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Terra de poliglotas
Na região da Cabeça do Cachorro, é comum a população saber pelo menos três línguas
DO ENVIADO ESPECIAL AO ALTO TIQUIÉ
A
região da Cabeça do
Cachorro, no noroeste do Amazonas, fronteira com a
Colômbia, é um
exemplo peculiar de território
multicultural. Convivem ali,
em seis terras indígenas com
cerca de 110 mil km2 -uma
área maior do que a de Portugal-, mais de 21 mil índios de
22 etnias.
Esta parte da bacia do rio Negro é habitada há pelo menos
2.000 anos. As línguas faladas
são muitas, de três famílias
-tucano oriental, aruaque e
macu- distantes umas das outras e dos troncos principais
tupi e jê. Fala-se também o
nheengatu, língua geral formalizada pelos jesuítas, com base
no tupi, em outras paragens do
Brasil em formação.
Quem levou o nheengatu para lá foram religiosos católicos,
que o espalharam pelo rio Negro. Nos rios Uaupés, Tiquié e
Papuri, vingou como língua
franca o tucano, espontaneamente adotado nos colégios internos multiétnicos da região
mantidos pelos padres salesianos até os anos 1970.
O idioma tuiuca, por exemplo, pertence à família tucano
oriental. A distância que o separa do tucano falado por todos no Tiquié é similar à que
existe entre o português e o
francês. Como os índios da região só se casam com mulheres
de outro povo (sistema exogâmico), é comum uma pessoa falar três línguas ou mais, incluindo o português.
Escola comunitária
Além da disciplina rígida, se
preciso fosse com castigos físicos, os padres proibiam falar as
línguas de origem. Impunham
o casamento, condenavam rituais indígenas e habitações coletivas (malocas). Idiomas como o tuiuca quase desapareceram. Ficou arraigado, porém, o
valor dado à alfabetização.
Os grandes colégios internos
nas missões -São Gabriel da
Cachoeira, Pari-Cachoeira, Taracuá, Iauareté, Assunção do
Içana- foram progressivamente substituídos por escolinhas rurais no nível mais básico de ensino. Em geral, sob a
supervisão de freiras das Filhas
de Maria Auxiliadora, outra ordem salesiana. O apoio governamental, no entanto, começou a minguar.
Em 1988, surgiu a Foirn, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Com a nova Constituição e, depois, a Lei
de Diretrizes e Bases, ganhou
força o projeto de criar escolas
próprias, sob orientação da comunidade.
Em meados dos anos 1990, o
movimento das escolas tuiucas,
tucanas e baniuas passou a contar com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), sediado em
São Paulo. Havia professores
indígenas, mas que falavam
português em classe. Sua reciclagem, em oficinas de matemática, política linguística e
gestão escolar, contou com
apoio financeiro da Fundação
Rainforest, da Noruega.
Muitas malocas foram construídas desde então. São usadas
só para rituais ou festas e para
as refeições coletivas matutinas, em que cada mulher traz
de sua casa o beiju de mandioca
e a quinhãpira (caldo de peixe
apimentado).
(ML)
PIETER-JAN VAN DER VELD
(WISÕKA), 46
Agrônomo especializado em
agricultura tropical formado em
Deventer, Holanda, prefere ser
identificado como frísio (grupo
étnico presente na Holanda e na
Alemanha) a holandês. Morou
na Espanha e no México. Um suíço o contratou para trabalhar em
seu sítio em Teresópolis (RJ).
Presenciou a Eco-92, mas teve
de deixar o Brasil por ter apenas
visto de turista. Voltou em 1994
para trabalhar num viveiro de
espécies nativas em Rondônia,
que fracassou. Foi então contratado como amostrador de solos
para o projeto de macrozoneamento do Estado.
Em 1998, mudou-se a convite do
Instituto Socioambiental para
São Gabriel da Cachoeira, onde
conheceu a mulher brasileira,
Márcia, educadora que trabalhava com os índios baniuas
JOSÉ BARRETO RAMOS
(POANI), 50
Suas primeiras letras foram em
espanhol, na comunidade colombiana Acaricuara. Um ano depois
foi transferido para o colégio da
missão salesiana em Pari-Cachoeira, onde ficou nove anos.
Voltou para a comunidade Fronteira, onde tinha nascido, para
trabalhar com o pai na coleta e
secagem de cipó.
Por pressão da comunidade e dos
padres, aceitou tornar-se professor. Ficou quatro anos. Tornou a trabalhar na roça um ano,
mas não se adaptou. Em 1985
escreveu a Higino Tenório, que o
chamou para ser professor.
Em 1987, participou de seminário em São Gabriel da Cachoeira
em que pela primeira vez ouviu
falar da necessidade de escrever
e ensinar a própria língua. Em
2009, ajudou a formar a primeira
turma, 13 alunos, de ensino médio em São Pedro
ALOISIO CABALZAR
(ARUSU), 41
O antropólogo formado pela USP
começou a frequentar o Tiquié e
os tuiucas em 1990, ainda como
aluno de graduação em iniciação
científica. Desenvolveu ali seu
mestrado sobre a organização
social desse povo, que deu origem ao livro "Filhos da Cobra de
Pedra", publicado em 2009 pela
Editora da Unesp.
Foi um dos arquitetos do projeto
de pesquisa participativa que
reuniu índios e ictiólogos (especialistas em peixes) para estudar a fauna do Alto Tiquié, que
resultou na descoberta de várias
espécies e na publicação do livro
"Peixe e Gente no Alto Rio Tiquié" (ISA, 2005). Hoje é assessor do Instituto Socioambiental
e visita os tuiucas, a trabalho,
duas ou três vezes por ano
HIGINO PIMENTEL TENÓRIO
(POANI), 55
O líder da comunidade tuiuca
São Pedro estudou nas missões
salesianas de Pari-Cachoeira
(seis anos) e São Gabriel da Cachoeira (quatro). A mãe teve de
abandonar a família por pressão
dos padres, por já ter sido casada. Em 1975, tornou-se professor por indicação de uma freira.
Em 1979, foi para a Colômbia
atrás da mãe, remando por um
mês inteiro (a fronteira fica a
apenas sete quilômetros, em linha reta). Trabalhou em fazendas de coca.
De volta ao Brasil, aderiu ao garimpo no igarapé Traíra, que depois dirigiu. Foi um dos primeiros a fazer magistério indígena,
nos anos 1990, figurando entre
as duas centenas que conseguiram se formar dos cerca de 600
que iniciaram o curso
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