São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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+ Ciência

MEDO DE PENSAR


NOVA LEVA DE LIVROS DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL ATACA NOÇÃO DE QUE A RACIONALIDADE É JUIZ IMUNE A INFLUÊNCIAS

DA REPORTAGEM LOCAL

Você acha que pode confiar em seu próprio cérebro?"
A pergunta que Cordelia Fine lança a seus leitores no início de seu último livro já é praticamente uma tentativa de induzir uma resposta. Quem sempre se considerou um animal racional tende a reavaliar o assunto num segundo, e talvez diga a si: "Não tenho certeza."
Contudo, por que alguém começaria a escrever um livro com essa frase, senão pelo propósito de de instigar o leitor com a perspectiva de uma resposta negativa? Em "Idéias Próprias" (Difel, 2008), a psicóloga inglesa radicada na Universidade de Melbourne (Austrália) trata de como o desempenho real de nossos cérebros não corresponde mesmo àquilo que desejamos.
Listando diversos experimentos feitos à moda da psicologia cognitivo-comportamental americana, o principal mérito do livro é incutir dúvidas em quem quer que se considere imune à presunção, ao auto-engano, a preconceitos étnicos e a vícios morais de toda sorte.
A edição em português do livro de Fine sai no mesmo ano em que foram lançados "Kluge" (Gambiarra), de Gary Marcus, e "On Being Certain" (Sobre Ter Certeza), de Robert Burton. Três livros talvez sejam uma amostra pequena para apontar qualquer tendência acadêmica, mas todos são dedicados ao mesmo propósito. A ordem do dia parece ser denegrir a reputação da mente humana como o instrumento capaz de atingir conhecimentos objetivos e fazer julgamentos com alguma isenção.
Tomemos como exemplo um experimento simples e inofensivo, que fazia duas perguntas a diversos jovens universitários: "Quão feliz é sua vida?" e "Quantos encontros com garotas você teve no último ano?". Voluntários que respondiam ao questionário nessa ordem tinham muito mais probabilidade de se declarar felizes do que os outros.
Certamente, a ordem das questões não alterou a realidade anterior ao teste nem a pontuação que cada voluntário atribuía à qualidade de sua vida sexual. Mas a mera menção ao assunto já fazia com que o tema fosse considerado com maior peso na hora de refletir sobre felicidade em termos genéricos.
Talvez seja mais perturbador, porém, saber que somos facilmente manipuláveis, mesmo quando estão em jogo decisões mais importantes.
Num clássico experimento realizado na Universidade de Yale, nos EUA, um grupo de estudantes foi recrutado como auxiliar de um teste à moda velho behaviorismo, mas que aplicava choques em humanos em vez de camundongos. Uma mulher sentava-se em uma cadeira com eletrodos, que eram acionados cada vez que ela errava respostas às perguntas de um questionário oral.
Os estudantes eram solicitados pelos cientistas a aumentar a voltagem do choque gradualmente, e 90% deles continuou obedecendo o pedido mesmo após a pobre voluntária começar a ter espasmos de dor. Durante o teste, só não foi revelado aos estudantes que na verdade eles é que eram as cobaias. A mulher era uma atriz fingindo levar choques.
O experimento, afinal, confirmou a hipótese de, em respeito à autoridade intelectual dos cientistas, os jovens estariam dispostos a violar a própria convicção moral que haviam declarado: a de que é errado agredir pessoas em qualquer circunstância.
Fine, que também trabalha com experimentos desse tipo, reconhece que eles costumam ensinar uma segunda lição a todos: "jamais acredite em um psicólogo social".

Viés de confirmação
Tanto Marcus quanto Burton e Fine são honestos em reconhecer, além disso, que a própria ciência é com freqüência vítima dos truques que a mente prega naqueles que crêem em uma capacidade racional humana independente de emoções e influências externas -incluindo preconceitos- para emitir julgamentos.
Aparentemente, somos influenciáveis até mesmo pelo racismo alheio. Num experimento recente, voluntários tinham de reagir num segundo a uma foto e dizer se um homem com a mão perto do bolso era ou não um bandido sacando uma arma.
Imagens de negros tinham maior probabilidade de ser injustamente acusadas, mesmo nas fotos em que o homem aparecia segurando um telefone celular. Mais estranho parece ter sido o fato de que os próprios voluntários negros que observavam as imagens apresentaram o mesmo viés negativo, apenas em grau menor.
Não reconhecemos porém, nossas fraquezas e preconceitos, como mostra um fenômeno que Marcus chama de "viés de confirmação". Este é o nome dado à tendência de aceitar, sem questionamento, qualquer argumento favorável a teorias que corroborem nossas opiniões. Evidências contrárias porém, são cuidadosamente esquadrinhadas, até que se encontre uma falha metodológica qualquer.
Obstetras americanos, por exemplo, levaram 25 anos para abrir mão do exame de raio-X em grávidas, a partir da data do primeiro estudo que apontava risco de tumores para fetos, na década de 1970. Só quando as evidências formavam uma pilha enorme de estudos é que as diretrizes clínicas foram alteradas nos EUA.
Se uma jovem psicóloga experimental aparece com uma teoria mostrando que o cérebro "fecha os olhos para aquilo que não quer ver", alguém pode se lembrar, talvez não sem razão, de um velho psicanalista: o mais velho entre todos.
"Freud sugeriu que o ego "rejeita o conceito inaceitável'", reconhece Fine, graduada em em 1995 na Universidade de Oxford, onde o pensamento do pai da psicanálise já tinha sido praticamente banido. "Corria o boato de que, nas prateleiras da biblioteca, os empoeirados volumes de suas obras completas estavam ligados a um gerador. Qualquer pessoa que os tocasse receberia um esclarecedor choque elétrico -esta tão popular ferramenta educacional dos psicólogos experimentais."
O reconhecimento de Fine ao papel do inconsciente não parece ser, porém, sinal de que Freud reconquistou respeito em terras anglo-saxãs. "Inveja do pênis? Fala sério!", exclama. Nem ela nem Marcus ou Burton discutem se relatos anedóticos dos divãs e os experimentos com choques podem um dia convergir.
Todos reconhecem, porém, que psicólogos experimentais não são imunes ao viés de confirmação. "Parte do pacote de vaidades e fraquezas do cérebro humano é que secretamente duvidamos que sejamos vulneráveis a essas vaidades e fraquezas", diz Fine. (RAFAEL GARCIA)


IDÉIAS PRÓPRIAS
Cordelia Fine; Difel. R$ 39,00. 272 págs.

KLUGE
Gary Marcus; Houghton Mifflin. US$ 24,00. 224 págs.

ON BEING CERTAIN
Robert Burton; St. Martin's Press. R$ 25,00. 272 págs.



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