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Cultura
A cesta onde falta tudo
BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em conversa de final de
ano com amigo experiente em questões de
gestão da educação e
da cultura, por entre
balanços e expectativas, perguntei o que lhe parecia estar
por ser feito, no Brasil, na área
em que ambos militamos: literatura e cultura. A resposta foi
tão lacônica quanto enfática:
"Tudo!". Diante da sabedoria
da resposta, só pude lançar um
suspiro. Otimista de carteirinha, porém, penso que este tudo por fazer talvez possa ser lido sob aquela mesma ótica que
atrai os estrangeiros quando
aqui chegam: a idéia de que, se
muito está por ser feito, muito
se tem a oportunidade de fazer.
Ou sob a perspectiva dos que
apostam na bolsa e confiam
que os mercados emergentes
podem ser mais lucrativos.
O bordão "fica Gil", que
acompanhou os movimentos
do atual (ou ex, ou futuro, que
neste ano está difícil de começar) ministro da Cultura, é um
cumprimento apreciável. Salvo
históricas exceções, os ministros preferimos vê-los pelas
costas. Gil mostrou disposição
ao diálogo e defendeu como
pôde os interesses de um ministério sempre pobre de verbas. Algumas leis foram promulgadas, mas sabemos bem o
pouco que significam as leis
quando alguma ação nova deve
ser efetivada. Mais ou menos o
mesmo que uma comissão
quando não se sabe como solucionar um impasse político.
As discussões em torno da
Lei de Incentivo à Cultura foram, como sempre, o ponto
mais polêmico. O tema da privatização dos recursos públicos continua em pauta. A freqüente submissão de critérios
artísticos, da necessidade tanto
de inovar como de dar continuidade a projetos culturais -e
mesmo do interesse da sociedade- aos critérios de marketing das grandes empresas, assim como o combate desigual
quando órgãos públicos disputam com artistas o dinheiro
meu, seu, nosso, continuam
sem solução.
Considero lastimável que um
dos objetivos iniciais da criação
de tais mecanismos de renúncia fiscal não se cumpra: fomentar o interesse de nossa
mesquinha elite pelo apoio à
arte e cultura. Talvez porque
entre nós o fisco não seja, para
os ricos e poderosos, tão amedrontador como em outros países, talvez por obscurantismo
mesmo, a veste de mecenas não
parece seduzir nossos elegantes. Nem o reconhecimento público que a figura de um Mindlin recebe por sua generosidade e persistência nem a visibilidade de iniciativas como a do
Instituto Moreira Salles parecem convencer que o convívio
com a cultura é fundamental
para termos uma vida melhor.
É disso que se trata quando
se fala em arte e cultura: prazer,
alegria, satisfação pessoal e coletiva. Cabe lembrar que cultura pode ser entretenimento
(Brecht garantia que a função
primordial do teatro, inclusive
o político, é divertir), mas nem
sempre entretenimento é cultura. Muitas vezes as duas práticas situam-se mesmo em
campos opostos.
No que diz respeito às atividades de que mais me ocupo,
aquelas ligadas ao livro e à literatura, a situação é especialmente paradoxal. A literatura
brasileira vive hoje um bom
momento. Vários e talentosos
escritores têm surgido, ansiosos por divulgar sua poesia,
prosa ou nova dramaturgia.
Os prêmios literários reapareceram, com valores mais elevados; bolsas para criação, finalização ou tradução de obras literárias são oferecidas, incentivando a publicação. Festas literárias, bienais, feiras, encontros se multiplicam Brasil afora. A cada dia parece surgir uma
editora nova, ao mesmo tempo
em que as grandes se desdobram em outros selos. As livrarias dos grandes centros sofisticam-se. Toda essa euforia em
torno da literatura, no entanto,
esfria subitamente diante de
um pequeno detalhe: os leitores parecem minguar a cada dia
que passa. Tanto talento, tanto
entusiasmo, tanta paixão pelo
livro não parecem contaminar
a peça-chave desta cadeia: o leitor. A razão não é difícil de perceber: o gosto pela leitura não
surge do nada e um jovem leitor raramente nasce de geração
espontânea.
Criar leitores
Para haver uma população de
leitores e consumidores de livros é preciso investimento
não só em cultura, mas na articulação ético-política de que
fala Guattari, formada por
meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana.
Para haver leitores é preciso
haver capacidade de leitura,
acesso e convívio com livro,
gosto pela vida imaginária, condições para se permitir sonhar,
valorização do objeto livro. Se
exposto a livros na escola, o jovem precisa continuar a ler ao
se tornar adulto. O preço elevado do livro é uma evidente dificuldade, mas não é a única.
A possibilidade de barateamento do livro entrelaça-se
com a questão da divulgação e
distribuição. As soluções passam também pela necessidade
de maior número de bibliotecas atualizadas, capazes de despertar interesse. O maior apoio
que o universo editorial pode
encontrar é a própria possibilidade de mercado. Mesmo assim, determinados trabalhos
editoriais, como dicionários e
ensaios de público especializado, deverão sempre contar com
a participação do Estado.
Em relação a tudo isso, pouco, muito pouco, tem sido feito
por todo o período de redemocratização do país. Diante da situação nacional, em nada ajuda
uma lei do livro como a de
2003, vaga e desatualizada desde o nascimento. De que podem adiantar diretrizes como a
que determina: "propiciar os
meios para fazer do Brasil um
grande centro editorial"? Ou
disposições gerais que passam
o problema adiante como num
jogo de anel: "A inserção de rubrica orçamentária pelo Poder
Executivo para financiamento
da modernização e expansão
do sistema bibliotecário e de
programas de incentivo à leitura será feita por meio do Fundo
Nacional de Cultura"?
Considero lastimável que um dos objetivos da criação de mecanismos de renúncia fiscal não se cumpra: fomentar o interesse pelo apoio à cultura; a veste de mecenas não parece seduzir nossos elegantes
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A estas alturas, uma política
séria de promoção da leitura e
do livro é tarefa grande demais
para um ou mesmo dois ministérios. Tem que ser uma política de Estado, questão prioritária para o governo, quase de segurança nacional. A reunião indispensável dos esforços dos
ministérios da Educação e da
Cultura precisa ser valorizada e
fortemente apoiada pela área
econômica. Tem que haver a
chamada vontade política.
É necessário, inclusive, superar terríveis preconceitos que
minimizam a importância da
leitura e a valorização do saber
escrito por aqueles que precisam decidir, a cada dia, qual
compra priorizar. Se tarefa deste vulto, há muito inadiável, for
ajudada por organizações não-governamentais, por cidadãos,
por empresários (ainda que eu
não vislumbre nenhum Feltrinelli por aí), melhor. Não pode,
porém, ser delegada a mais ninguém sem antes ser assumida,
com todo empenho pessoal, pelo presidente da República que
este povo elegeu.
BEATRIZ RESENDE é professora da UniRio e
pesquisadora da UFRJ. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano).
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