São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

A travessia de Castelli



Galerista viabilizou o sonho da arte como mercadoria

LISETTE LAGNADO
especial para a Folha

Por que a morte de Leo Castelli, ocorrida no último dia 21 de agosto, merece uma reflexão entre nós? Que tipo de questões esse fato pode suscitar, além do mero registro do desaparecimento de um dos mais importantes galeristas deste século?
Não pretendo me limitar à biografia de Castelli, mas refletir sobre sua atuação que legitimou, em meio à hegemonia do expressionismo abstrato, a arte pop, minimal e conceitual. É difícil dissociar o nome de Castelli de Robert Rauschenberg, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, Robert Morris, Cy Twombly, Dan Flavin, Bruce Nauman, Richard Serra e Andy Warhol.
Certos feitos desse filho de banqueiro, nascido em Trieste, em 1907, e diplomado em direito, alçaram patamares inéditos na história do mercado de arte -como deixar de ver um gesto protocuratorial na exposição coletiva que montou, por analogia de linguagem, em 1950, com artistas franceses e americanos (1)? É preciso compreender a influência de Castelli como fenômeno cultural, além de comercial. Com ele, artistas americanos ganham impulso na Europa (apoiados por Ileana Sonnabend, em Paris). Quando Rauschenberg é premiado na Bienal de Veneza de 1964, Pierre Cabanne vaticina: "Em Veneza, a América proclama o fim da Escola de Paris e lança a pop art para colonizar a Europa".
Castelli adotou práticas substanciais para uma maior difusão da arte contemporânea: mesadas aos artistas para financiar sua produção e parcerias com galerias européias e americanas. Anedotas saborosas cercam sua trajetória, tardiamente iniciada em 1957. Consta que sua galeria teria exibido a maior pintura pop do mundo em 1965, um mural de James Rosenquist; nos anos 70, teria financiado uma escultura pública de Richard Serra em Manhattan, após uma negociação malograda do artista em Washington. Para entender as circunvoluções do mercado de arte, cabe lembrar a lendária afirmação do pintor Willem de Kooning de que Castelli era capaz de vender qualquer coisa, por exemplo duas canecas de cerveja. Jasper Johns fundiu em bronze, na ocasião, duas garrafas Ballantine Ale, vendidas a US$ 960, que, anos depois, foram leiloadas a US$ 90 mil (2).
No pós-guerra, os marchands foram pioneiros em estimular a produção mais radical. Pensar sobre Castelli nos remete a uma discussão acerca das feições da cultura contemporânea, a banalização do debate entre "high" e "low art", a passagem de um gesto transgressor para sua institucionalização. Pois qual papel restava à galeria depois do urinol (1917) de Marcel Duchamp?
O "ready made", ao provocar a autoconsciência do gesto artístico, tinha, além de qualquer consequência estética, um objetivo político: criticar a institucionalização da arte. Entende-se por "instituição" aquilo que consagra, dá autoridade à obra. Dos anos 50 até hoje, esse poder foi exercido em peso pelo mercado e pela crítica, alastrando-se na formação de grandes coleções e na política cultural dos museus. É o momento em que despontam os grandes colecionadores europeus da arte "neovanguarda", como o conde Panza di Biumo e Peter Ludwig. O MoMA, então sob a direção de Alfred Barr, passa a adquirir obras realizadas sob a categoria do "novo" (uma das atribuições baudelairianas do moderno), abrindo uma crise interna para uma redefinição entre modernidade e contemporaneidade.
A travessia de Castelli pela história da arte testemunhou abalos sísmicos de valores, como a "morte do autor", o abandono das categorias estéticas, do Belo, dos materiais nobres e perenes. Não por acaso, Castelli viabilizou a pop art, ícone da glamourização da sociedade de consumo, do não-elitismo. A questão do público já era subjacente: deve ser tratado como um colecionador em potencial. Nesse sentido, houve uma mudança conceitual importante na profissão, de "marchand de tableaux" (com finalidade decorativa) para galerista (à maneira dos críticos, traduz uma escolha estética, apoiando determinadas tendências). Hoje, a localização geográfica das galerias tem um papel decisivo no tecido urbano, chegando a fomentar uma efervescência cultural nos seus arredores (deslocamento do bairro chique e burguês do Uptown, ao East Village, SoHo e Chelsea, em Nova York).
Se exercer um olhar contemporâneo já parece tarefa assimilada, transformar essa visada em moeda ainda depende de uma forte convicção do galerista. Em meio século, o mercado aprendeu a vender arte como idéia, conceito, investigação, processo, apropriação, ação ou abjeção, em seus mais diversos suportes não tradicionais (performance, instalação, vídeo). Sol LeWitt chegou a dizer que "a execução é um assunto sem importância". O que vale é a assinatura, o nome próprio, contrato firmado entre artista e colecionador.
Em 1959, Yves Klein vendia "zonas de sensibilidade pictórica imaterial", entregando recibos a compradores que adquiriam uma determinada quantia de ouro a ser jogada no Sena mediante um recibo que, por sua vez, finda a operação, devia ser queimado. A presença física da obra se viu reduzida a telegramas, reafirmando a presença do artista como sujeito absoluto, "I am still alive" (On Kawara).
Após anos de conceitualismo, em que os artistas desapossaram os colecionadores de seu desejo de posse, o revés se deu na fetichização da obra: hoje, comercializam-se trabalhos com óleo, sabão, carne ou leite, que exigem uma manutenção permanente e a presença do artista (senão de um registro escrito) a cada remontagem. O colecionador de arte contemporânea já admite a temporalidade da obra e que seu "frisson" seja efêmero, pois assim é também a sua própria existência.



Notas 1. Cf. Calvin Tomkins, in "Post to Neo -The Art World of the 1980s". Penguin Books, 1989. Entre os vários diálogos estéticos propostos por Castelli e Sidney Janis, destaco: Dubuffet com de Kooning, Soulages com Kline, De Staël com Rothko (pág. 22).
2. Cf. Tomkins, op. cit., pág. 37.


Lisette Lagnado é crítica de arte, curadora independente e autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Doréa Books and Art).


Texto Anterior: Ponto de fuga: A figura e o fundo
Próximo Texto: Risco no disco - Ledusha Spinardi: Bálsamos urbanos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.