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Descendência espiritual do filósofo alemão vai de Artaud a Beckett e Derrida
O humanismo extenuado de uma constelação de autores
por Peter Pál Pelbart
Em meio ao estrondo das bombas despejadas sobre a França no fim da Segunda Guerra Mundial,
o escritor e ensaísta Georges Bataille tentava
aprontar um livro sobre Nietzsche para a ocasião
do centenário de seu nascimento. A homenagem naquelas circunstâncias tinha um sentido político claro,
na linha da revista "Acéphale": resgatar Nietzsche da
abjeta apropriação nazista. Mas havia razões menos
conjunturais. "Salvo poucas exceções, minha companhia sobre a terra se reduz a Nietzsche... Blake ou Rimbaud são pesados e suspeitos. A inocência de Proust, a
ignorância em que se manteve dos ventos de fora, o limitam. Só Nietzsche foi solidário a mim ao dizer nós."
Bataille inaugurava assim algo que marcaria boa parte
da vida intelectual francesa da segunda metade do século: uma "constelação espiritual" em torno do nome de
Nietzsche.
Hoje podemos dizer que, aos repetidos apelos do filósofo por "espíritos livres", um punhado de vozes solitárias respondeu muitas décadas mais tarde, do outro lado do Reno, constituindo uma comunidade de pensadores, libertária e heterogênea. Dela fizeram parte, cada
um à sua maneira, Bataille, Blanchot, Klossowski, Foucault, Lyotard, Deleuze, Derrida, mas também artistas,
poetas e romancistas anexados a essa "constelação"
sem que forçosamente tenham lido Nietzsche, tendo alguns vivido até mesmo antes dele.
Genealogia fabulosa
Artaud, Van Gogh, Sade,
Hölderlin, Blake, Nerval, Lautréamont, talvez também
Céline, Kafka, depois Beckett "descendentes" de Nietzsche! Que sentido dar a essa genealogia fabulosa? Estaríamos apenas diante de uma disparatada série dos
"malditos", num lírico agregado de desarrazoados em
busca de um pai fundador, ou, ao contrário, nascia uma
constelação original do pensamento, que ainda exerce
sobre nossa atualidade uma pressão corrosiva e liberadora? A que se deve, sendo esse o caso, que essa nebulosa tenha sido colocada sob o signo maior do nome de
Nietzsche? Que viés tal leitura privilegiou no filósofo para constelar nomes tão díspares, validando uma nova
porosidade entre filosofia e literatura?
Uma cautela se impõe de imediato: não se trata de
medir a "influência" de Nietzsche sobre um punhado
de pensadores e escritores deste século, como se a relação entre o passado e o presente obedecesse a um encadeamento linear, de causa a efeito. É uma via de mão
dupla: uma geração de pensadores, alguns ditos nietzschianos, se inspira nas idéias, no tom, no exemplo de
Nietzsche, mas ao mesmo tempo "constrói" um Nietzsche à sua imagem e semelhança. Reinventa-o a partir de
seu presente, de suas urgências e injunções.
Não nos deteremos na querela das interpretações;
mais interessante seria entender de que modo Nietzsche foi conectado a um universo literário de todo estrangeiro a ele e, presumivelmente, também ao paladar
que foi o seu (suas preferências, como se sabe, iam de
Dostoiévski a Goethe).
Tomemos então um caso exemplar, o de Artaud. Não
há ensaísta ou filósofo da geração mencionada que não
se tenha debruçado sobre sua obra e que não a tenha relacionado com a de Nietzsche. Deixemos de lado as similaridades externas, como a escrita sulfurosa ou a loucura final, a solidão e a dor desmedidas, um destino pessoal trágico e o pensamento dilacerante.
Se Artaud não precisou esperar os críticos para reconhecer em Nietzsche uma vizinhança irrecusável, na cadeia dos gênios indomáveis e enlouquecidos, como
Hölderlin, Nerval, Van Gogh, resta entender como a
posteridade de Nietzsche e Artaud reconstruiu a afinidade entre ambos. Susan Sontag sublinhou um aspecto
geral de grande pertinência: "Como Nietzsche, Artaud
considerava-se uma espécie de médico da cultura assim
como seu paciente mais dolorosamente enfermo". E,
em vez de limitar-se a criticar certos valores em nome
de outros, como muitos que o precederam, Artaud teria
se juntado à "grandiosa tarefa descrita por Nietzsche, há
um século, como a transvaloração de todos os valores".
O mesmo se aplica a todos os autores dessa série.
Avesso da representação
A leitura filosófica feita
por alguns franceses privilegiou em Artaud sobretudo
aquilo que encontrou em Nietzsche: o avesso da representação. Nietzsche e Artaud, diz Derrida, teriam recusado a representação primeiramente num sentido teatral, isto é, o espetáculo como relação imitativa e reprodutiva, o público de espectadores passivos tidos como
consumidores, "jouisseurs" (é a crítica da experiência
estética tal como concebida por Kant como desinteressada). O teatro para Artaud é energia e festa, crueldade e
vida, afirmação. Ao teatro como re-presentação Artaud
teria contraposto a presença pura, a pura diferença, arremata Derrida.
Alguns anos antes, na leitura original que fez de
Nietzsche, Gilles Deleuze já havia posto em relevo o tema das forças, da diferença, da multiplicidade, da afirmação. Daí sua insistência num pensamento intensivo,
em oposição às idealidades da representação.
Artaud pôde então ser inserido nessa linhagem, já que
atribuía ao pensamento uma genitalidade, uma acefalia, sempre a partir do corpo vital, anarquista. O corpo
sem órgãos afetado pelas potências inumanas, a linguagem flamejante livrando-se da gramática (talvez para liberar-se de Deus, diria Nietzsche), a pulsação anônima
fazendo desabar o Eu em suma, a mais radical profundidade esquizofrênica na literatura.
Seria preciso, porém, recuar até Maurice Blanchot para apreender o alcance maior dessa perspectiva: "O que
é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura,
a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação
mordente". A partir daí o ensaísta descobre, não só em
Artaud, mas na literatura de seu tempo, um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do sujeito. O que
fala no escritor é que "ele não é mais ele mesmo, ele já
não é ninguém": não o universal, mas o anônimo, o
neutro, o fora. A obra como essa experiência que arruína toda experiência, que desapossa o sujeito de si e do
mundo, do ser e da presença, da consciência e da verdade, da unidade e da totalidade -o exemplo de Kafka
caberia aqui à perfeição, também o de Beckett.
Mas deixemos com Foucault a última palavra a respeito, num comentário sobre Blanchot romancista que
explicita o fundo nietzschiano aí presente: essa escrita,
livre de qualquer centro ou pátria, é capaz de ecoar a
morte de Deus e do homem. "Ali onde "isso fala", o homem não existe mais." Fim da dialética humanista que,
através da alienação e da reconciliação, prometia o homem ao homem. Agora, na sua função transgressiva, a
linguagem literária aponta para o além-do-homem. A
literatura, "antimatéria" do mundo.
Não podemos prosseguir no circuito de remissões recíprocas entre os autores que fizeram parte dessa inaudita constelação, a quem devemos um novo traçado na
relação entre obra e erosão, corpo e linguagem, vida e
pensamento. Se a literatura apareceu aí, por um tempo
pelo menos, como um espaço de transgressão absoluta,
foi também porque ela acreditou realizar, à sua maneira, uma empresa de demolição ativa dos valores dominantes, todos eles pertencentes a um humanismo extenuado cujo niilismo Nietzsche radiografou como ninguém, muito antes que Maio de 68 tenha dado a essa insubmissão sua primeira concretude multitudinária,
embora efêmera.
Peter Pál Pelbart é doutor em filosofia e professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de "O Tempo Não-Reconciliado"
(Perspectiva) e "A Vertigem por um Fio" (a sair, Iluminuras) .
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