São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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Aulas na URSS

Em Moscou passei a conhecer melhor o PCB, já que só então trabalhei e convivi com os quadros profissionais do partido, com seu aparato clandestino, e percebi que a muitos de nós faltava a mística do revolucionário, a convicção inabalável que determina o cumprimento rigoroso das decisões e o sacrifício sem limites. Não é que o partido não tenha tido mártires e que, entre seus membros, não houvesse homens corajosos, idealistas, capazes de morrer por suas idéias. Durante aquele período mesmo em que me encontrava na URSS muitos companheiros foram presos, torturados e assassinados pela ditadura no Brasil. Era talvez a disciplina interna que, como reação aos excessos da fase stalinista anterior, relaxara demais, ou quem sabe, uma consequência da nossa maneira brasileira de encarar a vida e os valores, com espírito crítico e algum ceticismo.
A verdade é que, por exemplo, enquanto os comunistas dos outros coletivos andavam com o escudo de seus respectivos partidos na lapela, nós, brasileiros, nem mesmo possuíamos esse escudo. É um exemplo simples, mas que ganha expressão se atentarmos para o modo como os membros de nosso coletivo se relacionavam com os dirigentes, que se refletia no seu comportamento e no trato sem reservas de todos os problemas, mesmo aqueles que envolviam questões de segurança. Não há dúvida de que esse relacionamento interno do PCB era louvável do ponto de vista democrático; resta saber é se era eficaz para a ação revolucionária. De qualquer modo, essa é uma questão superada pelo processo histórico.
De minha parte, às vezes me surpreendia e às vezes me divertia muito com certos fatos que presenciei ou outros que me foram narrados. Um companheiro que viera a Moscou em companhia do secretário-geral do PCB, Giocondo Dias, contou-me que encontrara, no hall do hotel onde estavam hospedados, o secretário-geral do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal. Ao saber que Giocondo, também ali hospedado, deveria descer dentro de instantes, decidiu esperá-lo.
"Como vai a luta revolucionária no Brasil, camarada?", perguntou efusivo e grave o dirigente português ao cumprimentar Giocondo Dias.
"Aquilo está uma merda, companheiro", respondeu Giocondo, para desapontamento de Cunhal.
Também foi com os companheiros portugueses que ocorreu uma conversa de que participei na lanchonete do Instituto. Estávamos ali, eu, Luiz, Sérgio e Júlio com dois companheiros portugueses, um deles o Alfredo, que fazia comigo o curso de "O Capital".
Alfredo falava com entusiasmo de um certo Manuel, um dos heróis de seu partido, que havia passado anos no cárcere e que um belo dia conseguira escapar.
"Era tal sua consciência partidária e revolucionária", afirmou Alfredo, "que, ao sair da prisão, Manuel nem sequer foi ao encontro da esposa, que não via há vários anos. Engajou-se imediatamente na ação revolucionária clandestina."
"Não me diga, camarada! Com tantos anos sem ver mulher, o Manuel não foi nem em casa dar uma bimbadinha na patroa?", indagou Luís.
Alfredo, surpreendido, com a pergunta, não soube o que responder logo.
"Me explica uma coisa", continuou o brasileiro. "Você disse que ele saiu da prisão ajudado por um cabo do exército, não foi?"
"É o que consta sobre o episódio."
"Ah, bom, então está explicando... Não se zangue, não, camarada Alfredo, mas entre o Manuel e esse cabo havia alguma coisa!"
"Não percebo aonde o camarada Luiz "quere' chegar."
A essa altura já todos nós, brasileiros, estávamos fazendo força para não explodir em gargalhadas. E Luiz continuou:
"Veja você: o cabo dá fuga ao Manuel e o Manuel não procura a esposa, claro, porque ele já estava amasiado com o cabo."
Alfredo ficou indignado.
"Camarada Luiz, devia referir-se com mais respeito a um grande herói do Partido Comunista Português. O que acaba de dizer é uma indignidade e uma injustiça com um mártir da nossa revolução. Gostaria de saber o que farias tu, se estivesses encarcerado no lugar dele."
"Eu?", respondeu Luiz. "Eu dava o cu ao cabo!"
Diante de semelhante resposta, Alfredo e seu companheiro se levantaram da nossa mesa, indignados, e romperam relações com Luiz. Mal se afastaram, voltamos a rir sem parar.
Outro episódio, este nada engraçado, ocorreu com um membro do PCB, enviado a Moscou com a tarefa específica de entregar aos camaradas soviéticos a lista de nomes dos novos alunos que viriam estudar no Instituto. Essa lista não poderia em hipótese alguma cair nas mãos da polícia, já que poria em risco a segurança de todas aquelas pessoas e a dos membros de direção a que estivessem ligadas. Por isso, era levada à União Soviética, em mãos, por um membro da direção nacional do partido. Ocorreu, no entanto, que o companheiro em questão, ao chegar a Paris, tomou um porre e perdeu a lista. Que fazer então? Voltar para o Brasil não podia, mesmo porque não tinha dinheiro para a passagem. Seguiu então para Moscou e chegando ali contou o fato ao responsável pelo coletivo brasileiro.
"É um porra-louca", disse-me Gonçalves, depois de narrar-me o ocorrido.
No dia seguinte, porém, ao tomar café em companhia de Kapústin, ouvi dele uma nova versão do fato.
"O camarada brasileiro que trazia a lista de nomes dos novos alunos teve um comportamento admirável, você soube?"
"Admirável? Como assim?"
"Ao transpor a fronteira, foi detido pela polícia brasileira para averiguações, e não hesitou: engoliu a lista. (...)."



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