São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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OS EXÍLIOS DE GULLAR


Leia trechos de "Rabo de Foguete - Os Anos de Exílio", a sair nesta semana pela Revan, livro de memórias de Ferreira Gullar do período militar, em que o poeta e então militante do Partido Comunista conta sua vida clandestina no Brasil e a fuga para outros países


Escondido no Rio

FERREIRA GULLAR


Àquela altura havia tomado algumas providências para não ser facilmente reconhecido. Tratei de apagar os traços mais acentuados de meu rosto pouco comum: deixei crescer um bigode para encobrir o desenho marcado da boca, raspei os pêlos que emendavam as sobrancelhas, outro traço característico de minha fisionomia; pensei em raspar a cabeça, mas, considerando que com isso chamaria atenção, limitei-me a desbastar a cabeleira. Quando saía na rua, usava uns óculos escuros que abandonei, pois, segundo Thereza, eu ficava com olhos de besouro e, pior, a figura mesma do clandestino.
"Parece disfarce de português", brincou ela.
Evitava ir à rua para não despertar a desconfiança do porteiro, uma vez que entrara ali sob o pretexto de visitar um amigo e não saíra mais. Podia ser que ele nem se lembrasse de mim, mas não queria me arriscar. Por isso, quando saía, aguardava o instante em que estivesse ocupado ou conversando com alguém.
Já ia para nove meses de clandestinidade e aquilo me cansava. Sentia falta das noites conversando no bar com os amigos, das manhãs de sol na praia e sobretudo de minha casa, meus filhos, meus livros, minha vida. Um dia inventei de ir ao cinema. Combinei com Thereza e decidimos pela sessão das duas horas, quase sempre vazia e onde dificilmente encontraria alguém conhecido. Ela me esperaria perto, mas não em frente ao cinema para não parecer que estivesse esperando alguém, possivelmente eu. E assim fizemos. Quinze para as duas eu descia do táxi na esquina e a encontrava. Juntos, caminhamos para o Cine Leblon e eis que avistamos, postado junto à entrada do cinema, um pintor que, se não era nosso amigo, nos conhecia muito bem. Ele abriu os olhos surpreso de me ver e não falou nada. Entramos no cinema, mas mal pude seguir o filme, preocupado com o fato de ter sido visto ali.
Aquela foi a primeira vez que alguém conhecido me viu na rua, desde que entrara para a clandestinidade. Embora não acreditasse que o pintor fosse me alcaguetar, sentia como se o encontro inesperado frustrasse todo o esforço de meses e meses de precauções e ansiedades. Além do mais, sabia que os milicos não tinham desistido de me procurar. Haviam dado uma incerta na redação do "Estadão" em São Paulo, julgando me encontrar lá. Meus colegas da sucursal do Rio supunham perceber, próximo ao prédio da rua da Quitanda, sujeitos estranhos que eram vistos parados nas imediações.
Para dificultar a ação dos milicos tomei a iniciativa de forjar uma carta dirigida a Thereza como se vinda de outro Estado. Mandei-a para um amigo em São Paulo, solicitando que a pusesse no correio de lá remetendo-a para minha residência em Ipanema. A mesma coisa fiz, utilizando um conhecido em Belo Horizonte. O propósito era confundir meus perseguidores.
Enquanto isso, o processo instaurado na 2ª Auditoria de Marinha para apurar as atividades do Comitê Cultural do PCB, e que me envolvia, continuava seu curso vagaroso. A certa altura, fui informado de que o promotor da Justiça Militar, que deveria oferecer a denúncia dos implicados, aceitava excluir alguns nomes, inclusive o meu, mediante o pagamento de uma quantia. Consultei Thereza, que se mostrou inteiramente a favor da proposta. "Devemos pagar qualquer coisa para nos livrar desse pesadelo", afirmou. Como este era também o meu ponto de vista, preenchi um cheque que deveria ser encaminhado ao referido promotor. Não me lembro do que ocorreu, mas a verdade é que, em vez de excluído do processo, fui denunciado. Num encontro, a que me levaram com o advogado, ficou evidente que em menos de oito meses o processo não iria a julgamento.
Logo em seguida, Renato Guimarães, ligado à direção do PC, me sondou sobre a possibilidade de eu ir fazer um curso na União Soviética, com a duração de seis meses. Minha primeira reação foi contrária, como a de Thereza, que temia ficar sozinha com os filhos durante tanto tempo. A hipótese de irmos todos juntos estava descartada. Depois reconsiderei. De fato, já não aguentava a condição de clandestino, vivendo sempre enfurnado e em sobressalto. Já me convencera de que era praticamente impossível permanecer num lugar por muito tempo sem que o sigilo fosse rompido, a não ser que me decidisse pela clandestinidade profunda, igual àquela em que viviam Prestes e Giocondo. Não estava disposto a isso. Devia considerar também que Ceres e Flávio iam mudar-se em breve para o apartamento que haviam comprado e que se encontrava em reforma. Aquele em que estávamos pertencia a uma amiga. Não podia eu pretender transferir-me com eles, para o novo apartamento, na condição de clandestino. Noutras palavras, dentro de um mês ou dois, teria que conseguir outro lugar para esconder-me. Conseguiria? E em que condições? Até quando poderia manter esse jogo de esconde-esconde sem cair nas unhas da repressão?
Thereza ouviu essas considerações com uma sombra de pânico no olhar. Se a minha clandestinidade havia desarrumado sua vida, a convicção de que logo tudo voltaria ao normal evitara o desespero. Agora, porém, a realidade se mostrava em toda a sua crueza: o redemoinho continuava a puxar-nos, mais e mais, para o fundo.
"Onde será que tudo isso vai parar?", indagou ela, com voz sumida, e virando-me as costas para enxugar os olhos com as mãos.



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