Literatura

Simpatia pelo demônio

Autora de "Brokeback Mountain", a escritora Annie Proulx lança novo e elogiado livro de contos nos EUA

IRVINE WELSH

Entre todas as maneiras experimentadas e testadas que um escritor respeitado pode usar para apagar o sorriso satisfeito no rosto de seu editor quando eles se sentam para um almoço juntos, seria difícil superar as palavras "meu próximo livro vai ser uma coletânea de contos".
Pois, embora todos pensemos que contos são uma ótima idéia -mais ou menos como é boa idéia salvar os pandas-, a verdade nua e crua é que nós, como leitores, preferimos nos sentar para ler um romance. Felizmente, alguns autores de contos são tão bons que se erguem acima de tais preocupações menores. Alice Munro [de "Fugitiva"] é uma pessoa que poderia nos vir à mente.
Outra seria Annie Proulx, que encontramos em ótima forma aqui com o novo tomo da série Contos do Wyoming, "Fine Just the Way It Is" [Bom do Jeito Que Está, Fourth Estate, 240 págs., US$ 25, R$ 48]. Seria um erro nos deixarmos enganar pelo título presunçoso e autocongratulatório: ele tem um aspecto distintamente irônico. Annie Proulx se especializa em arrancar da vida americana seus revestimentos falsamente simpáticos.

Segredos perturbadores
O conto inicial dá o tom ao livro. Um velho empregado de fazenda, dando um depoimento num asilo para idosos do qual nunca mais irá sair, revela segredos tenebrosos e perturbadores de seu passado, que sua neta, que está fazendo um trabalho de compilação do legado familiar, automaticamente "higieniza". Mas, ao editar a história, eliminando toda a dor e o sofrimento, ela banaliza e nega a vivência de seu avô.
Ele não quer uma santificação falsa -quer apenas ser humanizado, tendo sua história reconhecida. Assim, um processo que visava a aproximá-lo de sua família acaba por separá-los no crepúsculo de sua vida. É um trabalho poderoso, especialmente nos EUA, onde, desde os tempos coloniais, muitas pessoas têm se sentido compelidas a inventar passados totalmente limpos para si.
Mas Proulx nunca será uma escritora pudica e reprimida. O conto seguinte apresenta o diabo, satiricamente, na pessoa de um construtor imobiliário engajado em um projeto ambicioso para remodelar a terra e o inferno. Lúcifer retorna no conto "Swamp Mischief" [Picardia do Pântano], brincando de enganar um ornitólogo ao reintroduzir no Wyoming pterodáctilos manufaturados às pressas.
Talvez não seja coincidência o fato de Deus estar ausente da ficção de Proulx, e existe um lado brincalhão na malevolência de seu Satanás.
Ela o responsabiliza por corromper o engenheiro escocês James Watt, com isso atirando todos nós numa vida industrial/tecnológica para a qual somos mal equipados, o que, por sua vez, nos coloca acelerados no rumo do inferno.

Gótico moderno
O conto sobre o caubói cantor Archie e sua companheira Rose é repleto de verdade incômoda, amarga e ao mesmo tempo doce, e "Testimony of the Donkey" [Depoimento do Asno] é narrativa gótica moderna das mais sombrias.
É a história dura da corajosa Catlin, que, depois de brigar com seu pomposo namorado, Marc, parte numa caminhada solitária na natureza selvagem.
A situação de risco em que se coloca é mundana, mas também sinistra e assustadora. Mas o clímax da coletânea vem com "Tits Up In a Ditch" [Escangalhada numa Vala], a história trágica da jovem Dakota, que segue seu marido, de quem estava separada, entrando no Exército.
Sua filha, deixada numa fazenda paupérrima aos cuidados de avós amargurados, morre num acidente agrícola bizarro, enquanto Dakota perde seu novo amor -e seu braço- numa explosão no Iraque.

Miniépico
Fantástica história contra a guerra, destituída de qualquer indício de discurso ou polêmica proposital, o conto é um daqueles miniépicos tristes, comoventes e habilmente observados que Proulx converteu em sua marca registrada. Apesar do tom sombrio, esta coletânea também é calorosa e espirituosa, terna e generosa. Se mais pessoas fossem capazes de escrever contos como estes, o gênero romance correria sério risco.


IRVINE WELSH é escritor escocês, autor de "Trainspotting" (ed. Rocco). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain .


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