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Falha de conexão
ALUNO REBELDE DE STEVEN PINKER, PSICÓLOGO AMERICANO GARY MARCUS ARGUMENTA EM LIVRO QUE O CÉREBRO HUMANO É UMA GAMBIARRA EVOLUTIVA QUE FREQÜENTEMENTE DÁ PAU
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RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Engenheiros americanos costumam usar a
gíria "kluge" ao se referirem a soluções improvisadas para problemas em projetos. A falta de
iluminação numa casa nova
pode rapidamente ser resolvida, por exemplo, com um fio
desencapado, uma lâmpada velha, uma extensão e esparadrapo. Esse tipo de gambiarra, diz
o psicólogo Gary Marcus, da
Universidade de Nova York, é
também a melhor analogia para descrever a mente humana.
"Kluge" é o título do novo livro de Marcus, dedicado a mostrar como nossas faculdades
mentais mais caras -consciência e raciocínio lógico- foram
construídas pela evolução
aproveitando estruturas cerebrais primitivas, na falta de algo melhor. Dá para o gasto, mas
o preço que pagamos por não
sermos fruto de um "projeto
inteligente" é que nossa gambiarra cerebral freqüentemente entra em curto-circuito.
Auto-engano, teimosia, presunção -e crenças religiosas-
seriam todos efeitos colaterais
da forma como a mente é estruturada. Nossa memória,
também, parece ser ótima para
um caçador identificar pegadas
de animais, mas não muito para guardar senhas de banco.
Analisando suas teorias à luz
de experimentos psicológicos,
Marcus mostra o quanto somos capazes de violar a racionalidade que supostamente é a
marca registrada do Homo sapiens, o homem que sabe. Em
um fenômeno conhecido como
"ancoragem e ajuste", por
exemplo, o cérebro é normalmente induzido por valores arbitrários -o autor descreve um
experimento no qual números
que saíam numa roda da fortuna influenciavam voluntários a
responder uma questão não-relacionada, como "qual é a
porcentagem de países africanos na ONU?"
Outro fenômeno analisado
por Marcus a chamada "preparação", ou indução subliminar.
As pessoas tendem a responder
a perguntas sobre suas vidas
com mais otimismo depois de
assistir a "Os Smurfs" do que a
"O Ladrão de Bicicletas".
Diante disso, Marcus acusa
seu próprio professor Steven
Pinker -o papa da psicologia
evolutiva- de superexaltar o
cérebro humano como um órgão perfeitamente adaptado.
Em entrevista à Folha, o psicólogo falou um pouco sobre
como até a própria ciência cai
nas armadilhas da mente.
FOLHA - Seu livro tem uma espécie
de seção de auto-ajuda ao final, listando coisas que as pessoas podem
fazer para não serem apanhadas pelos truques que a mente prega em
todos nós. Ter autoconsciência dessas falhas realmente pode fazer com
que identifiquemos melhor nossas
irracionalidades?
GARY MARCUS - Acho que a autoconsciência ajuda mais em alguns problemas do que em outros. Podemos reduzir a quantidade de problemas que acontecem. Não acho que possamos
eliminá-los. Se você refletir um
pouco mais sobre alguma decisão em particular e pensar: "Estou sendo influenciado por preparação?" ou "estou sendo influenciado por ancoragem?"
você poderá melhorar, às vezes.
Perguntar a si próprio sobre
possíveis alternativas para explicar dados pode ajudar em diversas situações.
FOLHA - O sr. critica Steven Pinker,
que foi seu orientador, por vender
uma imagem do cérebro com um órgão bem adaptado ao ambiente,
funcionando sempre em harmonia.
Pinker respondeu à sua crítica?
MARCUS - Bom, acho que ele diria que os psicólogos evolutivos
certamente estão cientes de
que o cérebro tem limites. Eu
diria que eles estão cientes, mas
não têm prestado muita atenção nisso. Acho que nós temos
uma diferença de ênfase. A
maior parte dos exemplos que
os psicólogos evolutivos dão
são sobre coisas que o cérebro
faz bem. Eu tenho tentado
abordar isso com equilíbrio e
falar também sobre as coisas
que o cérebro não faz direito.
FOLHA - Seu livro se baseia em um
argumento que questiona ideologias como o design inteligente. O
combate ao design inteligente foi o
que motivou o livro?
MARCUS - Certamente eu quis
que o livro fosse um desafio ao
design inteligente. Acho que essa é uma crença bizarra em
tempos modernos, mas não
gastaria muito tempo da minha
vida combatendo especificamente um pequeno grupo de
pessoas que não acho que esteja realmente querendo ter um
debate científico.
Eu estava mais interessado,
acho, em desafiar a psicologia
evolutiva, mas acho que o livro
é um ataque forte simultâneo a
quem quer que pense que nós
somos "bem projetados", por
qualquer razão que seja, incluindo os criacionistas.
FOLHA - O livro destaca o quanto
todos nós somos vulneráveis a adotar crenças que não temos base racional para sustentar. A religião se
trata disso. O sr. acha que a evolução
pode nos ter "programado" para a
crença religiosa?
MARCUS - A evolução nos moldou de forma a que desejássemos ter explicações para as coisas. Não gostamos de informações mal explicadas. Isso é parte da razão pela qual somos
atraídos pela religião.
Acho que o fato de termos
viés de confirmação -o hábito
de acolher evidências favoráveis àquilo em que acreditamos
e de desqualificar as evidências
em contrário- nos torna inclinados a aceitar a religião com
explicação para coisas que
acontecem. Não acho que a
evolução nos tenha tornado especificamente mais vulneráveis à religião do que a outros
tipos de idéia, mas isso faz da
religião um tipo de idéia muito
sedutor para um humano.
FOLHA - Alguns sociólogos criticam
hoje o culto ao otimismo, que é uma
espécie de nova religião apregoada
por livros populares de auto-ajuda.
Seu livro, apesar de ter um traço de
auto-ajuda, não apregoa o otimismo a qualquer custo...
MARCUS - Acho que todos procuramos ter um equilíbrio entre otimismo e realismo. O custo do otimismo excessivo é o
auto-engano. E o auto-engano
pode ser perigoso. Pessoas podem usar isso para justificar
comportamentos que as põem
em enrascadas.
FOLHA - Vários livros de ciência para leigos deste ano são títulos no estilo "Por Que as Pessoas Acreditam
em Coisas Estúpidas". Todos tentam
explicar por que a mente sofre tanto
auto-engano. Atacar o cérebro é a
tendência nova na psicologia?
MARCUS - O que existe é a tendência entre muitos acadêmicos de elaborar as coisas considerando que o cérebro é perfeito. A economia, por exemplo,
parte do pressuposto de que
sempre tomamos nossas decisões racionalmente, e acho que
a literatura em psicologia não
vinha falando muito desse problema. É claro que o cérebro
também não é completamente
irracional, mas somos limitados. Fazemos algumas coisas
muito bem, outras nem tanto.
O importante é ter um panorama realista, mas é como um
pêndulo que sempre vai e volta.
Acho que, se nesses últimos
anos saíram mesmo mais livros
tratando dessas limitações humanas, é uma coisa boa.
FOLHA - Com esse tipo de conhecimento caindo nas mãos de pessoas
com más intenções, o sr. não acha
que elas podem aproveitá-los para
explorar os outros em vez de ajudá-los? Não é o caso do marketing?
MARCUS - Bom, acho que eles já
estão fazendo isso. Os publicitários já sabem intuitivamente
várias das coisas das quais falo
no livro, e os políticos também.
O ponto é que o livro pode dar
poder a cidadãos e consumidores para entenderem o que está
acontecendo com eles.
FOLHA - Vários dos experimentos
psicológicos que o sr. descreve no livro usam testes econômicos. Alguns
economistas vêem na atual crise
econômica raízes que têm a ver com
auto-engano e um otimismo desmesurado no mercado. A natureza
humana vai tornar crises como essas
sempre recorrentes?
MARCUS - Como espécie, nós
somos muito vulneráveis àquilo que chamamos de "jogos de
pareamento mental". Quando
vemos uma pessoa ganhando
dinheiro, supomos que, se fizermos a mesma coisa, vai dar
certo. As pessoas não se dão
conta de que recursos são limitados e nenhum desses planos
pode funcionar para sempre.
Aconteceu isso na crise das
empresas ponto-com e agora
está acontecendo com a crise
das hipotecas "subprime". Em
nenhuma delas as pessoas pararam para pensar que o dinheiro teria de acabar alguma
hora. Os primeiros a entrarem
no plano podem mesmo fazem
dinheiro, mas as pessoas no fim
da linha não vão conseguir,
porque os recursos se acabam.
FOLHA - Quando o sr. fala sobre
memória, dá como exemplo o fato
de que, infelizmente, a evolução
não criou em nosso cérebro um mecanismo para procurar informações
arquivadas. O sr. acha que o advento da internet e do Google, afinal,
pode mudar a maneira com que as
pessoas lidam com a memória?
MARCUS - Acho que isso já está
acontecendo. Antes as pessoas
provavelmente contariam com
sua própria memória, e hoje a
internet pode substituí-la. Mas,
na verdade, livros fazem a mesma coisa. Livros de referência,
em particular, servem como
substitutos para a memória há
séculos. Acho que há risco de
que as pessoas, se recorrerem
inteiramente a máquinas, possam perder suas habilidades
naturais. Hoje usam-se máquinas para fazer aritmética, e
acho uma pena que as crianças
de hoje não consigam fazer
aritmética como nós fazíamos.
Mas, de um modo geral, acredito, é bom usar ferramentas
externas. Essa é a mesma razão
pela qual fabricamos martelos,
carros etc.: eles nos trazem habilidades que não temos. A internet torna muito mais fácil
adquirir informação. Acho que
devemos aproveitar isso e poupar as crianças de passarem
muito tempo decorando coisas,
e ensiná-las um pouco mais sobre nossas limitações.
FOLHA - Usar pouco a memória
não poderia tornar as pessoas piores
em lidar com informação também?
MARCUS - Acho que, no pior dos
cenários, poderia, mas não estou muito preocupado. Existe
uma tendência chamada "Efeito Flynn", mostrando que em
média os índices de inteligência estão crescendo, apesar de
algumas habilidades estarem
decrescendo. As pessoas não
são tão hábeis para escrever como eram antes, mas é fato que
as crianças podem encontrar
informações mais facilmente, o
que provavelmente é uma coisa
boa. Nós podemos ensiná-las
melhor a discriminar informações boas e ruins, mas os fatos
disponíveis significam mesmo
que uma pessoa hoje tem em
média um arcabouço de informações melhor do que uma
pessoa de cem anos atrás.
FOLHA - O sr. acredita que efeitos
como o raciocínio por motivação e
viés de confirmação seja hoje uma
praga em ciência? Esse tipo de coisa
está atrapalhando a academia mais
do que antes?
MARCUS - Absolutamente.
Cientistas são pessoas, e pessoas cometem todos os tipos de
erros que eu descrevo no livro.
O único motivo pelo qual a
ciência progride é que há tantas
pessoas trabalhando na área
que idéias ruins alguma hora
acabam sendo substituídas por
idéias boas.
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