São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Doutor Guevara

Como médico, o argentino tentou aliar revolução e avanços na área de saúde

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Este 9 de outubro assinala os 40 anos da morte de uma extraordinária figura, um líder revolucionário que marcou o nosso tempo, Ernesto Rafael Guevara de la Serna, Che Guevara (Che é o equivalente a "você" dos argentinos, uruguaios e gaúchos).
Neste texto, vamos considerar um lado pouco mencionado de Guevara, o lado médico. Nascido (1928) em Rosario, Argentina, Ernesto descendia de uma família com origens na Espanha e na Irlanda, dois países nos quais a paixão tem cidadania. Seus pais eram pessoas cultas e engajadas politicamente: ambos opunham-se ao regime peronista que por longo tempo ficou no poder.
Aos dois anos manifestou-se no pequeno Ernesto a doença que o acompanharia por toda a vida, e que partilhou com figuras famosas, como Pedro, o Grande, Charles Dickens e Marcel Proust: a asma.
Em 1948, entrou na Universidade de Buenos Aires para estudar medicina. Estudante, Ernesto rapidamente desiludiu-se com o curso; não era um estudante dedicado e, numa carta à namorada Chichina Ferreyra, rotulou a profissão médica como "ridícula".
Mas defendia os aspectos humanísticos e sociais da profissão, defendendo a socialização da medicina e sustentando que os leprosos deveriam ser libertos de seu estigma.

Viagem de moto
Foi como estudante de medicina que, em 1952, Guevara empreendeu a famosa viagem pela América Latina junto com seu amigo, o bioquímico Alberto Granado.
Pilotanto a motocicleta La Poderosa 2, os dois partiram para a jornada que depois Guevara narraria nos "Diários de Motocicleta", ponto de partida para o filme de Walter Salles.
Essa viagem foi, para o jovem estudante, um verdadeiro rito de passagem; já influenciado pela literatura marxista e impressionado pela pobreza e pela marginalização que via, Guevara convenceu-se de que só a revolução armada mudaria o destino da América Latina.
Em uma palestra realizada em 1960 e dirigida a soldados cubanos, Guevara propõe-se a responder a uma dupla pergunta: como se pratica uma medicina revolucionária? Como se compatibiliza objetivos profissionais com objetivos revolucionários?
Em primeiro lugar, diz ele, é preciso revisar a trajetória pessoal (um processo que o comunismo conhecia como autocrítica), por onde o médico revolucionário chegará à obrigatória conclusão de que o passado tem de ser descartado.
Da mesma maneira deverá mudar a medicina. O governo revolucionário tem de prover serviços de saúde pública para o maior número possível de pessoas, instituir um programa de medicina preventiva e orientar o público para práticas higiênicas.
Isso não significava, apressou-se a acrescentar, sufocar a iniciativa individual; ao contrário, talentos pessoais devem ser estimulados, mas orientados para a medicina social.

Função pedagógica
O médico deve inclusive exercer funções pedagógicas, ensinando ao povo como diversificar seus alimentos por meio da agricultura.
E deve ter funções políticas, o que, para Guevara, significa ouvir a população, interagir com ela, aprender. Há um inimigo comum, o governo norte-americano, e contra ele os cubanos devem se unir, assim como devem se unir a outros povos, mesmo que haja alguma diferença em termos de organização dos países (ou seja: mesmo quem não é socialista pode fazer parte da aliança contra o inimigo).
Se for preciso lutar, o médico cumprirá funções de soldado e de revolucionário, mas sem deixar a medicina, sem cometer, dizia Che Guevara, o erro que cometemos em Sierra Maestra, em que o médico estava ansioso por combater, não por cuidar de feridos.
Da guerrilha não é difícil passar ao terrorismo, mesmo porque para muitos é apenas uma questão de nomenclatura. No Oriente Médio não são raros os médicos que optaram por essa forma de luta política.
Formação superior
Isso contraria a tese de que terroristas são recrutados nas camadas mais pobres e incultas. Na verdade, a formação superior, sobretudo em medicina, facilita a atividade terrorista.
Durante anos Europa e Estados Unidos trataram de compensar a falta de profissionais por meio da "importação de cérebros"; cerca de 37% dos médicos com prática no Reino Unido são estrangeiros. Isso facilitava o deslocamento dos médicos que haviam optado pelo terror.


MOACYR SCLIAR é escritor, autor de "O Centauro no Jardim" (Cia. das Letras).

NA INTERNET - Leia a íntegra deste artigo no endereço eletrônico www.folha.com.br/072761


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