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"Histórias Mal Contadas", de Silviano Santiago, e "O Rocambole", de Davi
Arrigucci Jr., avançam o diálogo entre análise e criação artística na ficção
Jogos de meias verdades
WANDER MELO MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Diz-se que uma história está
mal contada quando algo
dela é subtraído ao ouvinte
ou interlocutor, quando a
narrativa permanece em suspenso,
entrecortada por silêncios e pontos
obscuros -intencionais ou não-
que atiçam nosso desejo de ir além
das palavras. O bom texto literário é,
nesse sentido, uma história mal contada. Nele tudo deriva dessa perspectiva de enunciação que faz da linguagem um jogo de meias verdades,
no qual realidade e ficção, autor e
personagem, autobiografia e fingimento levam ao extremo o limite tênue que os distancia e aproxima.
Por isso, também, a auto-reflexão
é nele parte indissociável do enredo
a que dá forma e sentido. O resultado é um texto híbrido, cuja dicção ao
mesmo tempo ficcional e ensaística
ampliou e continua a ampliar o horizonte de expectativa do leitor contemporâneo.
Dois autores de excepcional capacidade crítica, Silviano Santiago e
Davi Arrigucci Jr., têm contribuído
para fazer avançar o diálogo efetivo
entre análise e criação artística. Santiago estréia com duas novelas em
1961, tendo escrito até agora mais de
uma dezena de livros de ficção e
poesia, muitos traduzidos em outras
línguas, além de obras de crítica literária e cultural; Arrigucci, depois de
lançar-se como crítico em 1973, escreveu vários outros livros de cunho
ensaístico, estreando como ficcionista em 2003, com a novela "Ugolino e a Perdiz" (Cosacnaify).
Percursos paralelos, embora distintos na intensidade das escolhas,
encontram-se com a publicação dos
contos de "Histórias Mal Contadas",
de Silviano Santiago, e do romance
"O Rocambole", de Davi Arrigucci
Jr. Em comum, certa reminiscência
machadiana: em Santiago presente
desde o título; em Arrigucci, a partir
da epígrafe.
Nos dois, menos ou mais explicitamente, apropriações de textos de diversas áreas, fruto da larga erudição
de ambos. Ou, ainda, o jogo ficcional
com a experiência autobiográfica,
que Santiago localiza principalmente na época em que viveu na França e
nos EUA, e, Arrigucci, ao situar a
ação narrativa na sua cidade natal,
São João da Boa Vista, no interior
paulista. Direção espacial inversa
que talvez explique, ainda que somente em parte, a diferença entre os
dois escritores.
Família decadente
Arrigucci superpõe, como finas camadas de rocambole, o relato de
uma família patriarcal decadente,
curiosamente os Heyst, e o de uma
família de imigrantes italianos, os
Pascali, vizinhas na pequena cidade
interiorana. Apropria-se do estilo de
uma e de outra narrativa, esvaziando os lugares-comuns de ambas pelo contraste dado por capítulos curtos, por cortes certeiros na continuidade narrativa, pelo lirismo perpassado de ironia. Realiza, pela negação, a "Ilíada de realejo", maneira
com que Machado se refere ao romance folhetinesco "Rocambole",
de Ponson du Terrail, na epígrafe do
livro. Para tanto, desdramatiza os
amores desencontrados, o suicida
da família, os segredos de polichinelo da cidade pela sua inserção no cotidiano de uma "vida besta" de uma
"cidadezinha qualquer", para usar
as palavras do poeta.
O rocambolesco só tem lugar no
melodrama representado no bar
Nove de Julho, quando, cerradas
suas portas no final do expediente
noturno, a boemia do lugar entrega-se a papéis marcados, muitos deles
inspirados nos ídolos do cinema à
época. Ali, como personagens de segundo grau, são autores e atores de
uma peça inventada, pois "era preciso pregar uma peça na própria realidade". Pregar uma peça é também
fazer da preparação do rocambole,
com que dona Helga presenteia dona Fiammetta, um ritual erótico, em
que a doceira "botava toda a sensualidade que lhe dera Deus". Como nas
melhores páginas do "Decamerão",
de onde parecem sair a cena e a personagem Fiammetta, o rocambole é
o mediador "literário" do forte desejo do jovem italiano Paquinha (de
"spaccare": em italiano, rachar,
abrir-se) pela distante Mariana.
Deslocamento narrativo
Pregar uma peça, afinal, equivale a
contar mal uma história. Nos contos
de Silviano Santiago, o erotismo é
uma forma de deslocamento narrativo que permite narrar, por interposta pessoa, episódios de uma autobiografia ficcional: "Tudo é disfarce, mentira e falsificação na escrituração do íntimo? Tudo é verdade".
Nas cinco histórias "mal contadas" da primeira parte do livro, cenas de orgia ("O Envelope Azul"),
pedofilia ("Ed e Tom"), segregação
racial ("Borrão"), exclusão ("Bom-Dia, Simpatia") e paranóia homoerótica ("Vivo ou Morto") delineiam
não só fronteiras geopolíticas mas
entrelugares da memória -ou da
ficção- contaminados pelos objetos da cultura de massa, pelo acúmulo de referências eruditas, como
segunda realidade que desfaz a pretensão de uma realidade primeira e
transforma a verdade da representação em artifício, jogo, montagem.
Por isso o relato tem que se confrontar com pontos de resistência
que demandam a constante auto-remissão textual, como forma de entreabrir a porta das "graças do segredo" que constituem a interlocução
-"Quero leitores bisbilhoteiros",
diz o narrador de "Assassinato na
Noite de Natal".
Na segunda parte do livro, Silviano
Santiago incorpora outros escritores, disseminando e refinando procedimentos empregados em textos
que escreveu: intromete-se na correspondência entre Mário de Andrade e Drummond para falar da felicidade da dor; queixa-se, bem-humorado, a Walter Benjamin pela
perda da aura e da conseqüente condenação do escritor atual ao pastiche; faz o inventário ficcional das fichas da célebre conferência de Mário em 1942; refaz, no belíssimo texto
"Todas as Coisas à Sua Vez", as últimas horas da vida de Graciliano Ramos, como se narradas por ele mesmo -"eterno retorno da vida".
Repetição em diferença -e cada
uma a seu modo- é a direção tomada pelos livros dos dois escritores-críticos diante do vasto repertório
herdado da tradição literária e cultural que dominam como poucos. Distanciam-se tanto da compulsão documental de parte expressiva da
produção atual como da incursão já
desgastada pela forma do romance
policial ou de intriga. Talvez isso seja
decisivo para conferir a Silviano
Santiago e a Davi Arrigucci Jr. um
lugar especial na literatura que se faz
entre nós. E dê a ela uma dicção mais
cosmopolita, mais bem antenada
com o tempo em que vivemos.
Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Graciliano Ramos"
(PubliFolha), entre outros.
Histórias Mal Contadas
196 págs., R$ 26,00
de Silviano Santiago. Ed. Rocco (rua Rodrigo
Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2584-3536).
O Rocambole
120 págs., preço não definido
de Davi Arrigucci Jr. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010,
São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).
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