São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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OS CEM DO SÉCULO

A cabeça que pensa por nós

CLÁUDIO WEBER ABRAMO
especial para a Folha

A edição de 11 de abril do caderno Mais! traz duas listas, "os cem melhores livros de não-ficção do século" e "as 30 principais obras teóricas brasileiras de todos os tempos", compostas a partir de indicações feitas por dez intelectuais que formam entre os mais acreditados do país. Examiná-las em seu conjunto permite dar uma espiada dentro da cabeça coletiva que dirige o pensamento brasileiro.
Primeiro, a lista dos livros do século. Nada menos de 14 são de crítica literária. São 14 %! A isso se adicionam obras sobre estética e quase toda a produção dos gurus da escola de Frankfurt num total geral de 12. É natural que Freud conste de uma lista dessas, mesmo apesar da crescente consciência sobre a nulidade explicativa da psicanálise. Mas por que duas obras dele? Retirando-se um título freudiano, restaria espaço para a inclusão de B.F. Skinner, cujo behaviorismo pode não ser do agrado de todo mundo, mas moldou gerações. Ou Jean Piaget. Mas a cabeça coletiva não acha que educação seja importante.
Na área da economia, é de estranhar a ausência do nome de Milton Friedman. Será que nossos dirigentes intelectuais não têm vivido a avalanche liberal? Estaria tudo já em Adam Smith, ou quiçá em Hayek? Em compensação, consideraram que 7% da produção intelectual mais relevante deste século foi antropológica, com Lévi-Strauss à testa. Sociologia, política, teoria política estão representadas por mais de uma dúzia de livros, entre cujos autores, porém, não se encontram Lênin ou Gramsci.
Os desvios da lista também se manifestam na seleção das obras de natureza filosófica, cujo total é desmesurado. Enquanto Husserl é citado nada menos que três vezes, os filósofos ingleses da linguagem não se fazem presentes. Karl Popper aparece, mas com a obra errada. "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos" é, decerto, um livro que as cabeças bem-pensantes adoram detestar, mas seria difícil argumentar que sua importância tivesse chegado perto de "A Lógica da Descoberta Científica", do mesmo autor. "A Decadência do Ocidente", de Oswald Spengler, um livro extremamente influente no entre-guerras, não emplacou. O que chega a causar surpresa, pois o gênero de holismo anticientífico e de relativismo radical que Spengler propala é muito ao gosto atual.
Nossa cabeça acadêmica é existencialista ou fenomenológica (inúmeras obras citadas), mas com certeza não analítica: perfumes de filosofia analítica permanecem cautelosamente concentrados em Wittgenstein. Quanto aos positivistas lógicos, não se poderia mesmo esperar que o pensamento dominante se lembrasse deles. Já Michel Foucault aparece, não uma, mas duas vezes. E quanto a Bergson e Merleau-Ponty, cabe estarem entre os cem pensadores mais importantes dos últimos cem anos? Marshall McLuhan e Jürgen Habermas não mereceriam lembrança? Ah, certo, Habermas virou casaca.
Num século tão profundamente marcado pelo desenvolvimento científico, a cabeça que nos governa praticamente só enxerga as humanidades. Da centena de obras listadas, apenas seis se referem, a maioria indiretamente, às ciências da natureza. Mesmo considerando-se que ciência não se faz em livros e que, portanto, as idéias mais fundamentais do século não tenham sido expressas dessa forma, ainda assim restaria muito espaço a ser preenchido.
Einstein, ao menos, foi contemplado. Como nenhum dos livros que escreveu, pessoalmente ou em colaboração, foi muito importante, tanto faz qual tenha sido mencionado. Já quanto a Niels Bohr, um físico da mais alta relevância mas um pensador desastrosamente confuso, não parece justificável a inclusão de seu "Física Atômica e Conhecimento Humano". Isso talvez se explique porque suas considerações sobre a microfísica costumam carregar água para o moinho contemporâneo das citações desinformadas e fora de contexto dos "estudos culturais".
A biologia não comparece na lista, embora um dos desvendadores do código do DNA, James D. Watson, tenha escrito sobre o assunto um livro bastante difundido ("The Double Helix"). Ainda na biologia, ninguém se lembrou de D'Arcy Thompson ou de J.B.S. Haldane. Quanto à matemática, nem pensar, embora a obra didática do multicéfalo Nicolas Bourbaki tivesse influenciado doutrinariamente gerações de matemáticos. A turma gosta de citar Kurt Gödel, usualmente sem saber do que está falando. Como é que não apareceu na lista? O modismo da "teoria do caos", tão dileto de certas humanidades, comparece.
A omissão mais fenomenal de todas diz respeito a Noam Chomsky, universalmente reconhecido como o maior linguista de todos os tempos. Levantamento realizado no "Arts and Humanities Citation Index" revela que Chomsky está em oitavo lugar entre os autores mais citados a partir da década de 1970, sendo o primeiro entre os vivos. À frente dele só estão Marx, Lênin, Shakespeare, Aristóteles, a Bíblia, Platão e Freud. Ele é também, e de longe, o autor com mais menções no "Social Science Citation Index". Mas, repetindo o que ouviram em Paris e leram em Roman Jakobson, o pessoal continua cem anos atrasado e ainda deve acreditar que linguística é com Saussure.
A lista das 30 principais obras teóricas brasileiras de todos os tempos também dá lugar a estranhezas. Repete-se, com agravantes, a concentração na área da literatura: oito livros (quase 27%). Não é um tanto exagerado atribuir 30% da produção doméstica mais importante de todos os tempos a Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, cada qual com três obras? Ao lado disso, e escandalosamente, se esqueceram do padre Vieira. Foram deixados de fora dos "30 mais", por exemplo, o economista Celso Furtado; o filósofo Álvaro Vieira Pinto, cabeça pensante do falecido Iseb; o pensador Fernando de Azevedo; o educador Paulo Freire, cujas idéias podem não ser grande coisa, mas certamente influenciaram exércitos de pessoas.
Fernando Henrique Cardoso, por anos e anos louvado pela turma como o "príncipe dos sociólogos", dessa vez ficou sem o galardão. Aventou-se que isso teria acontecido por ser FHC originário do mesmo meio que produziu a lista, e o pessoal não queria passar atestado de sabujice. Faz sentido: nessa hipótese, FHC foi o boi de piranha para que, rio acima, passassem outras mesuras a mestres e amigos.
O corpo de intelectuais que compôs tais listas forma entre o que há de mais chique na academia brasileira. São formadores de opinião, governam o que se deve ensinar e o que se deve desprezar, opinam decisivamente sobre o que se publica e o que não se publica. As relações de livros que compuseram indicam a orientação doutrinária e didática que imprimem à sua atividade: movida por simpatias e antipatias, fascinada pela ficção, mas cega às coisas do mundo, e tanto mais reveladora de lacunas de formação quanto mais é pretensiosa.


Cláudio Weber Abramo é bacharel em matemática pela Universidade de São Paulo e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: cwabramo@uol.com.br



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