São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

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Bola dividida

Evolução do esporte no Brasil e na Argentina mostra que estilos de jogar e exportação de mão de obra não refletem identidades nacionais

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 2004, publiquei com o historiador argentino Fernando J. Devoto uma história comparada do Brasil e da Argentina ["Brasil e Argentina - Um Ensaio de História Comparada, 1850-2002", editora 34].
Colocamos em paralelo a economia, aspectos demográficos, a consolidação do Estado nacional, o peronismo e o getulismo e muitos outros temas. Nós deixamos praticamente de lado as questões culturais, por sua especificidade, na esperança de escrever mais um volume, que nunca foi nem será escrito. É muita lida para pouca vida.
Essa circunstância não impede que eu sugira alguns temas da cultura, no sentido amplo, como é o caso do futebol, esporte convertido em espetáculo de massa.
Vou me valer, para o Brasil, de um conhecimento de mais de 60 anos como torcedor e, para o caso da Argentina, de um significativo texto do historiador Eduardo Archetti, "Fútbol - Imágenes y Estereotipos" [Futebol - Imagens e Estereótipos], publicado em "Historia de la Vida Privada en la Argentina", tomo 3, 1999 [editora Troquel].

Globalização do esporte
Dois tópicos, entre outros, merecem consideração: de um lado, a globalização; de outro, os estilos de jogo.
Começo pelo primeiro. Ninguém ignora que a globalização do mercado de jogadores e também de técnicos chegou ao auge em nossos dias.
Basta lembrar que Luiz Felipe Scolari, gaúcho de Passo Fundo, foi parar no Uzbequistão [país da Ásia central, onde trabalha como técnico do Bunyodkor], certamente por um súbito amor a um time local; ou que existe um atacante croata, chamado Eduardo Silva, tomado também de uma paixão patriótica pelo pequeno e próspero país dos Bálcãs. É comum pensar que a globalização do futebol surgiu em época recente, e isso em boa parte é verdade.
Mas, desde meados da década de 1920, quando velada ou abertamente o futebol foi sendo profissionalizado, o intercâmbio internacional de jogadores ganhou alento. Por essa época e no curso dos anos 1930, os craques argentinos foram alvos de maior atração do que os brasileiros, mesmo porque levaria muito tempo para que o Brasil se equiparasse à Argentina em qualidade.
Os jogadores argentinos partiam principalmente para a Itália e eram quase todos de origem italiana. Archetti reproduz um texto do jornal esportivo "El Gráfico", de 1933.
Depois de citar uma série de jogadores que se tornaram astros do futebol italiano, o jornal assinala: "Com eles, devolvemos à terra que nos enviou seus filhos, para forjar nosso progresso com o esforço dos músculos e o suor da testa, rebentos ágeis no trato da bola. Esses craques argentinos serão na Itália e em toda a Europa uma propaganda fidedigna de nossos altos valores futebolísticos."
Como se vê, a globalização limitada não era vista como uma sangria, mas como uma arma valiosa para exaltar os valores argentinos.
Em escala muito menor, o fenômeno da exportação também alcançou o Brasil.
Caso dos casos foi o do atacante Niginho -o mineiro Leonídio Fontani-, jogador da Lazio de Roma, com contrato com o clube, que os dirigentes brasileiros não ousaram escalar no lugar do contundido Leônidas, na Copa de 1938 [na França], por receio de uma impugnação.

No ritmo do drible
Passo ao estilo de jogo.
Quando comecei a acompanhar os jogos de futebol, em meados da década de 1940, os clubes argentinos arrasavam os brasileiros e eram um exemplo de combinação de arte e eficiência.
Os nossos eram excelentes sambistas, talentosos na ginga, ou uns "armandinhos", que armavam as jogadas, mas não conseguiam concluir.
Havia quem dissesse que a malemolência brasileira era expressão de um país alegre, mas irresponsável, cujo futuro nunca chegava.
Na verdade, os estilos de jogo nada tinham a ver com um suposto caráter nacional. Archetti revela que o estilo improdutivo foi a marca do futebol argentino, por muitos anos.
Esse estilo tradicional, segundo técnicos e comentaristas daquele país que se insurgiram contra ele, era anacrônico, gerador de bons dribladores, mas de fracos futebolistas. Não se podia jogar futebol como se bailava um tango.
De nossa parte, reduzimos esses excessos sem afogar os talentos individuais. A ginga permanece, assim como as arrancadas individuais, os dribles para a frente, e não para os lados.
Porém, o mais importante é ser efetivo, ganhar. "O gol é só um detalhe" apenas na cabeça do técnico Carlos Alberto Parreira, que já nos deu alegrias.
O caráter nacional não está presente nos campos de futebol da Argentina e do Brasil.
Cada qual tem sua história, com suas especificidades e suas mutações. Mas não resisto à tentação de dizer que nossa seleção -não nossos clubes- se tornou bem superior. Reflexo da confiança ou da incerteza quanto aos destinos de cada um dos dois países?


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). borisfausto@uol.com.br


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