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CINEMA
As relações oblíquas
O diretor argentino Edgardo Cozarinsky participa na USP de curso sobre Borges e o cinema
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MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
As relações entre cinema e literatura devem ser sempre oblíquas, indiretas. Mais vale citar,
contradizer, do que adaptar ou
ilustrar. Os melhores filmes da
história do cinema foram feitos a
partir de literatura ruim. Essas são
algumas das opiniões do cineasta
e escritor argentino Edgardo Cozarinsky, que em 1974 deixou o
seu país e passou a viver em Paris.
Cozarinsky estará em São Paulo
nas próximas duas semanas, onde
dará o curso "Borges e o Cinema",
na pós-graduação em espanhol
da USP (mais informações pelo
tel. 0/xx/11/818-4296). Na quarta-feira, às 19h30, ele participará do
evento "Cozarinsky e Borges - A
Imagem e as Letras", na Folha (al.
Barão de Limeira, 425, 9º andar,
Campos Elíseos, região central).
Também estarão presentes o diretor Hector Babenco e o professor
da USP Jorge Schwartz. Os interessados devem fazer reservas,
das 14h às 17h, pelo telefone 0/xx/
11/224-3473.
Talvez Cozarinsky seja mais conhecido no Brasil por seu livro
"Borges - Do Cinema" (Ed. Livros
Horizonte, Lisboa) do que propriamente por seus filmes, que
nunca foram exibidos no circuito
brasileiro de cinemas. Tendo convivido com Borges na Argentina,
Cozarinsky assimilou do autor de
"O Aleph" o gosto pelas citações e
pelas formas elípticas, o que dá a
seus filmes um caráter fortemente
ensaístico.
O primeiro longa-metragem de
Cozarinsky, "... (Puntos Suspensivos)", rodado em Buenos Aires
entre 1969 e 70, terminava com a
leitura do poema de Konstantinos
Kaváfis, "À Espera dos Bárbaros".
"Rever esse filme se tornou insuportável para mim. Hoje, porém,
vejo que fui lúcido ao concluir o
filme com o poema de Kaváfis",
disse Cozarinsky em 1993.
Alguns anos depois, a Argentina governada por militares e o diretor vivendo na França, Cozarinsky filmou "Les Apprentis Sorciers" (Aprendizes de Feiticeiro,
de 1977), que foi mal-recebido pela crítica e ignorado pelo público.
O filme narrava a história de um
grupo de exilados latino-americanos em Paris e sua fracassada tentativa de montar uma peça de
Georg Büchner, "A Morte de
Danton".
O sucesso de crítica veio com
"La Guerre d'un Seul Homme" (A
Guerra de um Só Homem, de
1981), feito a partir dos "Diários
Parisienses" do escritor Ernst
Jünger e de documentários da Paris ocupada pelos nazistas. "Recusei-me a utilizar a voz da História
para pôr em movimento a ambiguidade das mentiras, de modo a
restituir o que foi vivido num momento histórico, sem renunciar
por isso à perspectiva que o passar do tempo nos deu sobre esse
momento", comentou Cozarinsky na época em que o filme foi
lançado.
Em seu longa mais recente, "Le
Violon de Rothschild" (O Violino
de Rothschild, de 1996), Cozarinsky volta a tratar da Segunda
Guerra. Dessa vez, o foco é o compositor russo Shostakovich e seu
discípulo Benjamin Fleischmann,
morto no front.
Leia a seguir a entrevista que
Cozarinsky concedeu, de Paris,
por telefone.
Folha - O sr. nunca adaptou
um texto de Borges para o cinema, embora o escritor argentino
seja uma forte influência em sua
obra. Por quê?
Edgardo Cozarinsky - Penso
que uma obra literária bem-acabada deve ser inteiramente desfeita e refeita pelo cinema. Os filmes
mais interessantes da história do
cinema são baseados em romances muito ruins ou em crônicas
policiais de jornal. Nesses casos, o
cinema intervém e dá uma forma
estética e criativa ao material bruto. Quando a obra já tem uma forma elaborada, perfeita, como é o
caso das narrativas de Borges, não
há mais nada a ser feito -ou melhor, há que se fazer outra coisa.
Borges dizia que toda obra importante propõe ou inclui o seu
contrário, uma contra-obra. No
meu filme "Guerreiros e Cativas"
(89), por exemplo, em vez de fazer
uma adaptação do conto de Borges "História do Guerreiro e da
Cativa" (de "El Aleph", de 49),
procurei dar uma resposta a ele.
A idéia era utilizar elementos
daquela narrativa para contar
uma história oposta, contrária.
Enfim, estabelecer um diálogo.
Nesse sentido, posso dizer que
parti de Borges, sem o "adaptar"
ou "ilustrar", mas respondendo
às questões que ele, como escritor,
havia proposto ao leitor.
Folha - O que acha das várias
adaptações de obras de Borges
para o cinema?
Cozarinsky - Não gostaria de
exercer aqui o papel de crítico...
Creio que há coisas interessantes,
outras bem menos. Para mim as
melhores não são as que se baseiam diretamente em Borges,
mas as que o tomam como pretexto, citação, como é o caso das
coisas do primeiro Godard, da
época de "Alphaville" (1965) ou
"Os Carabineiros" (1963), ou filmes engenhosos como "Performance" (1970), de Nicholas Roeg,
que não é sobre Borges, mas utiliza citações e imagens borgianas.
Folha - O sr. gosta do filme "A
Estratégia da Aranha" (1970), de
Bernardo Bertolucci, baseado
no conto "Tema do Traidor e do
Herói" (de "Ficções", de 1944)?
Cozarinsky - Sim, considero-o
interessante sobretudo plasticamente. Além disso, o próprio conto começava dizendo que "essa
história poderia ser contada em
qualquer lugar e em qualquer
época...". Bertolucci então se
apropria disso e diz: "Esse filme é
sobre a Itália, no tempo do fascismo" (e não sobre a "Irlanda sob a
dominação inglesa"). Ele fez uma
outra opção, diferente da de Borges, mas de alguma maneira o
próprio Borges já o havia convidado a isso em seu parágrafo inicial. O resultado me parece visualmente belo, a contextualização na
época do fascismo é interessante,
mas o filme é um pouco fraco do
ponto de vista dramático.
Folha - E o que acha do filme
"Invasión" (1969), de Hugo Santiago (com roteiro de Borges e
Adolfo Bioy Casares)?
Cozarinsky - Acho-o extraordinário por sua força visual. Às vezes é demasiado literário, principalmente nos diálogos, mas Santiago, junto com o fotógrafo Ricardo Aronovitch, conseguiu fazer um belo filme. Quanto ao roteiro, foi feito a partir das conversas entre Borges e Bioy, coisa que
eles faziam quase todas as noites,
depois do jantar.
Folha - Seus filmes são "borgianamente" construídos a partir de citações: de obras literárias, musicais, teatrais, cinematográficas. Gostaria que comentasse seu processo de criação.
Cozarinsky - Meu livro "Vodu
Urbano" (1981) é todo feito a partir de citações, referências literárias. Já nos meus filmes o que talvez mais me interesse seja incorporar músicas antigas e aqueles
velhos noticiários de variedades,
que antigamente precediam a exibição dos filmes propriamente ditos. Antes de a TV existir, antes
que ela estivesse em todas as casas, as pessoas saíam de casa para
ir ao cinema e ver imagens da
atualidade, as únicas a que elas tinham acesso sobre o que se passava no mundo: uma guerra, um fato social, eventos esportivos. As
imagens não entravam nas casas.
Esses noticiários tinham um efeito de verdade muito forte, porque
o público também era menos cético, não estava acostumado a colocá-los sob suspeita, como hoje.
Havia uma certa ingenuidade que
não levava em conta a posição da
câmera, a montagem, o sentido
do discurso que se transmitia.
Enfim, me interessa citar essas
coisas que parecem vindas de outro mundo, mais "primitivo" e
"ingênuo" -não na realização,
mas na recepção que o espectador
poderia ter. Gosto de pôr em diálogo materiais velhos e novos. Sobretudo tenho aversão a qualquer
noção de pureza: a arte pura, o cinema puro, a raça pura. Gosto das
coisas mescladas, da mestiçagem.
Folha - Recentemente o sociólogo Pierre Bourdieu criticou o
efeito uniformizador que a economia de mercado global -liderada pelos EUA- estaria causando às culturas locais, sobretudo às produções audiovisuais.
O sr. concorda com ele?
Cozarinsky - Acho que o público rejeita espontaneamente qualquer forma de arte, de linguagem
ou de entretenimento que lhe impõem. Aqui na França querem
impor uma cota de programas de
televisão franceses, e o público vai
rechaçá-los imediatamente. Além
disso, os programas norte-americanos terão o prestígio do proibido. O que deve ser defendido é
que as estruturas que possibilitam
a produção de filmes na Europa
ocidental não sejam utilizadas para financiar produtos americanos.
Os fundos para estimular a produção européia devem ser preservados para esse fim.
Não se trata de protecionismo
antiamericano. O problema é que
os americanos querem vir aqui e
desfrutar os fundos europeus para que se façam filmes falados em
inglês -que depois serão distribuídos nos EUA. Essas produções
são uma espécie de segunda categoria da indústria de entretenimento; pretendem ser internacionais "à americana", mas são profundamente falsas.
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