São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Ele é uma Bauhaus de um homem só", diz Teixeira Coelho

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que Britto faz é a "image d'Épinal" do século 21; ele é o Jean-Charles Pellerin do século 21. Pellerin [que morava na cidade de Épinal] foi pioneiro na publicação em série, no começo do século 19, de pequenas gravuras com temas religiosos, históricos, cotidianos ou extraídos dos romances famosos, expressos numa diluição dos traços eruditos da arte da época, a figurativa, as belas-artes (hoje, Britto dilui a op art, a pop art, o concretismo etc.).
Eram uma espécie de quadrinhos e revistinha de passatempo, quebra-cabeça ("ache o animal escondido"); às vezes, "santinho". A expressão virou sinônimo de representação ingênua, kitsch, feita para decorar, dar boas mensagens, o que se chama hoje de politicamente correto.

Produtos para a massa
A "image d'Épinal", assim como Britto, está na linhagem de uma arte popular que vem desde o século 15 pelo menos e que se destinava ao público iletrado da cidade ou do interior. Um produto que não agrega nada, apenas repete e desbasta.
Britto faz, um pouco, a mesma coisa: toma da cultura do cinema, do desenho animado, da publicidade e até da arte: tem uma versão do "Abaporu", da Tarsila (se fosse artista erudito, diriam que pratica o apropriacionismo...).
Mas é bom lembrar que Britto é uma Bauhaus de um homem só. Guardadas todas as proporções, também a Bauhaus desbastou a arte erudita, de vanguarda, para gerar produtos em série ao alcance do gosto da massa. Também com a Bauhaus a carga estética inicial se perdia largamente na passagem da tela de Kandinsky para o liquidificador da cozinha.
O que a Bauhaus fez foi visto como revolucionário. Ou será que a Bauhaus apenas aplainou o caminho para os brittos? De resto, essa lógica da tradução (ou degradação) do que é exclusivo para o que é de massa está inscrita tanto no sistema capitalista (liberal ou neoliberal) como no socialista (marxista, populista ou outro).
E, de vez em quando, há algo em Britto não muito distante do que fez Lichtenstein, por exemplo, ao se apropriar dos quadrinhos para fazer suas telas (misto de ironia, culto à estética popular, tiração de pêlo do comprador disposto a pagar uma fortuna por nada). Quando uma peça de Britto aparece, às vezes o problema é muito mais da arte contemporânea do que dele.
Educação zero
O abismo entre o gosto da arte contemporânea e as escolhas cotidianas das pessoas se explica, neste país, pela educação zero para a arte e a cultura, em todos os níveis de ensino. No máximo, as pessoas reconhecem os hábitos culturais, os valores oficiais, como esses vistos na novela, cultura oficial do Brasil. Não é um problema só daqui.
Mas aqui a incultura virou ícone, objeto de louvação... E há a questão do preço, também: arte contemporânea custa caro... O complicado é que Britto também custa caro...
De um lado, o des-gosto virou moda. De outro, Britto faz o que o cinema de Hollywood faz: dá ao público, se não ao povo, o que o público quer. Não existe um "problema Britto", Britto não é o problema. Britto é a diversidade cultural. O que faz tem a função de valorizar a ponta oposta do eixo.
O que ele faz aparece por si, é por geração espontânea; já seu oposto precisa ser amparado, incentivado.
A batalha pelo gosto vem de longe, e na formação do gosto o conflito é essencial. Espero que o conflito continue.


TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Masp. É autor de "História Natural da Ditadura" (Iluminuras), entre outros livros.


Texto Anterior: De "ornamental" a "ki-suco de framboesa", obra é atacada pelos críticos
Próximo Texto: Um passeio pela off off Bienal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.