São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000


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Descendência espiritual do filósofo alemão vai de Artaud a Beckett e Derrida
O humanismo extenuado de uma constelação de autores

por Peter Pál Pelbart

Em meio ao estrondo das bombas despejadas sobre a França no fim da Segunda Guerra Mundial, o escritor e ensaísta Georges Bataille tentava aprontar um livro sobre Nietzsche para a ocasião do centenário de seu nascimento. A homenagem naquelas circunstâncias tinha um sentido político claro, na linha da revista "Acéphale": resgatar Nietzsche da abjeta apropriação nazista. Mas havia razões menos conjunturais. "Salvo poucas exceções, minha companhia sobre a terra se reduz a Nietzsche... Blake ou Rimbaud são pesados e suspeitos. A inocência de Proust, a ignorância em que se manteve dos ventos de fora, o limitam. Só Nietzsche foi solidário a mim ao dizer nós." Bataille inaugurava assim algo que marcaria boa parte da vida intelectual francesa da segunda metade do século: uma "constelação espiritual" em torno do nome de Nietzsche. Hoje podemos dizer que, aos repetidos apelos do filósofo por "espíritos livres", um punhado de vozes solitárias respondeu muitas décadas mais tarde, do outro lado do Reno, constituindo uma comunidade de pensadores, libertária e heterogênea. Dela fizeram parte, cada um à sua maneira, Bataille, Blanchot, Klossowski, Foucault, Lyotard, Deleuze, Derrida, mas também artistas, poetas e romancistas anexados a essa "constelação" sem que forçosamente tenham lido Nietzsche, tendo alguns vivido até mesmo antes dele.

Genealogia fabulosa
Artaud, Van Gogh, Sade, Hölderlin, Blake, Nerval, Lautréamont, talvez também Céline, Kafka, depois Beckett "descendentes" de Nietzsche! Que sentido dar a essa genealogia fabulosa? Estaríamos apenas diante de uma disparatada série dos "malditos", num lírico agregado de desarrazoados em busca de um pai fundador, ou, ao contrário, nascia uma constelação original do pensamento, que ainda exerce sobre nossa atualidade uma pressão corrosiva e liberadora? A que se deve, sendo esse o caso, que essa nebulosa tenha sido colocada sob o signo maior do nome de Nietzsche? Que viés tal leitura privilegiou no filósofo para constelar nomes tão díspares, validando uma nova porosidade entre filosofia e literatura? Uma cautela se impõe de imediato: não se trata de medir a "influência" de Nietzsche sobre um punhado de pensadores e escritores deste século, como se a relação entre o passado e o presente obedecesse a um encadeamento linear, de causa a efeito. É uma via de mão dupla: uma geração de pensadores, alguns ditos nietzschianos, se inspira nas idéias, no tom, no exemplo de Nietzsche, mas ao mesmo tempo "constrói" um Nietzsche à sua imagem e semelhança. Reinventa-o a partir de seu presente, de suas urgências e injunções. Não nos deteremos na querela das interpretações; mais interessante seria entender de que modo Nietzsche foi conectado a um universo literário de todo estrangeiro a ele e, presumivelmente, também ao paladar que foi o seu (suas preferências, como se sabe, iam de Dostoiévski a Goethe). Tomemos então um caso exemplar, o de Artaud. Não há ensaísta ou filósofo da geração mencionada que não se tenha debruçado sobre sua obra e que não a tenha relacionado com a de Nietzsche. Deixemos de lado as similaridades externas, como a escrita sulfurosa ou a loucura final, a solidão e a dor desmedidas, um destino pessoal trágico e o pensamento dilacerante. Se Artaud não precisou esperar os críticos para reconhecer em Nietzsche uma vizinhança irrecusável, na cadeia dos gênios indomáveis e enlouquecidos, como Hölderlin, Nerval, Van Gogh, resta entender como a posteridade de Nietzsche e Artaud reconstruiu a afinidade entre ambos. Susan Sontag sublinhou um aspecto geral de grande pertinência: "Como Nietzsche, Artaud considerava-se uma espécie de médico da cultura assim como seu paciente mais dolorosamente enfermo". E, em vez de limitar-se a criticar certos valores em nome de outros, como muitos que o precederam, Artaud teria se juntado à "grandiosa tarefa descrita por Nietzsche, há um século, como a transvaloração de todos os valores". O mesmo se aplica a todos os autores dessa série.

Avesso da representação
A leitura filosófica feita por alguns franceses privilegiou em Artaud sobretudo aquilo que encontrou em Nietzsche: o avesso da representação. Nietzsche e Artaud, diz Derrida, teriam recusado a representação primeiramente num sentido teatral, isto é, o espetáculo como relação imitativa e reprodutiva, o público de espectadores passivos tidos como consumidores, "jouisseurs" (é a crítica da experiência estética tal como concebida por Kant como desinteressada). O teatro para Artaud é energia e festa, crueldade e vida, afirmação. Ao teatro como re-presentação Artaud teria contraposto a presença pura, a pura diferença, arremata Derrida.
Alguns anos antes, na leitura original que fez de Nietzsche, Gilles Deleuze já havia posto em relevo o tema das forças, da diferença, da multiplicidade, da afirmação. Daí sua insistência num pensamento intensivo, em oposição às idealidades da representação.
Artaud pôde então ser inserido nessa linhagem, já que atribuía ao pensamento uma genitalidade, uma acefalia, sempre a partir do corpo vital, anarquista. O corpo sem órgãos afetado pelas potências inumanas, a linguagem flamejante livrando-se da gramática (talvez para liberar-se de Deus, diria Nietzsche), a pulsação anônima fazendo desabar o Eu em suma, a mais radical profundidade esquizofrênica na literatura.
Seria preciso, porém, recuar até Maurice Blanchot para apreender o alcance maior dessa perspectiva: "O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação mordente". A partir daí o ensaísta descobre, não só em Artaud, mas na literatura de seu tempo, um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do sujeito. O que fala no escritor é que "ele não é mais ele mesmo, ele já não é ninguém": não o universal, mas o anônimo, o neutro, o fora. A obra como essa experiência que arruína toda experiência, que desapossa o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença, da consciência e da verdade, da unidade e da totalidade -o exemplo de Kafka caberia aqui à perfeição, também o de Beckett.
Mas deixemos com Foucault a última palavra a respeito, num comentário sobre Blanchot romancista que explicita o fundo nietzschiano aí presente: essa escrita, livre de qualquer centro ou pátria, é capaz de ecoar a morte de Deus e do homem. "Ali onde "isso fala", o homem não existe mais." Fim da dialética humanista que, através da alienação e da reconciliação, prometia o homem ao homem. Agora, na sua função transgressiva, a linguagem literária aponta para o além-do-homem. A literatura, "antimatéria" do mundo.
Não podemos prosseguir no circuito de remissões recíprocas entre os autores que fizeram parte dessa inaudita constelação, a quem devemos um novo traçado na relação entre obra e erosão, corpo e linguagem, vida e pensamento. Se a literatura apareceu aí, por um tempo pelo menos, como um espaço de transgressão absoluta, foi também porque ela acreditou realizar, à sua maneira, uma empresa de demolição ativa dos valores dominantes, todos eles pertencentes a um humanismo extenuado cujo niilismo Nietzsche radiografou como ninguém, muito antes que Maio de 68 tenha dado a essa insubmissão sua primeira concretude multitudinária, embora efêmera.


Peter Pál Pelbart é doutor em filosofia e professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de "O Tempo Não-Reconciliado" (Perspectiva) e "A Vertigem por um Fio" (a sair, Iluminuras) .

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