São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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Bíblia em guarani mbyá empobrece cosmologia indígena ao ajustá-la ao universo cristão

Tupi or not tupi

Eduardo de Almeida Navarro
especial para a Folha

A recente publicação pela Sociedade Bíblica do Brasil de uma Bíblia em guarani, no dialeto mbyá, suscita uma compreensível controvérsia. Por um lado, não há dúvida de que a literatura em guarani mbyá foi enriquecida com tal obra. É preciso lembrar, com efeito, que o guarani mbyá não é o guarani paraguaio, possuidor de vasta literatura e com o estatuto de segunda língua oficial do Paraguai. O mbyá é guarani tribal, de literatura escassa. Torna-se, assim, tal Bíblia, o maior texto já escrito em tal dialeto, facultando longa leitura aos que nele se alfabetizam. Hoje, com efeito, a alfabetização das populações indígenas em suas línguas maternas e a produção de textos nelas são fatores de sobrevivência dessas mesmas línguas, ameaçadas de extinção num mundo de dominação cultural de matrizes norte-americanas e onde a cultura de massa atinge as populações indígenas de modo a diluir seu universo simbólico na cultura do mundo globalizado. Nesse sentido, com a publicação dessa Bíblia, o guarani mbyá recebe uma garantia a mais de sua sobrevivência enquanto língua num futuro próximo.

Deslocamentos semânticos
É certo, contudo, que, em tal Bíblia, muitos termos do guarani mbyá sofreram deslocamentos semânticos para transmitir conteúdos distantes da primitiva cultura tribal, como são alguns conceitos do cristianismo. Cria-se uma esfera simbólica que não é nem a dos missionários nem a do povo guarani. Não é crível, contudo, que não esteja mais ali presente a língua dos mbyás, acusação que já se fez também ao tupi de Anchieta, que alguns deram, falsamente, por tupi "jesuítico". Por outro lado, o que preocupa em uma publicação de tal gênero é a interpenetração de sistemas simbólicos que conduz, necessariamente, nesse caso, à desagregação de uma cosmologia tradicional e de uma religião primitiva, criando uma esfera simbólica híbrida. Se, com ela, a língua dos mbyás se fixa em formas literárias, a forte articulação original do universo simbólico mbyá, já bastante alterada diante dos contatos mais que seculares com o mundo branco, começa a se desfazer. Com efeito, o problema não é a transmissão do cristianismo, que apresenta, seguramente, alguns princípios universalistas, presentes em outros sistemas ético-religiosos, como a exigência da caridade e do amor ao próximo, a justiça e a harmonia na vida social. O que é preocupante é que, numa versão da Bíblia como essa, muitos conteúdos culturais, relativos no tempo e no espaço e nos quais o mundo judaico-cristão se plasmou, são apresentados como universais e absolutos, utilizando-se, para isso, de um dos mais poderosos instrumentos de nossa cultura, que é o texto escrito. Nesse sentido, tal empreendimento é fator de empobrecimento: a diversidade cultural da humanidade é seriamente atingida, o "outro" é visto como o "mesmo", o que conduz a uma entristecedora homogeneização de visões de mundo. Não é aleatório o fato de, historicamente, terem as missões cristãs obtido bom sucesso somente no continente americano: na Ásia, sociedades letradas como a chinesa e a indiana as recusaram e, na África, o crescimento do islã tornou lentos seus passos. Já as sociedades indígenas da América são frágeis diante dos instrumentos de dominação cultural trazidos pelos missionários, que desde os tempos coloniais têm insistido na idéia de que os índios são uma "tábula rasa", sem religião alguma, em que se devem imprimir os sinais da verdadeira fé.

Destruição de sistemas simbólicos
Sabemos que os missionários do passado colonial do Brasil também procederam a tal destruição de sistemas simbólicos tradicionais. Tais missionários não dispunham, contudo, do repertório teórico-científico de que hoje dispõe a humanidade. Como admitirmos, mais de um século depois do surgimento da ciência antropológica, que as populações indígenas atuais sejam tratadas como as do século 16? O próprio Concílio Vaticano 2º, na encíclica "Gaudium et Spes" (parte 2, cap. 2) atentou para tal perigo: "Que fazer para que os intercâmbios culturais mais freqüentes, que deveriam levar os diferentes grupos e nações a um diálogo verdadeiro e frutuoso, não perturbem a vida das comunidades, não destruam a sabedoria dos antepassados nem coloquem em perigo a índole própria de cada povo?".
O diálogo entre culturas é, assim, segundo as palavras de Paulo 6º, o princípio que deveria pautar a ação missionária nos dias de hoje, mormente se considerarmos a fragilidade dessas sociedades não letradas diante das complexas sociedades ocidentais. Como não perceber que os valores que muitas de tais comunidades primitivas já vivem são os mesmos que o Evangelho transmite? Segundo Egon Schaden, "na superfície da Terra não há, por certo, povo ou tribo a que melhor se aplique , do que ao guarani, a palavra evangélica: "O meu reino não é deste mundo". Toda a vida mental do guarani converge para o Além" (apud Clastres, "Terra sem Mal", pág. 13). É possível, assim, ser índio e ser cristão ao mesmo tempo. Mas seria necessário que os não-índios o permitissem.


Eduardo de Almeida Navarro é professor de tupi antigo e de literatura de viagem na Universidade de São Paulo. É autor de "Método Moderno de Tupi Antigo" (ed. Vozes).

A Bíblia Sagrada na Língua Guarani Mbyá
1.408 págs., R$ 27,80 Coordenador da tradução: Robert Dooley. Sociedade Bíblica do Brasil (av. Ceci, 706, CEP 06460-120, Barueri, SP, tel. 0800-727-8888).



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