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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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"A Paixão segundo a Ópera", de Jorge Coli, analisa as premissas do gênero e a relação entre música e palavra

Os bastidores do bel canto

Ivo Barroso
especial para a Folha

Prepare-se para gostar de ópera, esse gênero musical há muito considerado extinto ou em via de extinção, mas que sempre consegue se reabilitar na preferência do público, "redescoberto" pelas novas gerações ou pela mudança dos enfoques sob os quais seus detratores antigos o vinham observando. Uma grande parte dos preconceitos ou das idiossincrasias em relação ao significado e ao valor artístico da ópera, e as maneiras errôneas de como apreciá-la, certamente desaparecerão com a leitura deste harmonioso (em mais de um sentido) livro -"A Paixão segundo a Ópera"-, em que Jorge Coli recolheu seus artigos, conferências e algumas novas observações sobre a chamada cena lírica. Mas não pense que se trata de um livro doutrinário (de e) para melômanos, um desses toques de congraçamento de uma igrejinha de aficionados, ansiosos por suspirar e bater palmas ao mínimo trinado de um soprano coloratura. Nem de um compêndio sobre a história da ópera, seus compositores e intérpretes famosos ou dos teatros incendiados por suas récitas inesquecíveis. Sobre um gênero que evoca quase sempre aspectos saudosistas ou deslumbramentos incontidos, a prosa afinada e regida de Coli parece uma exceção às antigas expectativas, abrindo um cenário novo e ventilado para a análise vertical dos valores operísticos e mesmo uma discussão filosófico-estruturalista sobre os vínculos entre a palavra e a música.

Divertimento e erudição
Mas, uma vez demonstrada no capítulo inicial a familiaridade do musicólogo com as teorias mais avançadas da composição sonora (Hanslick, Ruwet, Adorno, John Cage etc.), o autor entra propriamente nos bastidores da ópera, escolhendo para tanto a abordagem de alguns temas presentes na formação de qualquer apreciador do bel canto. E, ao fazê-lo, Jorge Coli demonstra suas qualidades excepcionais de conferencista, oferecendo, dessa vez a leitores, um cromatismo de observações críticas junto de curiosidades e flashes biográficos não muito conhecidos, que dão ao texto um amálgama de erudição e divertimento. Seu ensaio sobre o "Otelo", de Verdi -começando com a comparação entre o texto shakespeariano e o inspirado libreto de Boito (do qual seriam de citar os versos temáticos "E tu m'amavi per le mie sventure,/ ed io t'amavo per la tua pietà", que traduzem impecavelmente os famosos "She lovd me for the dangers I have pass't, / And I lov'd her that she pity them"); sua análise das motivações do ciúme do mouro, do caráter de Iago (cujo enfático "Credo" foi criação da dupla Boito-Verdi e que deve ter causado certamente um total desconforto à religiosa platéia milanesa daquele 5 de fevereiro de 1887); as discussões sobre a "adequação" do romance entre o negro Otelo e a pálida Desdêmona (o tenor [racista" Tacchinardi cantou o papel sem nenhuma maquiagem de tonalidade escura e fez imprimir no programa achar "impossível que uma jovem amável caia apaixonada por um mouro cujo aspecto só pode ser considerado horrível e aterrador"); o paralelo que faz entre a ópera de Verdi e a de Rossini, escrita 70 anos antes, em que a narrativa shakespeariana é grandemente adulterada, com a heroína morrendo apunhalada e o "lenço" se transformando em "carta de amor" para evitar o emprego de palavras "vulgares" numa ação dramática; e terminando com a demonstração a bem dizer gráfica da relação muito íntima, conseguida nessa ópera por Verdi, entre as palavras e a música, "bastando lembrar a vertiginosa descida cromática na palavra beva" do brinde de Iago- tem a força de uma tese de doutoramento insuflada pela paixão de um amante de ópera e criteriosamente contida pelos seus dotes de escritor.

Ópera e trabalho
Outro capítulo belamente realizado é o das relações da ópera com o trabalho, um tema raramente presente nos enredos líricos, mas que permite ao autor pertinentes ilações extraídas das falas de "Louise", de Charpentier, e de "Il Tabarro", de Puccini, que Jorge Coli não se detém em classificar de obra-prima para satisfação daqueles que não ousavam ainda dizê-lo e para espanto de seus detratores ("É preciso repetir muitas vezes para aqueles que ficaram surdos por causa de seus preconceitos, que Puccini é imenso compositor", acrescentará ele).
O livro termina com um paralelo entre Carlos Gomes e Villa-Lobos, em que são discutidos o caráter "europeizante" do primeiro e o "nacionalístico" do segundo: um capítulo que encerrará grandes surpresas para aqueles que ainda vêem esses dois grandes compositores sob o cômodo enfoque tradicional...
Nestes tempos de penúria operística no país, com tendências a chegar a "fome zero", o livro de Coli surge como o prenúncio de uma sonhada "saison".


Ivo Barroso é poeta e tradutor, autor de "A Caça Virtual" (Record), entre outros livros.

A Paixão segundo a Ópera
138 págs., R$ 18,00 de Jorge Coli. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).


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