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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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+ brasil 503 d.C.

As duas vidas de Carpeaux

Luiz Costa Lima

País de memória curta, o nome de Otto Maria Carpeaux (1900-79) cada vez mais soa apenas para os que se aproximam da velhice e conheceram os livros que publicou no Brasil, a partir de 1942. Uma das poucas exceções que permitem romper com o muro de silêncio é o livro de Mauro Souza Ventura: "De Karpfen a Carpeaux" (ed. Topbooks). Seu grande mérito consiste em ter tido acesso ao que o autor, quando ainda assinava Otto Maria Karpfen, fizera e publicara na Áustria. Creio que Souza Ventura é o primeiro que escreve circunstanciadamente sobre os dois livros então editados: "Wege nach Rom - Abenteuer, Sturz und Sieg des Geistes" ("Caminhos para Roma -Aventura, Queda e Vitória do Espírito", de 1934) e "Österreichs Europäische Sendung - Ein Aussenpolitischer Überblick ("A Missão Européia da Áustria - Um Panorama da Política Externa", de 1935). A partir de sua localização, que o autor declara dever à sua colega Maria do Carmo Malheiros, se torna possível cogitar uma versão em português dos dois pequenos ensaios. Enquanto assim não se der, o livro de Souza Ventura continuará de leitura obrigatória para os que queiram conhecer as raízes de um dos mais eminentes emigrados que recebemos.

Debilidade de opção
O livro é formado por duas partes desiguais. A importante é a reconstituição da situação austríaca em que Karpfen atuara até ser obrigado, pela anexação nazista em maio de 1938, a fugir de seu país e conseguir, no ano seguinte, um passaporte no consulado brasileiro de Roterdã. Encerrava assim a atividade política que exercera no pequeno país a que a Áustria fora reduzida, depois da dissolução do Império Austro-Húngaro, no fim da Primeira Grande Guerra. Conforme Souza Ventura, em "A Missão Européia da Áustria", Karpfen (assinava com o pseudônimo de Otto Maria Fidelis) via quatro caminhos para a política externa de seu país: o de integração com a Alemanha; a aproximação com o mundo eslavo; com a Itália de Mussolini; ou o de se manter centrada em si mesma. O primeiro contava com o apoio do pangermanismo de Von Schönerer, que formava uma ala do Partido Social Democrata; o segundo, com o austro-marxismo de Otto Bauer; o terceiro, com a ala católica que comandava o Partido Social Cristão, ao passo que o quarto, de acordo com a reconstituição, era o mais fraco. Essa debilidade de opção explicaria a conduta política de Karpfen: embora favorecedor da quarta posição, segundo a qual a Áustria funcionaria como contrapeso entre os mundos eslavo e germânico, ele se engaja no governo do social-democrata E. Dollfuss, que, chanceler em 1932, em março de 1933, dera um golpe, com o apoio de Mussolini.


A aproximação com o fascismo pareceria a Karpfen, judeu convertido, a maneira de afastar a Áustria tanto do perigo comunista como do expansionismo nazista


Regime austrofascista
Embora sua colaboração tenha sido curta, pois o ditador seria assassinado em 1934, parece correta a informação citada por Souza Ventura de que Karpfen atuou "muito ativamente em favor do catolicismo político e do regime austrofascista". A aproximação com o fascismo pareceria a Karpfen, judeu convertido, a maneira de afastar a Áustria tanto do perigo comunista como do expansionismo nazista. Mas a esperança logo desapareceria, ao assassínio de Dolfuss seguindo-se a aproximação de Mussolini com Hitler. Poucos anos depois, Karpfen/Carpeaux teria de fugir para não morrer. Até aqui, apenas sintetizamos o que Souza Ventura descreve no capítulo "A Viena de Karpfen". A partir de agora, quando passa a tratar da obra brasileira de Carpeaux, nome que então adota, as idéias do pesquisador parecem bastante problemáticas. Elas assentam em uma afirmação central: "A fase austríaca e a brasileira estão unidas por uma continuidade de pensamento: a visão de mundo barroco-católica da casa da Áustria". A dificuldade em aceitar a afirmação, em sua plenitude, decorre, de início, da própria reviravolta que Carpeaux necessitara fazer para que sobrevivesse no país que o acolhe. Na Áustria, doutorara-se, em 1925, em química e sua atividade principal era a ação política, com um acentuado caráter católico e conservador. Seu interesse pela literatura seria então secundário ou suplementar e nada indicava que viesse a se encaminhar para a profissão de crítico literário. Ela será assumida no Brasil, provavelmente pela impossibilidade de outro meio com que entrasse nos jornais, que garantiriam sua sobrevivência.

Insuficiência
Ora, embora o livro tenha sido inicialmente objeto de uma tese de doutorado em teoria literária e literatura comparada, o autor não mostra conhecimento suficiente na área a que Carpeaux se dedicaria. Daí a dificuldade extra do autor em demonstrar o acerto de sua afirmação capital. Sua insuficiência é de várias ordens. A mais geral consiste na determinação do lugar que Carpeaux ocuparia. Diz-se, ainda na "Introdução": "(Carpeaux) desloca-se entre os dois pólos da crítica enquanto gênero: do método sem método dos homens de letras à abordagem técnica que caracteriza a crítica acadêmica de nossos dias". "Abordagem técnica" a seguir confundida com "exercício de retórica", contra o qual Carpeaux se insurgiria, procurando "orientar sua crítica literária na direção de uma anti-retórica, pois acreditava que o comentário sobre literatura não podia priorizar a teoria em detrimento da obra e do leitor". Já é difícil engolir que a crítica acadêmica de hoje seja uma "abordagem técnica". Pode-se objetar à sua prática por vários ângulos. Mas este é inédito. Acrescentar que essa seja um "exercício de retórica" e que a retórica esteja em "priorizar a teoria" são teses ou absurdas ou revolucionárias. Mas a curiosidade de sabê-lo murcha ante identificação seguinte: "A proximidade entre retórica e barroco vem sendo atestada desde a Antiguidade clássica, com a arte retórica de Aristóteles". Há pois um barroco contemporâneo a Aristóteles e reconhecido por ele?! Um barroco intemporal que justificaria a codificação retórica?

Transformações
Ao lado de tais afirmações, surgem outras. Enumero apenas duas: "Um dos principais desafios para a crítica literária reside justamente no caráter de universalidade da obra de arte" (não tenho tempo de consultar o "Dictionnaire des Idées Reçues"; se algo de semelhante lá não estiver, foi por distração de Flaubert).
"Carpeaux procurava (...) não transformar a obra literária em expressão alegórica de verdades filosóficas implícitas nem buscar o significado de uma obra nos acontecimentos biográficos de seu autor" (seria preciso Carpeaux para que não o fizesse?). Se é lamentável que tais passagens tenham sido escritas, louve-se, contudo, que indo de encontro à sua tese, o autor constate: "As relações entre experiência religiosa e expressão literária em Carpeaux transitam de uma visão da religião como dogma para uma posição mais atenuada: o fenômeno religioso como consciência, presença latente no espírito de alguém cuja religiosidade também sofreu transformações". Se estas são reconhecidas, onde fica a "continuidade de pensamento"?
Não peçamos porém do autor mais do que ele pode dar: o resgate da fase austríaca de Carpeaux é mérito seu.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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