|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Ele é uma Bauhaus de um homem só", diz Teixeira Coelho
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que Britto faz é a
"image d'Épinal"
do século 21; ele é
o Jean-Charles
Pellerin do século
21. Pellerin [que morava na cidade de Épinal] foi pioneiro na
publicação em série, no começo do século 19, de pequenas
gravuras com temas religiosos,
históricos, cotidianos ou extraídos dos romances famosos,
expressos numa diluição dos
traços eruditos da arte da época, a figurativa, as belas-artes
(hoje, Britto dilui a op art, a pop
art, o concretismo etc.).
Eram uma espécie de quadrinhos e revistinha de passatempo, quebra-cabeça ("ache o animal escondido"); às vezes,
"santinho". A expressão virou
sinônimo de representação ingênua, kitsch, feita para decorar, dar boas mensagens, o que
se chama hoje de politicamente correto.
Produtos para a massa
A "image d'Épinal", assim como Britto, está na linhagem de
uma arte popular que vem desde o século 15 pelo menos e que
se destinava ao público iletrado
da cidade ou do interior. Um
produto que não agrega nada,
apenas repete e desbasta.
Britto faz, um pouco, a mesma coisa: toma da cultura do cinema, do desenho animado, da
publicidade e até da arte: tem
uma versão do "Abaporu", da
Tarsila (se fosse artista erudito,
diriam que pratica o apropriacionismo...).
Mas é bom lembrar que Britto é uma Bauhaus de um homem só. Guardadas todas as
proporções, também a Bauhaus desbastou a arte erudita,
de vanguarda, para gerar produtos em série ao alcance do
gosto da massa. Também com a
Bauhaus a carga estética inicial
se perdia largamente na passagem da tela de Kandinsky para
o liquidificador da cozinha.
O que a Bauhaus fez foi visto
como revolucionário. Ou será
que a Bauhaus apenas aplainou
o caminho para os brittos? De
resto, essa lógica da tradução
(ou degradação) do que é exclusivo para o que é de massa está
inscrita tanto no sistema capitalista (liberal ou neoliberal)
como no socialista (marxista,
populista ou outro).
E, de vez em quando, há algo
em Britto não muito distante
do que fez Lichtenstein, por
exemplo, ao se apropriar dos
quadrinhos para fazer suas telas (misto de ironia, culto à estética popular, tiração de pêlo
do comprador disposto a pagar
uma fortuna por nada). Quando uma peça de Britto aparece,
às vezes o problema é muito
mais da arte contemporânea do
que dele.
Educação zero
O abismo entre o gosto da arte contemporânea e as escolhas
cotidianas das pessoas se explica, neste país, pela educação zero para a arte e a cultura, em todos os níveis de ensino. No máximo, as pessoas reconhecem
os hábitos culturais, os valores
oficiais, como esses vistos na
novela, cultura oficial do Brasil.
Não é um problema só daqui.
Mas aqui a incultura virou ícone, objeto de louvação... E há a
questão do preço, também: arte
contemporânea custa caro... O
complicado é que Britto também custa caro...
De um lado, o des-gosto virou
moda. De outro, Britto faz o que
o cinema de Hollywood faz: dá
ao público, se não ao povo, o
que o público quer. Não existe
um "problema Britto", Britto
não é o problema. Britto é a diversidade cultural. O que faz
tem a função de valorizar a
ponta oposta do eixo.
O que ele faz aparece por si, é
por geração espontânea; já seu
oposto precisa ser amparado,
incentivado.
A batalha pelo gosto vem de
longe, e na formação do gosto o
conflito é essencial. Espero que
o conflito continue.
TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Masp. É autor de "História Natural da
Ditadura" (Iluminuras), entre outros livros.
Texto Anterior: De "ornamental" a "ki-suco de framboesa", obra é atacada pelos críticos Próximo Texto: Um passeio pela off off Bienal Índice
|