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Sai no Brasil a biografia clássica de
Peter Brown, "Santo Agostinho", que aborda
uma das figuras centrais do cristianismo
A vida íntima da fé
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Escrever a biografia de um escritor, seja ele romancista ou
filósofo, não é nada fácil. Poderá o biógrafo escrever algo
que se compare ao que o biografado
redigiu? Pior ainda é biografar o autor de uma autobiografia: pode uma
biografia ser melhor que o relato de
si próprio? E ainda pior é quando o
biografado foi autor da primeira autobiografia importante que houve.
Falo das "Confissões", de santo
Agostinho, biografado em 1967 por
Peter Brown, em "Santo Agostinho
-Uma Biografia", livro agora traduzido para o português.
Confesso: esperava mais. É verdade que, para um livro escrito quando
Brown tinha 32 anos, suas qualidades são espantosas. Além disso,
Brown publicou outras obras importantes. Mas o que esperar de uma
biografia de alguém já autobiógrafo?
Respondo: que explique bem o
contexto de sua vida. Como Agostinho foi maniqueísta, que dedique
dez boas páginas a dizer quem foi
Mani, quem eram os maniqueus,
suas teses, seu impacto. Como Agostinho nasceu e morreu no norte da
África, que explicasse essa sociedade; que contasse o que restava, no
cristianismo ainda não totalmente
vitorioso do século 4º, de ideais romanos como a vida ativa, a vida contemplativa e outros.
Infelizmente, disso Brown fala
pouco. Lança indicações que não
chegam a desenhar um panorama. E
nos lega notas apenas curiosas, como ao contar o encontro de Agostinho com um teólogo que refutara
156 heresias, das quais nada ficamos
sabendo.
No entanto o livro deslancha de
maneira admirável quando Brown
trata das "Confissões". Não é para
menos. Já não aceitamos o recorte
simplificador que cinde paganismo
e cristianismo; sabemos que muito
do que o cristianismo trouxe de novo fora esboçado por versões alternativas internas ao paganismo, como o estoicismo. Paul Veyne nos ensinou isso e também o grupo inglês
Monty Python (ver, no filme "A Vida de Brian", Jesus como profeta que
deu certo quando a Judéia pululava
de seitas alternativas disputando o
futuro do judaísmo).
Mas, mesmo assim, o cristianismo
-e sobretudo Agostinho- fez
triunfar um novo destaque da vida
íntima. Antonio Gramsci [1891-1937] disse que, a exemplo da expressão "marxismo-leninismo", que
indica que só com a ação de Lênin a
obra de Marx se completa (acrescentaríamos: de um certo modo), deveríamos falar em "cristianismo-paulismo". Foi são Paulo quem transformou o cristianismo, pelo aporte
grego e romano.
Com efeito, os interditos alimentares dos judeus confinavam Cristo no
mundo judaico.
Quando Paulo tornou o que era
central no judaísmo algo inessencial,
que poderia ou não ser observado, o
cristianismo se converteu talvez na
primeira religião universal, aberta a
qualquer um, independentemente
de sua origem racial, de sua cultura
ou de seus costumes.
Paixões humanas
O outro passo decisivo é o de
Agostinho. Não haveria psique sem
ele. Uma base decisiva para o que
hoje chamamos de psicologia vem
da "Retórica", de Aristóteles. Para
saber como persuadimos o outro,
devemos conhecer as paixões humanas. Na esteira do filósofo grego,
muitos estudaram as paixões. Mas a
transformação de todo esse mundo
afetivo em vida íntima é obra cristã
e, sobretudo, de santo Agostinho e
das "Confissões".
Isso Brown valoriza muito bem
por essa razão; afirmei que seu livro
deslancha a partir do exame desse livro absolutamente novo, "Confissões", o que se faz no capítulo "O Futuro Perdido". Antes, Agostinho fora maniqueísta, acreditando que
bem e mal seriam duas entidades em
guerra; sua mudança para o cristianismo não significa apenas que o
mal deixa de ter densidade ontológica (o que ele explicará em seu magnífico livrinho "Da Natureza do
Bem"), mas que se passa a ter um
senso agudo da queda do homem,
do pecado original.
É essa a chave para a interiorização. O "costume adquirido", o hábito ou consueto tornam difícil praticar o bem. Podemos enxergar o
bem, mas nossa vontade se acostumou a tender na outra direção. Ou,
nas palavras de Brown: "Já não era
possível falar do corpo humano como o único túmulo da alma; Agostinho viu-se forçado a considerar a
maneira misteriosa pela qual podia
criar seu próprio túmulo em sua memória". Não é o corpo, visto como
algo externo, que poderíamos renegar, o culpado quando praticamos o
mal. Nossa experiência nos programa para continuarmos afastados do
bem. É essa convicção angustiada
que explica a seriíssima peregrinação que o futuro santo empreende
no interior de si mesmo, jamais se
poupando.
Exagero ao dizer que a psicologia
nasce dessa consciência quase lancinante de uma intimidade marcada
pelo pecado original? Uma psicologia que venha da "Retórica" de Aristóteles enxerga as paixões de fora para dentro; seu discípulo Teofrasto,
em "Os Caracteres", até as colocará
numa lista. No século 17, ao escrever
"Os Novos Caracteres", La Bruyère
manterá a tradição da lista, da crítica
externa, da censura aos costumes
depravados.
Tudo isso é uma cena, um teatro
que serve, por sinal, para a compreensão da vida pública como uma
vida que se encena, que se publica.
Mas uma psicologia que se inspire
nas "Confissões" trabalha com um
sujeito que, nascendo da culpa, enceta um trajeto: as paixões não são
mais um elenco, elas vivem, sobrevivem, morrem, matam.
O santo da psique
Não é casual que, passados quase
14 séculos, Rousseau dê a um de seus
principais livros o mesmo nome de
"Confissões" -embora o termo
mudasse de sentido nesse intervalo,
porque para o santo "confessio" significava "acusação a si próprio e louvor a Deus", o que já não vale para
Rousseau.
Não é fortuito tampouco que tão
pouco da filosofia siga por aí: se há
disciplina pouco confessional ou em
que a confissão escandaliza, é a filosofia. Na cultura ocidental, a confissão fica na literatura, parente próxima, curiosamente, da ficção -talvez porque ambas valorizem o indivíduo, a pessoa, na sua rota quase
trágica.
Seria desejável discutir ainda, nesta resenha, o que Arquillière popularizou sob o nome de "agostinismo
político", isto é, a visão da política
que a partir da "Cidade de Deus", a
outra obra magna do santo, marca
quase mil anos da experiência ocidental. Mas, desde que santo Tomás
de Aquino propôs uma alternativa
política de lavra aristotélica e de sucesso moderno, no século 13, a vertente agostiniana para o poder cristão perdeu seu peso.
O santo Agostinho que ainda vive,
embora desconhecido da maior parte, não é tanto o da política. É o da
psique. E será por acaso que o grande pensador da psicologia em nosso
tempo, Freud, também tenha lidado
com a culpa, também tenha provindo do universo em que o pecado original é agudo? Há identidade, sem
esse alto custo que o mundo pós-pagão paga?
Renato Janine Ribeiro é professor de ética
e filosofia política da USP, autor de "O Afeto
Autoritário - Televisão, Ética e Democracia"
(Ateliê) e "Ao Leitor Sem Medo (UFMG).
Santo Agostinho
672 págs., R$ 69,90
de Peter Brown. Trad. Vera Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio
de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).
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