São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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+Arte

O homem sem lugar

Um dos mais aclamados nomes da atualidade, o anglo-indiano Anish Kapoor fala de busca de identidade, narcisismo e do mercado de arte


"Todos sabemos o que é a escuridão; nós a carregamos dentro de nós"

CHRISTINA PATTERSON

O tamanho importa para o artista indiano-britânico Anish Kapoor, seja nas famosas esculturas gigantes ou nos pequenos modelos arquitetônicos de sua exposição apresentada recentemente em Londres. Anish Kapoor é extremamente interessado por vaginas. Em sua última exposição, elas estão por toda parte. Aqui há uma rachadura, ali uma garganta, mais além um abismo, que nos mergulham no vazio. Esse é claramente um homem que leu Freud. Mas tudo o que desce tem de subir, e ele também é muito interessado em estruturas gigantescas.

Edifício do avesso
"Taratantara", seu "edifício virado do avesso" projetado para o Moinho de Farinha Baltic, em Gateshead, tinha 35 metros de altura. "Marsyas", seu maciço fone de ouvido de PVC, encheu o "Salão da Turbina" da Tate Modern.
"Temenos", uma instalação no vale de Tees, com quase 50 metros de altura, fará parte da maior iniciativa de arte pública do mundo. Quem disse que tamanho não importa? A exposição é pequena, na verdade. É como uma diminuta versão, em lego, do mundo de Anish, em que espelhos gigantes ocupam praças, refletindo arranha-céus e céus, ou praias, refletindo as ondas que se quebram, e em que estruturas maciças em encostas de montanhas fazem sombra a pequenos caminhos que o atraem para o útero escuro lá dentro.
E aqui está Anish, no País das Maravilhas. Bem, sim, no Instituto Real dos Arquitetos Britânicos, dando os últimos retoques em sua exposição, "Place/ No Place - Anish Kapoor in Architecture" [Lugar/Não-Lugar - Anish Kapoor na Arquitetura], uma série de maquetes arquitetônicas que pela primeira vez reúne suas colaborações com arquitetos e engenheiros. Este é um homem cuja jujuba gigante no Millennium Park em Chicago custou US$ 25 milhões. Ele representou o Reino Unido na Bienal de Veneza, ganhou o Prêmio Turner, tem obras no Museu de Arte Moderna de Nova York, na Tate Modern e no Guggenheim, em Bilbao, e em coleções particulares no mundo inteiro, mas ainda quer mais.
Mais montanhas, mais praças. Estruturas mais altas, rachaduras profundas. Então, eu pergunto à figura genial, de camisa azul bordada: o que é isso?
Por um momento, Kapoor parece tímido. "Eu quero ocupar o território!", ele diz, e então sorri. Eu descubro que Anish Kapoor sorri muito.
"Bem", ele continua, "uma das ferramentas da escultura é a escala, e escala é uma coisa muito difícil de quantificar. Não se trata de tamanho. Eu acho que tem algo a ver com a relação entre tamanho e significado. Muitas destas", diz, indicando a sala ao redor, "lidam com a idéia de que há uma ausência. É uma ficção, a ficção de que é possível ter um vazio em uma montanha, que é a maior coisa na montanha. As forças da escultura são as mesmas que as forças da natureza. Existem conceitos dessa ordem".

Sexo e morte
Conceitos. Sim. Bem, e os poetas metafísicos? As bússolas de John Donne, por exemplo, ou "Easter Wings" [Asas de Páscoa], de George Herbert?
"É nisso", ele diz, parecendo entusiasmado, "que eu estou profundamente interessado. É um dos princípios condutores. Meu grande favorito é [o poeta alemão Rainer Maria] Rilke, claro. Essa sensação do poema sendo montado como objeto de palavras se relaciona à escultura de maneira fundamental. A escultura também tem essa capacidade de ser o que não é. É mais ou menos sobre o ilusório e o real".
Eu não estive sob a maciça superfície espelhada de seu "Cloud Gate" no Millennium Park em Chicago, mas admirei o interior brilhante de seu gigante "Ishi's Light" em forma de ovo na Tate Modern e me vi refletida, alongada como um Giacometti, com minha cabeça multiplicada e virada ao contrário, os olhos aumentados como os buracos de uma caveira.
Sexo e morte, é claro, mas também ilusão. O artista como mágico. O artista como Deus. O que nos leva, talvez, de volta a Freud. Se todos esses abismos, vazios e úteros são sobre uma escuridão que remonta, como diz Kapoor, "a Dante e aos gregos", eles também seriam inconcebíveis sem Freud.
"Vivemos em uma era pós-freudiana", ele diz simplesmente, "e eu acredito nisso". E certamente tem razão em acreditar. Enquanto era estudante de arte no Hornsey College of Art, teve um colapso e passou a fazer psicanálise três vezes por semana, durante 15 anos.
"Eu não teria sobrevivido sem ela", diz. "Eu poderia ter um sorriso no rosto hoje, mas na realidade certamente não teria razão nenhuma para sorrir. Eu tomava Valium e de repente percebi que estava tremendamente viciado nisso. Levei três ou quatro daqueles 15 anos para largá-lo. Mas, quando terminou, eu soube que tinha terminado absolutamente, para sempre."
E um certo tipo de narcisismo faz parte do negócio? "Totalmente! Sim, fazer obras é sempre um desafio. É a solução de um problema, um problema que no mundo real não precisa ser resolvido. Mas a elaboração da solução desse problema é uma das coisas mais excitantes que podemos fazer."
Para tanto, ele levanta às 5h30 toda manhã, medita durante uma hora (é um budista praticante) e vai para seu estúdio em Camberwell às 8h. "Eu uso a mesma roupa todos os dias", diz. "Como a mesma coisa no almoço. Acho muito difícil variar minha rotina."
Chega em casa às 18h30 ou 19h e, desde que teve filhos, não trabalha mais nos finais de semana. Menos obsessivo do que costumava ser, talvez, mas ainda claramente muito focado. "Desde o início do processo de análise", explica, "e durante todo ele, tomei consciência do fato de que eu achava que, se não fizesse meu trabalho, eu não existiria. Mas me lembro de um momento, um momento repentino, quando comecei a sentir que o trabalho era trabalho e eu era eu. De certa forma, foi como se eu tivesse me reconstruído".
E, como deve ser quando a neurose (segundo a definição de Freud) é transformada em tristeza comum, as coisas mudaram. Kapoor saiu de uma relação "problemática", conheceu sua mulher, Susanna, uma crítica de arte, conseguiu um estúdio maior e alguns assistentes e descobriu que podia trabalhar em sete ou oito esculturas ao mesmo tempo.
O trabalho decolou, conseguiu a aclamação da crítica e passou a vender suas obras. Muito oportuno, na verdade, mas e se ele tivesse de escolher entre os dois?
Kapoor retorce as mãos. "Essa é difícil, hein? À medida que envelheço, acho que conseguir fazer as coisas parece mais importante. Quando eu era jovem, estava claro que nunca seria capaz de ganhar a vida. Eu nunca ousei me chamar de artista. Hoje é muito diferente. Você mal sai da escola de arte e é um artista. Você tem a carreira do mercado, no mínimo."
E, assim, onde fica o mundo da arte? "Em um lugar muito, muito problemático", suspira. "Há muito tempo sou da opinião de que o mundo da arte precisa de um sacolejão para nos levar de volta ao que é real. Não estamos nesse negócio para vender produtos de luxo."

Produto de luxo
Mas Anish Kapoor não é um produto de luxo? As mãos se abrem e o corpo treme de riso. "É, é! Vale um monte de dinheiro. Acho que devemos ver essas coisas da maneira o mais positiva possível. Mas há uma boa parte do meu trabalho que não está no mercado, por isso acho que talvez seja um alívio." Então, o sucesso maciço, a aclamação mundial, um casamento feliz, filhos maravilhosos. Quanto, me pergunto, é escuridão e quanto é luz? "Sim", diz Kapoor. "É uma coisa que muitas vezes me pergunto."
"Existe uma linda imagem no livro do escritor turco Orhan Pamuk "Meu Nome É Vermelho" [Cia. das Letras], de dois amantes juntos. Ela está ao lado dele, mas ele morre sozinho, e não podemos fazer nada além de morrer sozinhos. Essa escuridão não vai embora, não para todo mundo." Para Kapoor, essa escuridão é central em toda a sua obra, não apenas em termos de vazio, mas na vertigem que seu trabalho muitas vezes induz e naquele sentido romântico de estar no limite. "Todos sabemos o que é a escuridão", ele diz. "Nós a carregamos dentro de nós, mesmo que seja de maneiras diferentes, essa sensação de chegar à borda e cair. É por isso que Apollinaire [poeta francês] funciona."
No entanto, se ele bebe na tradição romântica, também herdou uma tradição cultural que é consideravelmente mais complexa. Embora viva no Reino Unido desde 1972, nasceu em Mumbai, de pai indiano e mãe iraquiana judia.
No passado, falou que o cheiro da Índia seria o cheiro de casa. Ainda tem fantasias de voltar? "Sim, sim, mas, não...", diz e ri de novo. "Eu vou lá e as pessoas dizem "ah, você é inglês". É preciso aceitar isso."
Se pressionado, admite certas influências orientais. "Eu resisti ao longo dos anos", diz. "Não quero ser chamado de artista indiano; mas sempre fui muito interessado por certas maneiras indianas de ver o mundo."
E o lado judeu? Ele resmunga. "Bem, eu não deveria falar sobre isso. Mas no judaísmo a palavra para lugar e a palavra para Deus são a mesma. Muitos de meus trabalhos se relacionam a essa idéia de lugar -ou de não-lugar. Esta exposição se chama "Lugar/Não-Lugar"." Lugar, não-lugar. Aqui, não-aqui. Establishment, não-establishment.
A verdade é que Anish Kapoor, criador de obras de grandes dimensões e força (e preço) transcendente, produtor (como se percebe depois de uma viagem até seu gigantesco ateliê em Camberwell) de literalmente milhares de tigelas e espelhos polidos gigantes que parecem sugá-lo para dentro e cuspi-lo, criador de cenários extraordinários para ópera e dança (como em "in-i", o empreendimento conjunto com Juliette Binoche apresentado no National Theatre) e planejador de esquemas além dos sonhos mais loucos, ainda se sente claramente um forasteiro.
"Sei que não deveria dizer isto, mas vou dizer. Nesta manhã, minha linda filha disse que está fazendo um filme para a escola e eu disse a ela: "Ah, você é a "darkie" simbólica". Ela entendeu da pior maneira possível. Nada a ver com ela", diz Kapoor com um meio sorriso, meio careta. "Tudo a ver comigo."


A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .



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