São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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Escapando do Chile

A abertura das fronteiras me estimulou a tomar as providências necessárias para também ir embora. A primeira delas era reaver meu passaporte. Sucede que ele fazia parte do processo em que eu solicitara o visto de permanência no país e para consegui-lo havia juntado uma carta da revista "Chile Hoy", cujos diretores e redatores tiveram sua prisão decretada pelo governo militar. Seria uma temeridade me apresentar, nessas condições, às autoridades do novo governo. Talvez fosse melhor deixar a poeira assentar.
A poeira não assentava. Ao sair do apartamento descubro que minha porta tinha sido pichada: ao lado de uma cruz gamada, escreveram "fora terrorista!". Tratei imediatamente de apagar a pichação e colei na porta um pedaço de cartolina onde escrevi: "José Ribamar Ferreira/ Corresponsal estranjero/ Colegio de Periodistas de Chile, inscrição nš 675417".
No mesmo dia, à noite, atendo o telefone: "Todavia estás aí, comunista hijo de puta!". Nada respondi. "Vamos quemar esse apartamiento de mierda, escuchaste? Vamos acabar contigo!".
Repus o fone no gancho. Talvez fosse melhor ter ido para uma embaixada, como os outros. Mas àquela altura já não seria possível, porque as embaixadas estavam agora cercadas por carabineiros armados. Bem, disse para mim mesmo, o que não tem remédio remediado está.
Dormi assustado. Às seis da manhã acordei com o soar da campainha da porta. Quem podia ser? O toque de recolher começava às seis da tarde e terminava às oito horas do dia seguinte. Para bater em minha casa àquela hora só podia ser a polícia. Desci a escada sonolento e abri a porta: era a polícia.
Quatro homens armados de fuzil avançaram sobre mim, encurralando-me contra a parede. Um deles me revistou enquanto os outros percorriam a casa, vasculhando os aposentos.
"Qual é o seu nome?"
"José Ribamar Ferreira."
"O que faz no Chile?"
"Sou correspondente estrangeiro."
"Correspondente? Sei! E pra qual jornal escreve?"
"O Estado de S. Paulo."
"Deve ser um pasquim subversivo."
"Não, senhor. É o mais importante jornal conservador do Brasil."
"Seus documentos."
Entreguei a carteira do Colegio de Periodistas de Chile.
"Esta carteira deve ser falsa."
"Não é falsa, não, senhor."
"Quer me convencer que pertence ao Colegio de Periodistas? Lá não aceitam terroristas."
"Não sou terrorista. A carteira é autêntica."
"Vou telefonar pra lá."
"Pois telefone."
Estranhou que minhas malas estivessem prontas.
"Estava prestes a fugir, não?"
"Não tenho de que fugir. Vou retornar ao meu país porque minha missão aqui terminou. É impossível exercer o jornalismo nas condições atuais do Chile."
Eles abriram minhas malas e examinaram cada peça de roupa, cada embrulho, cada livro. Quando se voltaram para o guarda-roupas, fiquei apavorado: ali no bolso de um paletó estava o documento falso que usara em São Paulo. Se eles o encontrassem... Mas o homem deu apenas uma olhada e fechou o armário.
Ficaram ali até as oito e pouco, quando o policial que comandava a operação ligou para o Colegio de Periodistas.
"É -disse-me ele- o documento é verdadeiro. É muito esperto, mas nós vamos voltar e vamos pegar você!"
Quando se foram, invadiu-me uma sensação de alívio, como se tivesse escapado deles para sempre. E comecei a refazer minhas malas, com a pressa de quem vai embarcar dentro de algumas horas.
"Comigo o buraco é mais embaixo!", garganteei. "Vou botar na bunda de vocês, seus panacas, seus fascistas de bosta!"
A verdade é que eles voltaram. Não aqueles mesmos policiais. Desta vez chegaram à noite e de novo implicaram com minhas malas prontas.
"Por favor", disse eu já menos assustado, "não desfaçam de novo minhas malas. Os colegas de vocês já reviraram tudo."
O sujeito que passou a me interrogar queria saber de José Serra, que havia morado naquele apartamento. Menti que não conhecia ninguém com aquele nome. Repetiu as mesmas perguntas do outro e no final me entregou um papel assinado por ele.
"Apresente isto na Extranjería. Eles lhe darão um salvo-conduto para o senhor ir embora. Queremos todos os comunistas fora do Chile quanto antes!"
Entrei escabreado na Extranjería, temendo sair preso dali. Se encontrassem no processo a carta de "Chile Hoy", eu estaria frito. Mostrei o papel do policial a um funcionário, que me mandou para o balcão em frente. A mesma moça que me atendera meses atrás, atendeu-me agora. Por seu olhar vi que ela me havia reconhecido e estremeci. Teria mudado de lado? Ia me denunciar? Fiquei vigiando-a: ela se dirigiu a um arquivo no fundo da sala, tirou de lá uma pasta e a folheou. Em seguida, sumiu por uma porta, demorou alguns minutos e veio andando na minha direção.
"É o senhor José Ribamar Ferreira?"
"Sim."
"Aguarde um instante que vou redigir o salvo-conduto." (...)



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