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+(l)ivros
Neta da revolução
Com obra censurada em Cuba, a escritora Wendy Guerra reconstrói, no romance "Nunca Fui Primeira-Dama", que chega ao Brasil, as histórias de duas mulheres sob o regime cubano
FLÁVIA MARREIRO
DE CARACAS
Há alguns anos, um
cinema cubano
exibiu o premiado
"A Vida dos Outros" [2006, de
Florian Henckel von Donnersmarck], sobre a espionagem na
Alemanha Oriental. Ato contínuo, foi rebatizado, com ironia,
"La Vida de Nosotros" .
Podemos alargar o espasmo
de liberdade que permitiu a
apresentação da obra na ilha de
Fidel e Raúl Castro para encontrar o interstício frágil e dinâmico de uma parcela da cultura cubana. É nele que atuam
e negociam o escritor Pedro
Juan Gutiérrez ou o cineasta
Juan Carlos Cremata ou a escritora e poeta cubana Wendy
Guerra, que virá para a Flip
(Festa Literária Internacional
de Paraty), em agosto.
Sem abrir mão da voltagem
política de sua obra, Guerra vive e trabalha em Havana, num
equilíbrio tenso com o regime.
Num momento digno do filme
alemão, teve seus e-mails vistoriados pela inteligência cubana, entre outros inconvenientes. Mas, à diferença de outros
na ilha, tem internet em casa.
Mais importante: poderá vir
ao evento brasileiro -Cuba
exige um esdrúxulo "visto de
saída". Amarga, porém, a tristeza de não ver publicados, em
seu país, seus dois romances.
"Todos Se Van" (Todos Se Vão,
2006) foi bem recebido na Espanha e na França assim como
"Nunca Fui Primeira-Dama",
seu primeiro título publicado
no Brasil.
O livro mistura vários registros -de arquivos históricos a
programas de rádio- para desfiar um intenso lamento de
uma "neta da revolução".
O alter ego de Guerra está em
busca de sua mãe exilada e de
nada menos que a eminência
parda do projeto de 1959, a assistente pessoal de Fidel, Célia
Sánchez (1920-80). A mãe da
escritora, Albis Torres, deixou
a ilha quando ela tinha 10 anos,
após ver destruído seu projeto
de escrever sobre Célia.
"Nunca Fui Primeira-Dama"
é uma elegia à guerrilheira e
depois primeira-dama "ad hoc"
do país -ela e o ex-ditador jamais assumiram ter um relacionamento.
O livro embrenha-se na repressiva Cuba que perseguia
homossexuais -e bissexuais,
como Albis- nos anos 60 e 70.
É por isso que Guerra declara
respeito por Mariela Castro, a
sexóloga filha de Raúl que é
símbolo dos novos ares de
igualdade de gêneros em Cuba.
O livro trata também, e isso é
o mais interessante, do duelo
íntimo de Guerra com peso da
épica cubana e a busca do individual. É mais heroico deixar
Cuba ou ficar?
Para ficarmos em duas cubanas da mesma geração, a aclamada blogueira Yoani Sánchez,
34, faz ácida crônica do presente. Guerra, 40, quer atar laços
temporais para não desaparecer. A melancolia da revolução
-a ilha como "clínica geriátrica" e ainda potência criadora-
é desamparo para a escritora
que apresentava na TV todas as
manhãs, até os 12 anos, o programa "Contos para Acordar",
para embalar milhares de
crianças que gritavam -e gritam até hoje nas escolas- "Seremos como Che".
Se a Flip de 2009 teve a francesa Sophie Calle, com sua
combustão de intimidade e exposição, a desse ano terá a bela
Wendy Guerra, que já posou
nua e expõe-se mais ainda ao
falar do mal-estar de Cuba, um
"ideal flutuante", "teatro em
pleno sol".
A escritora preferiu conversar com a reportagem da Folha
por chat -mais íntimo que por
telefone no vigiado sistema cubano. Abaixo, fala com acidez
da "esquerda caviar" europeia,
que baixou em Havana nos
anos 60 para ver "os experimentos" da revolução. "Adoro
que essa esquerda francesa esteja lendo meus livros com assombro, pois se dão conta de
que os netos da revolução evoluíram apesar dela."
FOLHA - Seu livro é cheio de canções cubanas, programas de rádio,
vozes e sons. Não deveria vir com
CD? Vai fazer um programa de rádio
na Flip?
WENDY GUERRA
- Melhor: vamos
fazer todos um programa de rádio lá. É uma ideia ótima.
FOLHA - Alguns talvez preferissem
que fizesse o programa nua, por
causa dos seus ensaios fotográficos.
Incomoda que isso possa chamar
mais atenção do que o livro?
GUERRA
- O tema do nu é uma
performance em que emaranhei os próprios críticos. É a
moral da história. Prestam
mais atenção ao corpo nu do
que ao corpo do livro. É uma
grande chacota, e creio que em
Cuba o corpo tem outra dimensão. Vivemos internados, mobilizados. Vivemos coletivamente durante muitos anos nas escolas. A saga dessa vida coletiva
com corpos e pensamentos
muito pessoais.
FOLHA - Seu livro fala de ser soterrada pela exigência épica da Revolução Cubana. Ser educada no sistema
e depois ter outras ideias é um processo doloroso para sua geração,
não?
GUERRA
- As ideias são as mesmas, em evolução. Ninguém
rompe de modo abrupto com
anos de educação social ou acadêmica. A revolução nos preparou para que nos revolucionássemos, mas ela não se revolucionou. Por medo da perda do
poder, milhares de razões.
FOLHA - O livro menciona a influência soviética, um tema também da blogueira Yoani Sánchez.
Considera-se da "Geração Y"? Que
acha da Yoani?
GUERRA
- Sou da geração W.
Odeio falar de gerações porque
é injusto julgar. Yoani é uma
cronista de seu tempo, como os
Van Van [grupo de salsa] fizeram crônica social.
Há uma canção de Chico
Buarque que define bem esses
anos: "Meu Caro Amigo". Essa
é a crônica social.
A diferença é que eu faço ficção. Posso me dar o luxo de escrever sobre a neve e cinco minutos depois de guerrilha. A ficção não te adoece. Adoece os
leitores. Pobres deles.
FOLHA - Qual é a sua relação com a
crítica na Europa?
GUERRA
- Na França e na Espanha, a crítica foi maravilhosa.
Adoro isso, sobretudo porque
aqui chegaram Simone de
Beauvoir e Sartre [nos anos 60]
para ver o experimento cubano. Toda essa esquerda é uma
"esquerda caviar", que tem de
ver o final do filme em suas poltronas na primeira fila em seu
cinema particular. Adoro que
essa esquerda francesa, a mesma de maio de 1968, leia meus
livros com assombro, pois se
dão conta de que os netos da revolução evoluíram apesar dela.
FOLHA - Você citou "evolução", em
oposição à revolução, como fez o
cantor Silvio Rodríguez em março.
Que dizer dos presos políticos? É necessário mais pressão internacional?
GUERRA
- Em nenhuma parte
do mundo as pessoas devem ser
presas por pensar de outra maneira. Silvio diz mais nos seus
discos que em declarações. Se
as pessoas escutassem, saberiam como ele se sente.
FOLHA - Que três pedidos faria a
um gênio da lâmpada?
GUERRA
- 1) Que faça voltar todos os exilados. Me sinto muito
sozinha desde que eles se foram. 2) Que organizemos o país
sem renunciar a uma utopia
possível. 3) Que eu seja feliz
apesar da minha infância.
NUNCA FUI PRIMEIRA-DAMA
Autora: Wendy Guerra
Tradução: Josely Vianna
Editora: Benvirá (tel. 0/ xx/11/3335-2957)
Quanto: R$ 39,90 (256 págs.)
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