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O falso Vermeer
Livro sobre artista que plagiou quadros do pintor holandês põe em xeque a idéia de autoria
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
O livro "Eu Fui Vermeer", do jornalista Frank Wynne
(Companhia das
Letras, 2008),
conta a história de Han van
Meegeren, um extraordinário
falsário que imitava pintores
do século 17, particularmente
Johannes Vermeer.
Em 1945, Van Meegeren foi
acusado de ter colaborado com
os alemães, pois vendera um
Vermeer ao marechal Göring;
teria assim alienado uma jóia
do patrimônio nacional.
Para se safar dessa acusação
confessou ter fabricado o quadro, assim como outros tantos
de pintores da época.
De acusado, passou a herói,
cuja façanha foi ter enganado
um dos colaboradores mais
próximos de Hitler. Não teve
tempo de cumprir a leve pena
que lhe foi imposta, pois o ilustre vigarista, beberrão e mulherengo, logo morreu de um fulminante infarto.
O livro despertou uma velha
paixão. Vermeer é um de meus
pintores preferidos. Há mais
de 50 anos percorro os museus
em busca de seus quadros -são
apenas 35 aqueles cuja autoria
está definitivamente assentada-, e sou obrigado a confessar
que meu mouse percorre detalhes da "Vista de Delft". Mas
essa história da falsificação levanta problemas estéticos de
enorme interesse.
Onde está a linha separando
um quadro autêntico de uma
imitação que engana quase todo mundo?
Vermeer, em particular, estimula a falsificação. O século 18
o ignorou e somente a partir da
segunda metade do século 19 é
que voltou a ser reconhecido.
Sua obra precisou então ser reconstruída, separada de outros
trabalhos que compartilhavam
da mesma atmosfera e de gramáticas semelhantes.
Uma coisa é o personagem
Johannes Vermeer (ou Van der
Meer), outra é sua obra. Onde
reside, porém, o limite entre o
quadro autêntico e o quadro
tomado como tal?
O falsário Van Meegeren foi
de uma astúcia insuperável.
Sabendo que os historiadores da arte haviam detectado
um vácuo na carreira de Vermeer, entre o primeiro período, aquele que ainda está sob a
longínqua influência de Caravaggio, e o último, quando toda
sua obra se articula sob um
mesmo projeto de transformação da luz, pintou um quadro
que taparia essa lacuna.
Tomou um tema tradicional
da época, os peregrinos de
Emaús, aquela passagem da Bíblia em que Cristo, depois de
morto, volta a conviver com os
discípulos até o momento em
que eles o reconhecem. Não fez
uma colagem de figuras conhecidas, apenas uma ou outra alusão a elas, e construiu um quadro cuja forma e cuja técnica
poderiam ter sido desenvolvidas por Vermeer.
Os críticos adoraram, a peça
confirmava suas teorias e o
quadro se tornou uma das jóias
do museu Boijmans. Formaram-se filas para contemplar a
última descoberta do tesouro
nacional.
Idéia romântica
Do ponto de vista do quadro
e de toda a obra do pintor, no
que importa que Emaús tenha
sido pintado por outro personagem?
Por certo a autenticidade interessa aos compradores que
por ela se orientam quando formam seus preços. Mas o mercado atual ainda está ligado a
uma idéia romântica do produtor de arte, que seria um gênio
insubstituível, fabricando peças únicas que ninguém poderia imitar na perfeição.
Em contrapartida, na Roma
Antiga, as cópias dos grandes
escultores gregos circulavam
de mão em mão a preços astronômicos, disputadas pelos senadores romanos que com elas
queriam adornar suas vilas. E
mesmo Rodin assinava obras
que provinham de seus maiores discípulos.
Pertence à coleção do Masp
um lindo retrato do jovem
Rembrandt cuja autenticidade
não foi reconhecida pelos críticos responsáveis pelo catálogo
definitivo da obra desse pintor.
Sempre o admirei como um
auto-retrato. Se de fato não é
um trabalho maior, nele reconheço a mesma gramática que
estrutura outras obras de Rembrandt. E aqui está o ponto nevrálgico da questão. O que define a obra de um artista não é a
mão que a pintou, mas a forma
pela qual ela estrutura suas
partes, seus momentos, conferindo-lhe múltiplos sentidos.
Forma que vai configurar outros trabalhos do pintor e de
seus próximos discípulos. Uma
grande obra é momento de
uma linhagem.
Esse princípio foi desenvolvido nas grandes exposições,
nas bienais e na Documenta. O
curador se colocou como o artista, fez da exposição sua obra.
Mas com isso abriu o espaço
para que produzisse uma falsa
exposição. O que vemos hoje no
parque Ibirapuera não é uma
falsa Bienal?
Ora, tenho insistido que é
neste jogo do belo e do feio, do
bom e do mau trabalho, que se
arma uma gramática, forma de
conferir sentido ao que lemos
numa obra.
No entanto essa gramática é
aberta, não se fecha sobre si
mesma, mas constitui uma racionalidade parcial que incentiva o dizer. Não é à toa que, ao
vermos um grande quadro, temos vontade de puxar o espectador ao lado e fazer com que
ele também veja as simpatias
entre os pormenores que estamos a descobrir.
E, mesmo quando nos fechamos em nossa solidão, conversamos conosco para que o visto
assuma um modo de objetividade que vá além do dado meramente percebido.
Desse ponto de vista, a fala do
espectador faz parte da contemplação do belo, configura a
passagem do percebido à reflexão estética que ajuda a obra a
se tornar realidade intersubjetiva. Esse dizer, por certo, se diversifica e até mesmo se contradiz. Uns elogiam o quadro,
outros o desprezam, mas todos
passam a falar dele de tal modo
que ele se torna válido.
Sabemos que os museus estão cheios de peças cuja autenticidade é duvidosa, assinadas
por falsas assinaturas. Mas a
falsidade do falsário não afeta o
jogo do qual passamos a participar, tão logo aprendemos a visitar museus e galerias, a viver
no seio da arte, a julgar o belo e
o feito, a diferenciar o grande
trabalho do medíocre.
Mas, se nada assegura que
minha avaliação seja a mesma
de meu vizinho, mesmo que a
contradiga, ambos passamos a
participar de uma mesma forma de vida.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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