São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

AMPLIAÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA ESCONDE PROJETO DE CIVILIZAÇÃO CALCADO NA GEOPOLÍTICA DOS EUA, QUE ACENTUA O RACISMO ECONÔMICO

O espelho distorcido

Slavoj Zizek

Nos meses que antecederam a entrada da Eslovênia na União Européia, sempre que um jornalista estrangeiro me perguntava qual a nova dimensão que a Eslovênia traria à Europa, minha resposta foi imediata e inequívoca: "Nenhuma". A cultura eslovena é obcecada pela idéia de que, apesar de sermos um país pequeno, somos uma superpotência cultural: possuímos um certo "agalma", um tesouro íntimo e oculto de obras-primas culturais que aguardam o reconhecimento do mundo maior. Talvez esse tesouro seja frágil demais para sobreviver intacto à exposição ao ar fresco da concorrência internacional, como os antigos afrescos romanos em uma cena maravilhosa da "Roma" de Fellini, que começam a desaparecer no instante em que a luz do dia os atinge. Esse narcisismo não é uma especialidade eslovena; há versões dele por toda a Europa Oriental: valorizamos mais a democracia porque tivemos de lutar por ela recentemente, não podendo considerá-la um fato consumado; ainda sabemos o que é a verdadeira cultura, sem a corrupção da cultura de massa barata americanizada. Rejeitar essa fixação pelo tesouro nacional oculto de modo algum representa um ódio étnico por si próprio. A questão é simples e cruel: todos os artistas eslovenos que fizeram uma contribuição relevante tiveram de "trair" suas raízes étnicas em algum momento, fosse isolando-se da corrente cultural dominante na própria Eslovênia, fosse simplesmente deixando o país por algum tempo, vivendo em Viena ou Paris. O mesmo acontece com a Irlanda: não apenas James Joyce sentiu a necessidade de deixá-la para escrever "Ulisses", sua obra-prima sobre Dublin; o próprio Yeats, o poeta do renascimento nacional irlandês, passou anos em Londres. A maior ameaça à tradição nacional são seus guardiães locais, que advertem sobre o perigo das influências estrangeiras.

Primos pobres
Além disso, a atitude eslovena de superioridade cultural encontra sua contrapartida no clichê ocidental condescendente segundo o qual os países pós-comunistas do Leste Europeu são uma espécie de primos pobres retardados, que serão readmitidos à família se se comportarem adequadamente. Lembrem a reação da imprensa às últimas eleições na Sérvia, que os nacionalistas ganharam por ampla vantagem -isso foi visto como um sinal de que a Sérvia "ainda não está pronta para a Europa". Um processo semelhante está ocorrendo hoje na Eslovênia: o fato de os nacionalistas terem reunido assinaturas suficientes para exigir um referendo sobre a construção de uma mesquita em Liubliana é muito triste; o fato de a maioria da população pensar que não se deve permitir a mesquita, ainda mais; e os argumentos citados (não devemos deixar nosso belo meio rural ser maculado por um minarete que representa a barbárie fundamentalista etc.) nos causam vergonha de ser esloveno. Nesses casos, as ameaças ocasionais de Bruxelas só podem ser bem-vindas: mostrem tolerância multicultural ou... No entanto essa imagem simplificada não é toda a verdade. A primeira complicação: os próprios ex-países comunistas, que são os mais ardentes defensores da "guerra ao terror" dos Estados Unidos, temem profundamente que sua identidade cultural, sua sobrevivência como nações, seja ameaçada pelo ataque da "americanização" cultural como preço pela imersão no capitalismo global -nós, assim, presenciamos o paradoxo do antiamericanismo pró-Bush.


A maior ameaça à tradição nacional são seus guardiães locais


Na Eslovênia, os nacionalistas de direita acusam a coalizão governante de centro-esquerda de, apesar de apoiar publicamente a entrada na Otan (aliança militar ocidental) e a campanha antiterrorista dos Estados Unidos, a estar secretamente sabotando, participando por motivos oportunistas, e não por convicção. Ao mesmo tempo, porém, acusam a coalizão governante de querer minar a identidade nacional eslovena ao defender a plena integração da Eslovênia ao capitalismo global ocidentalizado e assim afogar os eslovenos na cultura pop americanizada contemporânea. A idéia é a de que a coalizão governante apóia a cultura pop, o entretenimento idiota na TV, o consumo irracional etc. para transformar os eslovenos em uma multidão facilmente manipulável, incapaz de reflexões sérias e de um posicionamento ético firme. Em suma, o motivo subjacente é o de que a coalizão governante representa "a trama liberal-comunista": a imersão irrestrita e impiedosa no capitalismo global é vista como a última trama obscura dos ex-comunistas, permitindo-lhes manter o controle secreto do poder. Ironicamente, a nova ordem socioideológica emergente que esses nacionalistas conservadores lamentam parece a descrição feita pela antiga Nova Esquerda da "tolerância repressiva" e da liberdade capitalista como o modo de aparecimento da não-liberdade.

Furiosa perplexidade
Essa ambigüidade da atitude européia oriental encontra sua contrapartida perfeita na mensagem ambígua do Ocidente aos países pós-comunistas. Lembrem a pressão dupla que os Estados Unidos exerceram sobre a Sérvia no verão de 2003: os deputados americanos ao mesmo tempo exigiram que o governo sérvio entregasse os suspeitos de crimes de guerra ao Tribunal de Haia (de acordo com a lógica do império global, que exige uma instituição judicial global transnacional) e que assinasse o tratado bilateral com os Estados Unidos, obrigando a Sérvia a não entregar a nenhuma outra instituição internacional (isto é, o "próprio" Tribunal de Haia) cidadãos americanos suspeitos de crimes de guerra ou outros crimes contra a humanidade (de acordo com a lógica da nação-Estado) -não admira que a reação dos sérvios seja de perplexidade furiosa.
E algo semelhante está ocorrendo no nível econômico: enquanto pressiona a Polônia a abrir sua agricultura à concorrência de mercado, a Europa Ocidental inunda o mercado polonês com produtos agrícolas fortemente subsidiados por Bruxelas.
Como os países pós-comunistas podem navegar nesse mar de ventos conflitantes? Se existe um herói ético recente na ex-Iugoslávia é Ika Saric, uma modesta juíza da Croácia que, sem nenhum apoio público definido e em meio a ameaças contra sua vida, condenou o general Mirko Norac e seus colegas a 12 anos de prisão pelos crimes cometidos em 1992 contra a população civil sérvia. Até o governo de esquerda, temendo a ameaça de demonstrações nacionalistas de direita, se recusou a apoiar com firmeza o julgamento de Norac.
No entanto, quando, em meio às ameaças da direita nacionalista de grandes tumultos públicos que derrubariam o governo, a sentença foi proclamada, nada aconteceu: as demonstrações foram muito menores do que se esperava, e a Croácia se "redescobriu" como um Estado de Direito. Foi especialmente importante o fato de Norac não ter sido entregue a Haia, mas condenado na própria Croácia -assim a Croácia provou que não precisa de tutelagem internacional.
A dimensão do ato consistiu na mudança do impossível para o possível: antes da condenação, a direita nacionalista, com suas organizações veteranas, era vista como uma força poderosa que não devia ser provocada, e a condenação dura e direta foi considerada pela esquerda liberal algo que "todos queremos, mas infelizmente não podemos permitir neste momento difícil, pois levaria ao caos". Porém, depois que a sentença foi proclamada e nada aconteceu, o impossível se transformou em rotina. Se há uma dimensão a ser extraída do significante "Europa", então esse ato foi "europeu" no sentido mais patético do termo.
E, se há um evento que personifica a covardia é o comportamento do governo esloveno depois da eclosão da guerra Iraque-Estados Unidos. A política eslovena tentou desesperadamente seguir um curso médio entre a pressão dos Estados Unidos e a impopularidade da guerra entre a maioria dos eslovenos. Primeiramente a Eslovênia assinou a infame Declaração de Vilna, pela qual foi elogiada por Rumsfeld e outros como parte da "nova Europa", da "coalizão dos dispostos" à guerra contra o Iraque. No entanto, depois que o ministro das Relações Exteriores assinou o documento, seguiu-se uma verdadeira comédia de negações: o ministro alegou que, antes de assinar o documento, consultou o então presidente da República e outros dignitários, que imediatamente negaram saber qualquer coisa a respeito; depois, todos os envolvidos afirmaram que o documento de modo algum apoiava o ataque unilateral dos Estados Unidos ao Iraque, mas pedia a atuação fundamental da ONU. A especificação era que a Eslovênia apoiava o desarmamento do Iraque, e não a guerra contra o Iraque. Mas alguns dias depois chegou uma má surpresa dos Estados Unidos: a Eslovênia não apenas foi explicitamente citada entre os países que participavam da "coalizão dos dispostos" como foi designada como receptora de uma ajuda financeira dos Estados Unidos a seus parceiros de guerra. O que se seguiu foi pura comédia: a Eslovênia orgulhosamente declarou que não participaria da guerra contra o Iraque e exigiu ser riscada da lista. Alguns dias depois, um novo documento embaraçoso foi recebido: os Estados Unidos oficialmente agradeciam à Eslovênia por seu apoio e ajuda. A Eslovênia novamente protestou que não se qualificava a nenhum agradecimento, recusava reconhecer-se como destinatária da carta de agradecimento, numa espécie de versão farsesca do "por favor, realmente não mereço seu agradecimento!", como se enviar seu agradecimento fosse a pior coisa que os Estados Unidos pudessem nos fazer agora... Geralmente os Estados protestam quando são injustamente criticados; a Eslovênia protesta quando recebe sinais de gratidão. Em suma, a Eslovênia se comportou como se não fosse a destinatária das cartas de elogios desmedidos -e o que todos sabíamos era que, também nesse caso, a carta realmente chegara a seu destino.


O 3º Mundo não pode gerar uma resistência forte à ideologia do sonho americano


A ambigüidade dos europeus orientais, portanto, simplesmente reflete as incoerências da própria Europa Oriental. No final de sua vida, Freud fez a famosa pergunta: "Was will das Weib?" [O que quer a mulher?], admitindo sua perplexidade diante do enigma da sexualidade feminina. E uma perplexidade semelhante surge hoje, quando os países pós-comunistas entram na União Européia: em que Europa estão entrando? Durante muito tempo defendi um "eurocentrismo de esquerda" renovado. Colocando simplesmente: queremos viver em um mundo em que a única opção é entre a civilização americana e a chinesa capitalista-autoritária emergente? Se a resposta for não, então a única alternativa é a Europa. O Terceiro Mundo não pode gerar uma resistência suficientemente forte à ideologia do sonho americano; na atual constelação, somente a Europa pode fazê-lo. A verdadeira oposição hoje não é entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo, mas entre o conjunto do Primeiro e Terceiro mundos (o império global americano e suas colônias) e o Segundo Mundo restante (a Europa). A propósito de Freud, Theodor Adorno afirmou que o que vemos no "mundo administrado" contemporâneo e sua "dessublimação repressiva" não é mais a velha lógica da repressão do id e seus impulsos, mas um perverso pacto direto entre o superego e o id (impulsos agressivos ilícitos), às custas do ego. Algo estruturalmente semelhante não está ocorrendo hoje no nível político, o estranho pacto entre o capitalismo global pós-moderno e as sociedades pré-modernas, às custas da própria modernidade? É fácil para o império global multiculturalista americano integrar as tradições locais pré-modernas -o corpo estrangeiro que ele efetivamente não consegue assimilar é a modernidade européia. Jihad e McWorld são dois lados da mesma moeda; a Jihad já é McJihad. Embora a atual "guerra ao terror" se apresente como a defesa do legado democrático, ela corteja o perigo claramente percebido um século atrás por G.K. Chesterton, que, em seu "Orthodoxy", explicou o impasse fundamental dos críticos da religião: "Os homens que começam a combater a igreja em nome da liberdade e da humanidade acabam jogando fora a liberdade e a humanidade apenas para poder combater a igreja. (...) Os secularistas não destruíram coisas divinas; mas os secularistas destruíram coisas seculares, se isso pode lhes servir de conforto". Tortura O mesmo não vale hoje para os próprios defensores da religião? Quantos fanáticos defensores da religião não começaram atacando ferozmente a cultura secular contemporânea e acabaram abandonando qualquer experiência religiosa significativa? De maneira semelhante, muitos guerreiros liberais estão tão ávidos para combater o fundamentalismo antidemocrático que acabarão jogando fora a liberdade e a democracia apenas para combater o terror. Eles têm tamanha paixão por provar que o fundamentalismo não-cristão é a principal ameaça à liberdade que estão prontos para recair na posição de que precisamos limitar nossa própria liberdade aqui e agora, em nossas supostas sociedades cristãs. Se os "terroristas" estão prontos para destruir este mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros antiterror estão prontos para destruir seu próprio mundo democrático por ódio ao outro muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que estão dispostos a legalizar a tortura -a degradação máxima da dignidade humana- para defendê-la. E nessas mesmas linhas podemos perder a "Europa" por meio de sua própria defesa. Pessoas e coisas Um ano atrás, uma decisão ameaçadora da União Européia passou quase despercebida: o plano para estabelecer uma força policial de fronteira pan-européia para garantir o isolamento do território da União e assim evitar o influxo de imigrantes. Essa é a verdade da globalização: a construção de novos muros protegendo a próspera Europa da inundação imigrante. Somos tentados a ressuscitar aqui a velha oposição "humanista" marxista entre "relações entre coisas" e "relações entre pessoas": na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as "coisas" (mercadorias) que circulam livremente, enquanto a circulação de "pessoas" é cada vez mais controlada.
Esse novo racismo do desenvolvido é de certa forma muito mais brutal que o anterior: sua legitimação implícita não é naturalista (a superioridade "natural" do Ocidente desenvolvido) nem mais culturalista (nós no Ocidente também queremos preservar nossa identidade cultural), mas o egoísmo econômico descarado -a divisão fundamental é aquela entre os que estão incluídos na esfera da (relativa) prosperidade econômica e os excluídos dela.
O que achamos repreensível e perigoso na política e na civilização dos Estados Unidos é portanto uma parte da própria Europa, um dos possíveis resultados do projeto europeu. Não há lugar para a arrogância autocomplacente: os Estados Unidos são um espelho distorcido da própria Europa. Na década de 1930, Max Horkheimer escreveu que aqueles que não querem falar (criticamente) sobre o liberalismo também devem manter silêncio sobre o fascismo.
"Mutatis mutandis", deveríamos dizer àqueles que criticam o imperialismo americano: os que não querem se envolver criticamente com a Europa também devem manter silêncio sobre os Estados Unidos. Essa, portanto, é a única questão verdadeira por baixo das comemorações autocongratulatórias que acompanham a ampliação da União Européia: a que Europa estamos aderindo? E, confrontados com essa pergunta, estamos todos no mesmo barco, a "nova" e a "velha" Europa.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: A guerra dos nomes
Próximo Texto: + livros: Tupi or not tupi
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.