São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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Sai no Brasil a biografia clássica de Peter Brown, "Santo Agostinho", que aborda uma das figuras centrais do cristianismo

A vida íntima da fé

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrever a biografia de um escritor, seja ele romancista ou filósofo, não é nada fácil. Poderá o biógrafo escrever algo que se compare ao que o biografado redigiu? Pior ainda é biografar o autor de uma autobiografia: pode uma biografia ser melhor que o relato de si próprio? E ainda pior é quando o biografado foi autor da primeira autobiografia importante que houve. Falo das "Confissões", de santo Agostinho, biografado em 1967 por Peter Brown, em "Santo Agostinho -Uma Biografia", livro agora traduzido para o português.
Confesso: esperava mais. É verdade que, para um livro escrito quando Brown tinha 32 anos, suas qualidades são espantosas. Além disso, Brown publicou outras obras importantes. Mas o que esperar de uma biografia de alguém já autobiógrafo?
Respondo: que explique bem o contexto de sua vida. Como Agostinho foi maniqueísta, que dedique dez boas páginas a dizer quem foi Mani, quem eram os maniqueus, suas teses, seu impacto. Como Agostinho nasceu e morreu no norte da África, que explicasse essa sociedade; que contasse o que restava, no cristianismo ainda não totalmente vitorioso do século 4º, de ideais romanos como a vida ativa, a vida contemplativa e outros.
Infelizmente, disso Brown fala pouco. Lança indicações que não chegam a desenhar um panorama. E nos lega notas apenas curiosas, como ao contar o encontro de Agostinho com um teólogo que refutara 156 heresias, das quais nada ficamos sabendo.
No entanto o livro deslancha de maneira admirável quando Brown trata das "Confissões". Não é para menos. Já não aceitamos o recorte simplificador que cinde paganismo e cristianismo; sabemos que muito do que o cristianismo trouxe de novo fora esboçado por versões alternativas internas ao paganismo, como o estoicismo. Paul Veyne nos ensinou isso e também o grupo inglês Monty Python (ver, no filme "A Vida de Brian", Jesus como profeta que deu certo quando a Judéia pululava de seitas alternativas disputando o futuro do judaísmo).
Mas, mesmo assim, o cristianismo -e sobretudo Agostinho- fez triunfar um novo destaque da vida íntima. Antonio Gramsci [1891-1937] disse que, a exemplo da expressão "marxismo-leninismo", que indica que só com a ação de Lênin a obra de Marx se completa (acrescentaríamos: de um certo modo), deveríamos falar em "cristianismo-paulismo". Foi são Paulo quem transformou o cristianismo, pelo aporte grego e romano.
Com efeito, os interditos alimentares dos judeus confinavam Cristo no mundo judaico.
Quando Paulo tornou o que era central no judaísmo algo inessencial, que poderia ou não ser observado, o cristianismo se converteu talvez na primeira religião universal, aberta a qualquer um, independentemente de sua origem racial, de sua cultura ou de seus costumes.

Paixões humanas
O outro passo decisivo é o de Agostinho. Não haveria psique sem ele. Uma base decisiva para o que hoje chamamos de psicologia vem da "Retórica", de Aristóteles. Para saber como persuadimos o outro, devemos conhecer as paixões humanas. Na esteira do filósofo grego, muitos estudaram as paixões. Mas a transformação de todo esse mundo afetivo em vida íntima é obra cristã e, sobretudo, de santo Agostinho e das "Confissões".
Isso Brown valoriza muito bem por essa razão; afirmei que seu livro deslancha a partir do exame desse livro absolutamente novo, "Confissões", o que se faz no capítulo "O Futuro Perdido". Antes, Agostinho fora maniqueísta, acreditando que bem e mal seriam duas entidades em guerra; sua mudança para o cristianismo não significa apenas que o mal deixa de ter densidade ontológica (o que ele explicará em seu magnífico livrinho "Da Natureza do Bem"), mas que se passa a ter um senso agudo da queda do homem, do pecado original.
É essa a chave para a interiorização. O "costume adquirido", o hábito ou consueto tornam difícil praticar o bem. Podemos enxergar o bem, mas nossa vontade se acostumou a tender na outra direção. Ou, nas palavras de Brown: "Já não era possível falar do corpo humano como o único túmulo da alma; Agostinho viu-se forçado a considerar a maneira misteriosa pela qual podia criar seu próprio túmulo em sua memória". Não é o corpo, visto como algo externo, que poderíamos renegar, o culpado quando praticamos o mal. Nossa experiência nos programa para continuarmos afastados do bem. É essa convicção angustiada que explica a seriíssima peregrinação que o futuro santo empreende no interior de si mesmo, jamais se poupando.
Exagero ao dizer que a psicologia nasce dessa consciência quase lancinante de uma intimidade marcada pelo pecado original? Uma psicologia que venha da "Retórica" de Aristóteles enxerga as paixões de fora para dentro; seu discípulo Teofrasto, em "Os Caracteres", até as colocará numa lista. No século 17, ao escrever "Os Novos Caracteres", La Bruyère manterá a tradição da lista, da crítica externa, da censura aos costumes depravados.
Tudo isso é uma cena, um teatro que serve, por sinal, para a compreensão da vida pública como uma vida que se encena, que se publica.
Mas uma psicologia que se inspire nas "Confissões" trabalha com um sujeito que, nascendo da culpa, enceta um trajeto: as paixões não são mais um elenco, elas vivem, sobrevivem, morrem, matam.

O santo da psique
Não é casual que, passados quase 14 séculos, Rousseau dê a um de seus principais livros o mesmo nome de "Confissões" -embora o termo mudasse de sentido nesse intervalo, porque para o santo "confessio" significava "acusação a si próprio e louvor a Deus", o que já não vale para Rousseau.
Não é fortuito tampouco que tão pouco da filosofia siga por aí: se há disciplina pouco confessional ou em que a confissão escandaliza, é a filosofia. Na cultura ocidental, a confissão fica na literatura, parente próxima, curiosamente, da ficção -talvez porque ambas valorizem o indivíduo, a pessoa, na sua rota quase trágica.
Seria desejável discutir ainda, nesta resenha, o que Arquillière popularizou sob o nome de "agostinismo político", isto é, a visão da política que a partir da "Cidade de Deus", a outra obra magna do santo, marca quase mil anos da experiência ocidental. Mas, desde que santo Tomás de Aquino propôs uma alternativa política de lavra aristotélica e de sucesso moderno, no século 13, a vertente agostiniana para o poder cristão perdeu seu peso.
O santo Agostinho que ainda vive, embora desconhecido da maior parte, não é tanto o da política. É o da psique. E será por acaso que o grande pensador da psicologia em nosso tempo, Freud, também tenha lidado com a culpa, também tenha provindo do universo em que o pecado original é agudo? Há identidade, sem esse alto custo que o mundo pós-pagão paga?


Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política da USP, autor de "O Afeto Autoritário - Televisão, Ética e Democracia" (Ateliê) e "Ao Leitor Sem Medo (UFMG).

Santo Agostinho
672 págs., R$ 69,90 de Peter Brown. Trad. Vera Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).


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