São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

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Cultura

A cesta onde falta tudo

BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em conversa de final de ano com amigo experiente em questões de gestão da educação e da cultura, por entre balanços e expectativas, perguntei o que lhe parecia estar por ser feito, no Brasil, na área em que ambos militamos: literatura e cultura. A resposta foi tão lacônica quanto enfática: "Tudo!". Diante da sabedoria da resposta, só pude lançar um suspiro. Otimista de carteirinha, porém, penso que este tudo por fazer talvez possa ser lido sob aquela mesma ótica que atrai os estrangeiros quando aqui chegam: a idéia de que, se muito está por ser feito, muito se tem a oportunidade de fazer. Ou sob a perspectiva dos que apostam na bolsa e confiam que os mercados emergentes podem ser mais lucrativos.
O bordão "fica Gil", que acompanhou os movimentos do atual (ou ex, ou futuro, que neste ano está difícil de começar) ministro da Cultura, é um cumprimento apreciável. Salvo históricas exceções, os ministros preferimos vê-los pelas costas. Gil mostrou disposição ao diálogo e defendeu como pôde os interesses de um ministério sempre pobre de verbas. Algumas leis foram promulgadas, mas sabemos bem o pouco que significam as leis quando alguma ação nova deve ser efetivada. Mais ou menos o mesmo que uma comissão quando não se sabe como solucionar um impasse político.
As discussões em torno da Lei de Incentivo à Cultura foram, como sempre, o ponto mais polêmico. O tema da privatização dos recursos públicos continua em pauta. A freqüente submissão de critérios artísticos, da necessidade tanto de inovar como de dar continuidade a projetos culturais -e mesmo do interesse da sociedade- aos critérios de marketing das grandes empresas, assim como o combate desigual quando órgãos públicos disputam com artistas o dinheiro meu, seu, nosso, continuam sem solução.
Considero lastimável que um dos objetivos iniciais da criação de tais mecanismos de renúncia fiscal não se cumpra: fomentar o interesse de nossa mesquinha elite pelo apoio à arte e cultura. Talvez porque entre nós o fisco não seja, para os ricos e poderosos, tão amedrontador como em outros países, talvez por obscurantismo mesmo, a veste de mecenas não parece seduzir nossos elegantes. Nem o reconhecimento público que a figura de um Mindlin recebe por sua generosidade e persistência nem a visibilidade de iniciativas como a do Instituto Moreira Salles parecem convencer que o convívio com a cultura é fundamental para termos uma vida melhor.
É disso que se trata quando se fala em arte e cultura: prazer, alegria, satisfação pessoal e coletiva. Cabe lembrar que cultura pode ser entretenimento (Brecht garantia que a função primordial do teatro, inclusive o político, é divertir), mas nem sempre entretenimento é cultura. Muitas vezes as duas práticas situam-se mesmo em campos opostos.
No que diz respeito às atividades de que mais me ocupo, aquelas ligadas ao livro e à literatura, a situação é especialmente paradoxal. A literatura brasileira vive hoje um bom momento. Vários e talentosos escritores têm surgido, ansiosos por divulgar sua poesia, prosa ou nova dramaturgia.
Os prêmios literários reapareceram, com valores mais elevados; bolsas para criação, finalização ou tradução de obras literárias são oferecidas, incentivando a publicação. Festas literárias, bienais, feiras, encontros se multiplicam Brasil afora. A cada dia parece surgir uma editora nova, ao mesmo tempo em que as grandes se desdobram em outros selos. As livrarias dos grandes centros sofisticam-se. Toda essa euforia em torno da literatura, no entanto, esfria subitamente diante de um pequeno detalhe: os leitores parecem minguar a cada dia que passa. Tanto talento, tanto entusiasmo, tanta paixão pelo livro não parecem contaminar a peça-chave desta cadeia: o leitor. A razão não é difícil de perceber: o gosto pela leitura não surge do nada e um jovem leitor raramente nasce de geração espontânea.

Criar leitores
Para haver uma população de leitores e consumidores de livros é preciso investimento não só em cultura, mas na articulação ético-política de que fala Guattari, formada por meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana. Para haver leitores é preciso haver capacidade de leitura, acesso e convívio com livro, gosto pela vida imaginária, condições para se permitir sonhar, valorização do objeto livro. Se exposto a livros na escola, o jovem precisa continuar a ler ao se tornar adulto. O preço elevado do livro é uma evidente dificuldade, mas não é a única.
A possibilidade de barateamento do livro entrelaça-se com a questão da divulgação e distribuição. As soluções passam também pela necessidade de maior número de bibliotecas atualizadas, capazes de despertar interesse. O maior apoio que o universo editorial pode encontrar é a própria possibilidade de mercado. Mesmo assim, determinados trabalhos editoriais, como dicionários e ensaios de público especializado, deverão sempre contar com a participação do Estado.
Em relação a tudo isso, pouco, muito pouco, tem sido feito por todo o período de redemocratização do país. Diante da situação nacional, em nada ajuda uma lei do livro como a de 2003, vaga e desatualizada desde o nascimento. De que podem adiantar diretrizes como a que determina: "propiciar os meios para fazer do Brasil um grande centro editorial"? Ou disposições gerais que passam o problema adiante como num jogo de anel: "A inserção de rubrica orçamentária pelo Poder Executivo para financiamento da modernização e expansão do sistema bibliotecário e de programas de incentivo à leitura será feita por meio do Fundo Nacional de Cultura"?


Considero lastimável que um dos objetivos da criação de mecanismos de renúncia fiscal não se cumpra: fomentar o interesse pelo apoio à cultura; a veste de mecenas não parece seduzir nossos elegantes


A estas alturas, uma política séria de promoção da leitura e do livro é tarefa grande demais para um ou mesmo dois ministérios. Tem que ser uma política de Estado, questão prioritária para o governo, quase de segurança nacional. A reunião indispensável dos esforços dos ministérios da Educação e da Cultura precisa ser valorizada e fortemente apoiada pela área econômica. Tem que haver a chamada vontade política.
É necessário, inclusive, superar terríveis preconceitos que minimizam a importância da leitura e a valorização do saber escrito por aqueles que precisam decidir, a cada dia, qual compra priorizar. Se tarefa deste vulto, há muito inadiável, for ajudada por organizações não-governamentais, por cidadãos, por empresários (ainda que eu não vislumbre nenhum Feltrinelli por aí), melhor. Não pode, porém, ser delegada a mais ninguém sem antes ser assumida, com todo empenho pessoal, pelo presidente da República que este povo elegeu.
BEATRIZ RESENDE é professora da UniRio e pesquisadora da UFRJ. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano).


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