São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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CINEMA

As relações oblíquas



O diretor argentino Edgardo Cozarinsky participa na USP de curso sobre Borges e o cinema
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

As relações entre cinema e literatura devem ser sempre oblíquas, indiretas. Mais vale citar, contradizer, do que adaptar ou ilustrar. Os melhores filmes da história do cinema foram feitos a partir de literatura ruim. Essas são algumas das opiniões do cineasta e escritor argentino Edgardo Cozarinsky, que em 1974 deixou o seu país e passou a viver em Paris.
Cozarinsky estará em São Paulo nas próximas duas semanas, onde dará o curso "Borges e o Cinema", na pós-graduação em espanhol da USP (mais informações pelo tel. 0/xx/11/818-4296). Na quarta-feira, às 19h30, ele participará do evento "Cozarinsky e Borges - A Imagem e as Letras", na Folha (al. Barão de Limeira, 425, 9º andar, Campos Elíseos, região central). Também estarão presentes o diretor Hector Babenco e o professor da USP Jorge Schwartz. Os interessados devem fazer reservas, das 14h às 17h, pelo telefone 0/xx/ 11/224-3473.
Talvez Cozarinsky seja mais conhecido no Brasil por seu livro "Borges - Do Cinema" (Ed. Livros Horizonte, Lisboa) do que propriamente por seus filmes, que nunca foram exibidos no circuito brasileiro de cinemas. Tendo convivido com Borges na Argentina, Cozarinsky assimilou do autor de "O Aleph" o gosto pelas citações e pelas formas elípticas, o que dá a seus filmes um caráter fortemente ensaístico.
O primeiro longa-metragem de Cozarinsky, "... (Puntos Suspensivos)", rodado em Buenos Aires entre 1969 e 70, terminava com a leitura do poema de Konstantinos Kaváfis, "À Espera dos Bárbaros". "Rever esse filme se tornou insuportável para mim. Hoje, porém, vejo que fui lúcido ao concluir o filme com o poema de Kaváfis", disse Cozarinsky em 1993.
Alguns anos depois, a Argentina governada por militares e o diretor vivendo na França, Cozarinsky filmou "Les Apprentis Sorciers" (Aprendizes de Feiticeiro, de 1977), que foi mal-recebido pela crítica e ignorado pelo público. O filme narrava a história de um grupo de exilados latino-americanos em Paris e sua fracassada tentativa de montar uma peça de Georg Büchner, "A Morte de Danton".
O sucesso de crítica veio com "La Guerre d'un Seul Homme" (A Guerra de um Só Homem, de 1981), feito a partir dos "Diários Parisienses" do escritor Ernst Jünger e de documentários da Paris ocupada pelos nazistas. "Recusei-me a utilizar a voz da História para pôr em movimento a ambiguidade das mentiras, de modo a restituir o que foi vivido num momento histórico, sem renunciar por isso à perspectiva que o passar do tempo nos deu sobre esse momento", comentou Cozarinsky na época em que o filme foi lançado.
Em seu longa mais recente, "Le Violon de Rothschild" (O Violino de Rothschild, de 1996), Cozarinsky volta a tratar da Segunda Guerra. Dessa vez, o foco é o compositor russo Shostakovich e seu discípulo Benjamin Fleischmann, morto no front.
Leia a seguir a entrevista que Cozarinsky concedeu, de Paris, por telefone.

Folha - O sr. nunca adaptou um texto de Borges para o cinema, embora o escritor argentino seja uma forte influência em sua obra. Por quê?
Edgardo Cozarinsky -
Penso que uma obra literária bem-acabada deve ser inteiramente desfeita e refeita pelo cinema. Os filmes mais interessantes da história do cinema são baseados em romances muito ruins ou em crônicas policiais de jornal. Nesses casos, o cinema intervém e dá uma forma estética e criativa ao material bruto. Quando a obra já tem uma forma elaborada, perfeita, como é o caso das narrativas de Borges, não há mais nada a ser feito -ou melhor, há que se fazer outra coisa.
Borges dizia que toda obra importante propõe ou inclui o seu contrário, uma contra-obra. No meu filme "Guerreiros e Cativas" (89), por exemplo, em vez de fazer uma adaptação do conto de Borges "História do Guerreiro e da Cativa" (de "El Aleph", de 49), procurei dar uma resposta a ele.
A idéia era utilizar elementos daquela narrativa para contar uma história oposta, contrária. Enfim, estabelecer um diálogo. Nesse sentido, posso dizer que parti de Borges, sem o "adaptar" ou "ilustrar", mas respondendo às questões que ele, como escritor, havia proposto ao leitor.

Folha - O que acha das várias adaptações de obras de Borges para o cinema?
Cozarinsky -
Não gostaria de exercer aqui o papel de crítico... Creio que há coisas interessantes, outras bem menos. Para mim as melhores não são as que se baseiam diretamente em Borges, mas as que o tomam como pretexto, citação, como é o caso das coisas do primeiro Godard, da época de "Alphaville" (1965) ou "Os Carabineiros" (1963), ou filmes engenhosos como "Performance" (1970), de Nicholas Roeg, que não é sobre Borges, mas utiliza citações e imagens borgianas.

Folha - O sr. gosta do filme "A Estratégia da Aranha" (1970), de Bernardo Bertolucci, baseado no conto "Tema do Traidor e do Herói" (de "Ficções", de 1944)?
Cozarinsky -
Sim, considero-o interessante sobretudo plasticamente. Além disso, o próprio conto começava dizendo que "essa história poderia ser contada em qualquer lugar e em qualquer época...". Bertolucci então se apropria disso e diz: "Esse filme é sobre a Itália, no tempo do fascismo" (e não sobre a "Irlanda sob a dominação inglesa"). Ele fez uma outra opção, diferente da de Borges, mas de alguma maneira o próprio Borges já o havia convidado a isso em seu parágrafo inicial. O resultado me parece visualmente belo, a contextualização na época do fascismo é interessante, mas o filme é um pouco fraco do ponto de vista dramático.

Folha - E o que acha do filme "Invasión" (1969), de Hugo Santiago (com roteiro de Borges e Adolfo Bioy Casares)?
Cozarinsky -
Acho-o extraordinário por sua força visual. Às vezes é demasiado literário, principalmente nos diálogos, mas Santiago, junto com o fotógrafo Ricardo Aronovitch, conseguiu fazer um belo filme. Quanto ao roteiro, foi feito a partir das conversas entre Borges e Bioy, coisa que eles faziam quase todas as noites, depois do jantar.

Folha - Seus filmes são "borgianamente" construídos a partir de citações: de obras literárias, musicais, teatrais, cinematográficas. Gostaria que comentasse seu processo de criação.
Cozarinsky -
Meu livro "Vodu Urbano" (1981) é todo feito a partir de citações, referências literárias. Já nos meus filmes o que talvez mais me interesse seja incorporar músicas antigas e aqueles velhos noticiários de variedades, que antigamente precediam a exibição dos filmes propriamente ditos. Antes de a TV existir, antes que ela estivesse em todas as casas, as pessoas saíam de casa para ir ao cinema e ver imagens da atualidade, as únicas a que elas tinham acesso sobre o que se passava no mundo: uma guerra, um fato social, eventos esportivos. As imagens não entravam nas casas. Esses noticiários tinham um efeito de verdade muito forte, porque o público também era menos cético, não estava acostumado a colocá-los sob suspeita, como hoje. Havia uma certa ingenuidade que não levava em conta a posição da câmera, a montagem, o sentido do discurso que se transmitia.
Enfim, me interessa citar essas coisas que parecem vindas de outro mundo, mais "primitivo" e "ingênuo" -não na realização, mas na recepção que o espectador poderia ter. Gosto de pôr em diálogo materiais velhos e novos. Sobretudo tenho aversão a qualquer noção de pureza: a arte pura, o cinema puro, a raça pura. Gosto das coisas mescladas, da mestiçagem.

Folha - Recentemente o sociólogo Pierre Bourdieu criticou o efeito uniformizador que a economia de mercado global -liderada pelos EUA- estaria causando às culturas locais, sobretudo às produções audiovisuais. O sr. concorda com ele?
Cozarinsky -
Acho que o público rejeita espontaneamente qualquer forma de arte, de linguagem ou de entretenimento que lhe impõem. Aqui na França querem impor uma cota de programas de televisão franceses, e o público vai rechaçá-los imediatamente. Além disso, os programas norte-americanos terão o prestígio do proibido. O que deve ser defendido é que as estruturas que possibilitam a produção de filmes na Europa ocidental não sejam utilizadas para financiar produtos americanos. Os fundos para estimular a produção européia devem ser preservados para esse fim.
Não se trata de protecionismo antiamericano. O problema é que os americanos querem vir aqui e desfrutar os fundos europeus para que se façam filmes falados em inglês -que depois serão distribuídos nos EUA. Essas produções são uma espécie de segunda categoria da indústria de entretenimento; pretendem ser internacionais "à americana", mas são profundamente falsas.


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