São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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O falso Vermeer

Livro sobre artista que plagiou quadros do pintor holandês põe em xeque a idéia de autoria

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

O livro "Eu Fui Vermeer", do jornalista Frank Wynne (Companhia das Letras, 2008), conta a história de Han van Meegeren, um extraordinário falsário que imitava pintores do século 17, particularmente Johannes Vermeer.
Em 1945, Van Meegeren foi acusado de ter colaborado com os alemães, pois vendera um Vermeer ao marechal Göring; teria assim alienado uma jóia do patrimônio nacional.
Para se safar dessa acusação confessou ter fabricado o quadro, assim como outros tantos de pintores da época.
De acusado, passou a herói, cuja façanha foi ter enganado um dos colaboradores mais próximos de Hitler. Não teve tempo de cumprir a leve pena que lhe foi imposta, pois o ilustre vigarista, beberrão e mulherengo, logo morreu de um fulminante infarto.
O livro despertou uma velha paixão. Vermeer é um de meus pintores preferidos. Há mais de 50 anos percorro os museus em busca de seus quadros -são apenas 35 aqueles cuja autoria está definitivamente assentada-, e sou obrigado a confessar que meu mouse percorre detalhes da "Vista de Delft". Mas essa história da falsificação levanta problemas estéticos de enorme interesse.
Onde está a linha separando um quadro autêntico de uma imitação que engana quase todo mundo?
Vermeer, em particular, estimula a falsificação. O século 18 o ignorou e somente a partir da segunda metade do século 19 é que voltou a ser reconhecido.
Sua obra precisou então ser reconstruída, separada de outros trabalhos que compartilhavam da mesma atmosfera e de gramáticas semelhantes.
Uma coisa é o personagem Johannes Vermeer (ou Van der Meer), outra é sua obra. Onde reside, porém, o limite entre o quadro autêntico e o quadro tomado como tal?
O falsário Van Meegeren foi de uma astúcia insuperável.
Sabendo que os historiadores da arte haviam detectado um vácuo na carreira de Vermeer, entre o primeiro período, aquele que ainda está sob a longínqua influência de Caravaggio, e o último, quando toda sua obra se articula sob um mesmo projeto de transformação da luz, pintou um quadro que taparia essa lacuna.
Tomou um tema tradicional da época, os peregrinos de Emaús, aquela passagem da Bíblia em que Cristo, depois de morto, volta a conviver com os discípulos até o momento em que eles o reconhecem. Não fez uma colagem de figuras conhecidas, apenas uma ou outra alusão a elas, e construiu um quadro cuja forma e cuja técnica poderiam ter sido desenvolvidas por Vermeer.
Os críticos adoraram, a peça confirmava suas teorias e o quadro se tornou uma das jóias do museu Boijmans. Formaram-se filas para contemplar a última descoberta do tesouro nacional.

Idéia romântica
Do ponto de vista do quadro e de toda a obra do pintor, no que importa que Emaús tenha sido pintado por outro personagem?
Por certo a autenticidade interessa aos compradores que por ela se orientam quando formam seus preços. Mas o mercado atual ainda está ligado a uma idéia romântica do produtor de arte, que seria um gênio insubstituível, fabricando peças únicas que ninguém poderia imitar na perfeição.
Em contrapartida, na Roma Antiga, as cópias dos grandes escultores gregos circulavam de mão em mão a preços astronômicos, disputadas pelos senadores romanos que com elas queriam adornar suas vilas. E mesmo Rodin assinava obras que provinham de seus maiores discípulos.
Pertence à coleção do Masp um lindo retrato do jovem Rembrandt cuja autenticidade não foi reconhecida pelos críticos responsáveis pelo catálogo definitivo da obra desse pintor.
Sempre o admirei como um auto-retrato. Se de fato não é um trabalho maior, nele reconheço a mesma gramática que estrutura outras obras de Rembrandt. E aqui está o ponto nevrálgico da questão. O que define a obra de um artista não é a mão que a pintou, mas a forma pela qual ela estrutura suas partes, seus momentos, conferindo-lhe múltiplos sentidos.
Forma que vai configurar outros trabalhos do pintor e de seus próximos discípulos. Uma grande obra é momento de uma linhagem.
Esse princípio foi desenvolvido nas grandes exposições, nas bienais e na Documenta. O curador se colocou como o artista, fez da exposição sua obra. Mas com isso abriu o espaço para que produzisse uma falsa exposição. O que vemos hoje no parque Ibirapuera não é uma falsa Bienal?
Ora, tenho insistido que é neste jogo do belo e do feio, do bom e do mau trabalho, que se arma uma gramática, forma de conferir sentido ao que lemos numa obra.
No entanto essa gramática é aberta, não se fecha sobre si mesma, mas constitui uma racionalidade parcial que incentiva o dizer. Não é à toa que, ao vermos um grande quadro, temos vontade de puxar o espectador ao lado e fazer com que ele também veja as simpatias entre os pormenores que estamos a descobrir. E, mesmo quando nos fechamos em nossa solidão, conversamos conosco para que o visto assuma um modo de objetividade que vá além do dado meramente percebido. Desse ponto de vista, a fala do espectador faz parte da contemplação do belo, configura a passagem do percebido à reflexão estética que ajuda a obra a se tornar realidade intersubjetiva. Esse dizer, por certo, se diversifica e até mesmo se contradiz. Uns elogiam o quadro, outros o desprezam, mas todos passam a falar dele de tal modo que ele se torna válido.
Sabemos que os museus estão cheios de peças cuja autenticidade é duvidosa, assinadas por falsas assinaturas. Mas a falsidade do falsário não afeta o jogo do qual passamos a participar, tão logo aprendemos a visitar museus e galerias, a viver no seio da arte, a julgar o belo e o feito, a diferenciar o grande trabalho do medíocre.
Mas, se nada assegura que minha avaliação seja a mesma de meu vizinho, mesmo que a contradiga, ambos passamos a participar de uma mesma forma de vida.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .



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