|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OS CEM DO SÉCULO
A cabeça que pensa por nós
CLÁUDIO WEBER ABRAMO
especial para a Folha
A edição de 11 de abril do caderno Mais! traz duas listas, "os cem
melhores livros de não-ficção do
século" e "as 30 principais obras
teóricas brasileiras de todos os
tempos", compostas a partir de
indicações feitas por dez intelectuais que formam entre os mais
acreditados do país. Examiná-las
em seu conjunto permite dar uma
espiada dentro da cabeça coletiva
que dirige o pensamento brasileiro.
Primeiro, a lista dos livros do século. Nada menos de 14 são de crítica literária. São 14 %! A isso se
adicionam obras sobre estética e
quase toda a produção dos gurus
da escola de Frankfurt num total
geral de 12. É natural que Freud
conste de uma lista dessas, mesmo
apesar da crescente consciência
sobre a nulidade explicativa da
psicanálise. Mas por que duas
obras dele? Retirando-se um título
freudiano, restaria espaço para a
inclusão de B.F. Skinner, cujo behaviorismo pode não ser do agrado de todo mundo, mas moldou
gerações. Ou Jean Piaget. Mas a
cabeça coletiva não acha que educação seja importante.
Na área da economia, é de estranhar a ausência do nome de Milton Friedman. Será que nossos dirigentes intelectuais não têm vivido a avalanche liberal? Estaria tudo já em Adam Smith, ou quiçá
em Hayek? Em compensação,
consideraram que 7% da produção intelectual mais relevante deste século foi antropológica, com
Lévi-Strauss à testa. Sociologia,
política, teoria política estão representadas por mais de uma dúzia de livros, entre cujos autores,
porém, não se encontram Lênin
ou Gramsci.
Os desvios da lista também se
manifestam na seleção das obras
de natureza filosófica, cujo total é
desmesurado. Enquanto Husserl é
citado nada menos que três vezes,
os filósofos ingleses da linguagem
não se fazem presentes. Karl Popper aparece, mas com a obra errada. "A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos" é, decerto, um livro
que as cabeças bem-pensantes
adoram detestar, mas seria difícil
argumentar que sua importância
tivesse chegado perto de "A Lógica da Descoberta Científica", do
mesmo autor. "A Decadência do
Ocidente", de Oswald Spengler,
um livro extremamente influente
no entre-guerras, não emplacou.
O que chega a causar surpresa,
pois o gênero de holismo anticientífico e de relativismo radical que
Spengler propala é muito ao gosto
atual.
Nossa cabeça acadêmica é existencialista ou fenomenológica
(inúmeras obras citadas), mas
com certeza não analítica: perfumes de filosofia analítica permanecem cautelosamente concentrados em Wittgenstein. Quanto aos
positivistas lógicos, não se poderia
mesmo esperar que o pensamento
dominante se lembrasse deles. Já
Michel Foucault aparece, não
uma, mas duas vezes. E quanto a
Bergson e Merleau-Ponty, cabe
estarem entre os cem pensadores
mais importantes dos últimos cem
anos? Marshall McLuhan e Jürgen
Habermas não mereceriam lembrança? Ah, certo, Habermas virou casaca.
Num século tão profundamente
marcado pelo desenvolvimento
científico, a cabeça que nos governa praticamente só enxerga as humanidades. Da centena de obras
listadas, apenas seis se referem, a
maioria indiretamente, às ciências
da natureza. Mesmo considerando-se que ciência não se faz em livros e que, portanto, as idéias
mais fundamentais do século não
tenham sido expressas dessa forma, ainda assim restaria muito espaço a ser preenchido.
Einstein, ao menos, foi contemplado. Como nenhum dos livros
que escreveu, pessoalmente ou em
colaboração, foi muito importante, tanto faz qual tenha sido mencionado. Já quanto a Niels Bohr,
um físico da mais alta relevância
mas um pensador desastrosamente confuso, não parece justificável
a inclusão de seu "Física Atômica
e Conhecimento Humano". Isso
talvez se explique porque suas
considerações sobre a microfísica
costumam carregar água para o
moinho contemporâneo das citações desinformadas e fora de contexto dos "estudos culturais".
A biologia não comparece na lista, embora um dos desvendadores
do código do DNA, James D. Watson, tenha escrito sobre o assunto
um livro bastante difundido
("The Double Helix"). Ainda na
biologia, ninguém se lembrou de
D'Arcy Thompson ou de J.B.S.
Haldane. Quanto à matemática,
nem pensar, embora a obra didática do multicéfalo Nicolas Bourbaki tivesse influenciado doutrinariamente gerações de matemáticos. A turma gosta de citar Kurt
Gödel, usualmente sem saber do
que está falando. Como é que não
apareceu na lista? O modismo da
"teoria do caos", tão dileto de
certas humanidades, comparece.
A omissão mais fenomenal de
todas diz respeito a Noam
Chomsky, universalmente reconhecido como o maior linguista
de todos os tempos. Levantamento realizado no "Arts and Humanities Citation Index" revela que
Chomsky está em oitavo lugar entre os autores mais citados a partir
da década de 1970, sendo o primeiro entre os vivos. À frente dele
só estão Marx, Lênin, Shakespeare, Aristóteles, a Bíblia, Platão e
Freud. Ele é também, e de longe, o
autor com mais menções no "Social Science Citation Index". Mas,
repetindo o que ouviram em Paris
e leram em Roman Jakobson, o
pessoal continua cem anos atrasado e ainda deve acreditar que linguística é com Saussure.
A lista das 30 principais obras
teóricas brasileiras de todos os
tempos também dá lugar a estranhezas. Repete-se, com agravantes, a concentração na área da literatura: oito livros (quase 27%).
Não é um tanto exagerado atribuir
30% da produção doméstica mais
importante de todos os tempos a
Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque
de Holanda e Antonio Candido,
cada qual com três obras? Ao lado
disso, e escandalosamente, se esqueceram do padre Vieira. Foram
deixados de fora dos "30 mais",
por exemplo, o economista Celso
Furtado; o filósofo Álvaro Vieira
Pinto, cabeça pensante do falecido
Iseb; o pensador Fernando de
Azevedo; o educador Paulo Freire,
cujas idéias podem não ser grande
coisa, mas certamente influenciaram exércitos de pessoas.
Fernando Henrique Cardoso,
por anos e anos louvado pela turma como o "príncipe dos sociólogos", dessa vez ficou sem o galardão. Aventou-se que isso teria
acontecido por ser FHC originário
do mesmo meio que produziu a
lista, e o pessoal não queria passar
atestado de sabujice. Faz sentido:
nessa hipótese, FHC foi o boi de
piranha para que, rio acima, passassem outras mesuras a mestres e
amigos.
O corpo de intelectuais que
compôs tais listas forma entre o
que há de mais chique na academia brasileira. São formadores de
opinião, governam o que se deve
ensinar e o que se deve desprezar,
opinam decisivamente sobre o
que se publica e o que não se publica. As relações de livros que
compuseram indicam a orientação doutrinária e didática que imprimem à sua atividade: movida
por simpatias e antipatias, fascinada pela ficção, mas cega às coisas do mundo, e tanto mais reveladora de lacunas de formação
quanto mais é pretensiosa.
Cláudio Weber Abramo é bacharel em matemática pela Universidade de São Paulo e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: cwabramo@uol.com.br
Texto Anterior: Seminário no Rio debate o 'tempo' Próximo Texto: Arte - Rogério C. de Cerqueira Leite: A evolução do estilo da música ocidental Índice
|