São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Colunas, bombas e cigarros

Antologia traz textos jornalísticos de George Orwell que ajudam a esclarecer seu processo criativo

SEAN FRENCH

No final dos anos 30, George Orwell estava planejando sua obra-prima, uma "saga épica" que teria por título "The Quick and the Dead" [Os Rápidos e os Mortos]. Ele foi impedido de escrevê-la por quase todos os obstáculos imagináveis.
Acima de tudo, havia a guerra, com todas as privações e perturbações que acarretava, ainda que ele tenha desempenhado papel militar modesto, no posto de sargento.
Orwell se casou com Eileen, e não demorou para que o carrinho de bebê no corredor se concretizasse, na forma de Richard, o filho que adotaram. Ele já estava sofrendo da doença respiratória fatigante que viria a matá-lo, mas continuava a fumar quantidade heróica de cigarros. Ao mesmo tempo, estava produzindo uma quantidade espantosa de peças jornalísticas, mas mesmo assim escreveu "A Revolução dos Bichos" [Globo] e "1984" , obras-primas culturais.
E o jornalismo que produzia era igualmente excelente, como demonstra "Orwell in "Tribune'" [Orwell no "Tribune", ed. Politico, org. Paul Anderson, 400 págs., 19,99 libras, R$ 82]. Esta reveladora antologia demonstra de que maneira os diferentes aspectos da imaginação de Orwell interagiam.

Reuniões editoriais
Pouco depois de concluir "A Revolução dos Bichos", aceitou o posto de editor literário e colunista no semanário esquerdista "Tribune".
A primeira de suas colunas "As I Please" [Como Eu Preferir] foi publicada em 3/12/ 1943. Ele as publicou regularmente até fevereiro de 1945, quando tirou uma licença de oito meses, durante a qual visitou a Europa continental como repórter do "Observer" (e conheceu Hemingway em Paris).
Os entusiastas de Orwell já terão lido boa parte dessa antologia em outras coleções. O que fascina, aqui, é ler o trabalho dele como jornalista ativo, escrevendo regularmente para uma mesma publicação. Ele participou de reuniões editoriais, encomendou resenhas a outros escritores e empreendeu uma tentativa frustrada de publicar contos, selecionados por meio de um concurso.
Mas acima de tudo havia as colunas. Toda semana escrevia sobre o tema que lhe ocorresse: a impopularidade dos soldados americanos no Reino Unido, o absurdo dos abrigos contra bombas, a lista anual de honrarias da coroa britânica e a feiúra das fotografias dos agraciados. Ele criticou o anti-semitismo e o costume de dobrar a bainha das calças para cima, as ferrovias britânicas e os especialistas da BBC. Pediu aos leitores que identificassem citações. Lamentou a volta das grades às praças londrinas.
A cada semana, é possível acompanhar suas inspirações tomando forma. Protesta contra a propaganda, a manipulação das massas, a esqualidez da vida na Londres da Segunda Guerra e do pós-guerra, os absurdos da burocracia e o crescimento das grandes potências, temas que viriam a ser parte da matéria-prima de "1984".

Ausências notáveis
Para um escritor aparentemente tão pessoal, há algumas coisas notáveis pela ausência. Demonstra fascínio pelas minúcias da história literária, mas não existe menção a romances, peças ou música clássica.
Durante a pausa que fez em 1945, a guerra acabou e duas coisas importantes aconteceram em sua vida. Depois de ser recusada por vários editores (entre os quais, Eliot), "A Revolução dos Bichos" finalmente foi publicada e obteve sucesso instantâneo. E Eileen, a mulher de Orwell, morreu repentinamente. Quando retomou suas colunas para o "Tribune" algo havia mudado.
Os textos já eram bons, antes, mas nesse período, em seqüência quase ininterrupta, saíram colunas clássicas como "Books vs. Cigarettes" [Livros versus Cigarros], "The Decline of English Murder" [O Declínio do Romance de Mistério Inglês], "Some Thoughts on The Common Toad" [Algumas Reflexões sobre o Sapo Comum"], "A Good Word for the Vicar of Bray" [Um Elogio ao Vigário de Bray] e "Confessions of a Book Reviewer" [Confissões de um Resenhista de Livros].
Trata-se de alguns dos melhores ensaios já escritos em inglês, e eles parecem ainda mais espantosos quando, ocasionalmente, surge uma queixa banal sobre a escassez de relógios no pós-guerra. Em 4/4/47, Orwell escreveu sobre a possibilidade de cultivar tabaco na Inglaterra (o problema não era a falta de sol, disse ele de maneira implausível, "mas alguma deficiência na terra"), e se afastou do jornal definitivamente.


Este texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.


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