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Aulas na URSS
Em Moscou passei a conhecer
melhor o PCB, já que só então trabalhei e convivi com os quadros
profissionais do partido, com seu
aparato clandestino, e percebi que
a muitos de nós faltava a mística
do revolucionário, a convicção
inabalável que determina o cumprimento rigoroso das decisões e o
sacrifício sem limites. Não é que o
partido não tenha tido mártires e
que, entre seus membros, não
houvesse homens corajosos, idealistas, capazes de morrer por suas
idéias. Durante aquele período
mesmo em que me encontrava na
URSS muitos companheiros foram presos, torturados e assassinados pela ditadura no Brasil. Era
talvez a disciplina interna que, como reação aos excessos da fase stalinista anterior, relaxara demais,
ou quem sabe, uma consequência
da nossa maneira brasileira de encarar a vida e os valores, com espírito crítico e algum ceticismo.
A verdade é que, por exemplo,
enquanto os comunistas dos outros coletivos andavam com o escudo de seus respectivos partidos
na lapela, nós, brasileiros, nem
mesmo possuíamos esse escudo. É
um exemplo simples, mas que ganha expressão se atentarmos para
o modo como os membros de nosso coletivo se relacionavam com
os dirigentes, que se refletia no seu
comportamento e no trato sem reservas de todos os problemas,
mesmo aqueles que envolviam
questões de segurança. Não há dúvida de que esse relacionamento
interno do PCB era louvável do
ponto de vista democrático; resta
saber é se era eficaz para a ação revolucionária. De qualquer modo,
essa é uma questão superada pelo
processo histórico.
De minha parte, às vezes me surpreendia e às vezes me divertia
muito com certos fatos que presenciei ou outros que me foram
narrados. Um companheiro que
viera a Moscou em companhia do
secretário-geral do PCB, Giocondo Dias, contou-me que encontrara, no hall do hotel onde estavam
hospedados, o secretário-geral do
Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal. Ao saber que Giocondo, também ali hospedado,
deveria descer dentro de instantes,
decidiu esperá-lo.
"Como vai a luta revolucionária
no Brasil, camarada?", perguntou
efusivo e grave o dirigente português ao cumprimentar Giocondo
Dias.
"Aquilo está uma merda, companheiro", respondeu Giocondo,
para desapontamento de Cunhal.
Também foi com os companheiros portugueses que ocorreu uma
conversa de que participei na lanchonete do Instituto. Estávamos
ali, eu, Luiz, Sérgio e Júlio com
dois companheiros portugueses,
um deles o Alfredo, que fazia comigo o curso de "O Capital".
Alfredo falava com entusiasmo
de um certo Manuel, um dos heróis de seu partido, que havia passado anos no cárcere e que um belo dia conseguira escapar.
"Era tal sua consciência partidária e revolucionária", afirmou Alfredo, "que, ao sair da prisão, Manuel nem sequer foi ao encontro
da esposa, que não via há vários
anos. Engajou-se imediatamente
na ação revolucionária clandestina."
"Não me diga, camarada! Com
tantos anos sem ver mulher, o Manuel não foi nem em casa dar uma
bimbadinha na patroa?", indagou
Luís.
Alfredo, surpreendido, com a
pergunta, não soube o que responder logo.
"Me explica uma coisa", continuou o brasileiro. "Você disse
que ele saiu da prisão ajudado por
um cabo do exército, não foi?"
"É o que consta sobre o episódio."
"Ah, bom, então está explicando... Não se zangue, não, camarada Alfredo, mas entre o Manuel e
esse cabo havia alguma coisa!"
"Não percebo aonde o camarada Luiz "quere' chegar."
A essa altura já todos nós, brasileiros, estávamos fazendo força
para não explodir em gargalhadas.
E Luiz continuou:
"Veja você: o cabo dá fuga ao
Manuel e o Manuel não procura a
esposa, claro, porque ele já estava
amasiado com o cabo."
Alfredo ficou indignado.
"Camarada Luiz, devia referir-se com mais respeito a um
grande herói do Partido Comunista Português. O que acaba de dizer
é uma indignidade e uma injustiça
com um mártir da nossa revolução. Gostaria de saber o que farias
tu, se estivesses encarcerado no lugar dele."
"Eu?", respondeu Luiz. "Eu
dava o cu ao cabo!"
Diante de semelhante resposta,
Alfredo e seu companheiro se levantaram da nossa mesa, indignados, e romperam relações com
Luiz. Mal se afastaram, voltamos a
rir sem parar.
Outro episódio, este nada engraçado, ocorreu com um membro
do PCB, enviado a Moscou com a
tarefa específica de entregar aos
camaradas soviéticos a lista de nomes dos novos alunos que viriam
estudar no Instituto. Essa lista não
poderia em hipótese alguma cair
nas mãos da polícia, já que poria
em risco a segurança de todas
aquelas pessoas e a dos membros
de direção a que estivessem ligadas. Por isso, era levada à União
Soviética, em mãos, por um membro da direção nacional do partido. Ocorreu, no entanto, que o
companheiro em questão, ao chegar a Paris, tomou um porre e perdeu a lista. Que fazer então? Voltar
para o Brasil não podia, mesmo
porque não tinha dinheiro para a
passagem. Seguiu então para Moscou e chegando ali contou o fato
ao responsável pelo coletivo brasileiro.
"É um porra-louca", disse-me
Gonçalves, depois de narrar-me o
ocorrido.
No dia seguinte, porém, ao tomar café em companhia de Kapústin, ouvi dele uma nova versão do
fato.
"O camarada brasileiro que trazia a lista de nomes dos novos alunos teve um comportamento admirável, você soube?"
"Admirável? Como assim?"
"Ao transpor a fronteira, foi detido pela polícia brasileira para
averiguações, e não hesitou: engoliu a lista. (...)."
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