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Escapando do Chile
A abertura das fronteiras me
estimulou a tomar as providências necessárias para também ir
embora. A primeira delas era reaver meu passaporte. Sucede que
ele fazia parte do processo em que
eu solicitara o visto de permanência no país e para consegui-lo havia juntado uma carta da revista
"Chile Hoy", cujos diretores e
redatores tiveram sua prisão decretada pelo governo militar. Seria uma temeridade me apresentar, nessas condições, às autoridades do novo governo. Talvez
fosse melhor deixar a poeira assentar.
A poeira não assentava. Ao sair
do apartamento descubro que
minha porta tinha sido pichada:
ao lado de uma cruz gamada, escreveram "fora terrorista!". Tratei imediatamente de apagar a pichação e colei na porta um pedaço de cartolina onde escrevi: "José Ribamar Ferreira/ Corresponsal estranjero/ Colegio de Periodistas de Chile, inscrição nš
675417".
No mesmo dia, à noite, atendo
o telefone: "Todavia estás aí, comunista hijo de puta!". Nada respondi. "Vamos quemar esse
apartamiento de mierda, escuchaste? Vamos acabar contigo!".
Repus o fone no gancho. Talvez
fosse melhor ter ido para uma
embaixada, como os outros. Mas
àquela altura já não seria possível,
porque as embaixadas estavam
agora cercadas por carabineiros
armados. Bem, disse para mim
mesmo, o que não tem remédio
remediado está.
Dormi assustado. Às seis da manhã acordei com o soar da campainha da porta. Quem podia ser?
O toque de recolher começava às
seis da tarde e terminava às oito
horas do dia seguinte. Para bater
em minha casa àquela hora só podia ser a polícia. Desci a escada
sonolento e abri a porta: era a polícia.
Quatro homens armados de fuzil avançaram sobre mim, encurralando-me contra a parede. Um
deles me revistou enquanto os
outros percorriam a casa, vasculhando os aposentos.
"Qual é o seu nome?"
"José Ribamar Ferreira."
"O que faz no Chile?"
"Sou correspondente estrangeiro."
"Correspondente? Sei! E pra
qual jornal escreve?"
"O Estado de S. Paulo."
"Deve ser um pasquim subversivo."
"Não, senhor. É o mais importante jornal conservador do Brasil."
"Seus documentos."
Entreguei a carteira do Colegio
de Periodistas de Chile.
"Esta carteira deve ser falsa."
"Não é falsa, não, senhor."
"Quer me convencer que pertence ao Colegio de Periodistas?
Lá não aceitam terroristas."
"Não sou terrorista. A carteira
é autêntica."
"Vou telefonar pra lá."
"Pois telefone."
Estranhou que minhas malas
estivessem prontas.
"Estava prestes a fugir, não?"
"Não tenho de que fugir. Vou
retornar ao meu país porque minha missão aqui terminou. É impossível exercer o jornalismo nas
condições atuais do Chile."
Eles abriram minhas malas e
examinaram cada peça de roupa,
cada embrulho, cada livro. Quando se voltaram para o guarda-roupas, fiquei apavorado: ali
no bolso de um paletó estava o
documento falso que usara em
São Paulo. Se eles o encontrassem... Mas o homem deu apenas
uma olhada e fechou o armário.
Ficaram ali até as oito e pouco,
quando o policial que comandava
a operação ligou para o Colegio
de Periodistas.
"É -disse-me ele- o documento é verdadeiro. É muito esperto, mas nós vamos voltar e vamos pegar você!"
Quando se foram, invadiu-me
uma sensação de alívio, como se
tivesse escapado deles para sempre. E comecei a refazer minhas
malas, com a pressa de quem vai
embarcar dentro de algumas horas.
"Comigo o buraco é mais embaixo!", garganteei. "Vou botar
na bunda de vocês, seus panacas,
seus fascistas de bosta!"
A verdade é que eles voltaram.
Não aqueles mesmos policiais.
Desta vez chegaram à noite e de
novo implicaram com minhas
malas prontas.
"Por favor", disse eu já menos
assustado, "não desfaçam de novo minhas malas. Os colegas de
vocês já reviraram tudo."
O sujeito que passou a me interrogar queria saber de José Serra,
que havia morado naquele apartamento. Menti que não conhecia
ninguém com aquele nome. Repetiu as mesmas perguntas do
outro e no final me entregou um
papel assinado por ele.
"Apresente isto na Extranjería.
Eles lhe darão um salvo-conduto
para o senhor ir embora. Queremos todos os comunistas fora do
Chile quanto antes!"
Entrei escabreado na Extranjería, temendo sair preso dali. Se
encontrassem no processo a carta
de "Chile Hoy", eu estaria frito.
Mostrei o papel do policial a um
funcionário, que me mandou para o balcão em frente. A mesma
moça que me atendera meses
atrás, atendeu-me agora. Por seu
olhar vi que ela me havia reconhecido e estremeci. Teria mudado de lado? Ia me denunciar? Fiquei vigiando-a: ela se dirigiu a
um arquivo no fundo da sala, tirou de lá uma pasta e a folheou.
Em seguida, sumiu por uma porta, demorou alguns minutos e
veio andando na minha direção.
"É o senhor José Ribamar Ferreira?"
"Sim."
"Aguarde um instante que vou
redigir o salvo-conduto." (...)
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