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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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Ponto de fuga

All that jazz

Divulgação
Cena do filme "8 Mile - Rua das Ilusões"


O teatro musical é insuportável porque se tornou um objeto de consumo e deleite burguês. Ele deve conduzir o espectador à reflexão, à crítica, ao empenho moral. Bertolt Brecht e Kurt Weill pensavam assim quando se juntaram, no final dos anos 1920, e criaram "Mahagonny", peça recheada de música esplêndida, a primeira de uma série. Lotte Lenya marcou para sempre o papel de Jenny: com sua voz estranha e seu físico "expressionista", arrebatava o público. Lenya casara-se com Weill e foi a intérprete ideal das canções de seu marido. Viúva, aos 67 anos teve uma última consagração com o papel de Fräulein Schneider, na montagem de "Cabaret", por Harold Prince, na Broadway, em 1966.
Como se sabe, "Cabaret" transformou-se numa obra-prima do cinema, em 1972, graças ao gênio de Bob Fosse. A veia "crítica", prolongada por Weill nos Estados Unidos, chegou até Fosse, e se manteve em seu musical "Chicago", que, em muitos temas, pode ser comparado a "Mahagonny": a corrupção, o cinismo, a podridão da Justiça. Nesse sentido, "Chicago" insere-se também no inconformismo dos anos pós-1968.
A recente retomada da peça na Broadway, se deixava um leve gosto requentado, sublinhava o mal-estar e um certo espírito de denúncia. Rob Marshall (que, para entrelaçar ainda mais todos esses fios, foi co-diretor do "revival" de "Cabaret", em sua última versão na Broadway) dirigiu "Chicago" no cinema, grande vencedor do Oscar. Embora bastante atenuada, a veia crítica ainda é perceptível.
Prêmios - "Mahagonny" é o nome de uma imaginária cidade americana, feita de pactos, de cumplicidades sórdidas, de julgamentos iníquos, de crimes e vícios. Em "Chicago", as coisas não são muito diferentes. O filme é fluente e, muito menos saturado que "Moulin Rouge", de Baz Luhrmann, avança com ritmo dominado e seguro, envolvendo o espectador. Sem nenhuma ruptura, passa, de maneira natural, da fala ao canto. Os momentos mais negros da história, pessimistas ou patéticos, como o número "Mr. Celophane", são tratados com uma leveza que termina por anular os aspectos mais dolorosos. Jornalistas se metamorfoseiam em fantoches, mas há ali algo de mecânico, de superficial e também de cômico, que reduz qualquer sentido forte de denúncia.
Nestes tempos de guerra, quando as convicções se exasperam, "Chicago" consegue um tom talentoso e neutro, que permitiu seu triunfo na festa do Oscar. "Gangues de Nova Iorque", de Scorsese, obra de força prodigiosa, com sua radiografia da história americana, destruindo mitos e mostrando o quanto a violência embebe as origens daquela cidade e daquele país, não se adequava a uma celebração que nunca primou pela ousadia. É raro, porém, que o Oscar deixe passar em branco os gênios maiores do cinema. Mais cedo ou mais tarde, Scorsese, sem dúvida, terá sua estatueta.
Formas - "As Confissões de Schmidt", de Alexander Payne, põe em pauta a trajetória de um personagem da classe média americana, para sublinhar o vazio de sua vida. Há uma festa de casamento, cujos bastidores irrisórios são revelados pelo filme. Altman também levou à tela um casamento americano, mas, neste caso, o diretor avança com sua truculência implacável, em cotoveladas e pontapés. Payne, ao contrário, obedece a um andamento estrito, a uma fotografia estável e calma. São traços de seu estilo, presentes também em "Eleição" (1999), que permitiram ressaltar a atuação de Jack Nicholson. O diretor Payne demonstra personalidade. Mas ela foi insuficiente para evitar a conclusão sentimental, que destoa do tom genérico, seco e contido.
Coração - O mais genial hip-hop brota de uma alma sensível, dolorida e suave, ensina "8 Mile - Rua das Ilusões". O filme de Curtis Hanson é encantador, em sua narração discreta de um falso "loser" melancólico. Eminen, como bom garoto que não confia em seu próprio gênio, está admirável, e os desafios vibrantes, entre rappers, contagiam de fato. Como tudo mais, a violência, na arte, é apenas um simulacro.

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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