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ARTE
Períodos de estabilidade e momentos de ruptura marcam história da arte
A evolução do estilo da música ocidental
ROGÉRIO C. DE CERQUEIRA LEITE
do Conselho Editorial
Há uma opção simplificada e
concisa para percorrer a história e
a evolução do estilo musical que,
no entanto, não compromete seja
a clareza, seja a acuidade. Seguindo o esquema adotado por René
Huyghe para as artes plásticas, a
história da música pode ser compreendida como uma sucessão de
períodos de relativa estabilidade,
de consolidação, intercalados por
breves momentos de ruptura,
pontos de inflexão, por vezes verdadeiramente revolucionários. O
esquema também se assemelha
àquele proposto por Kuhn para o
progresso científico.
Embora, evidentemente, esses
pontos de inflexão evolucionária
nem sempre sejam tão bem definidos, frequentemente uma escola
ou uma obra ou mesmo um autor
se torna emblemático da transição
considerada. E, como essas bruscas e profundas mudanças de estilo foram relativamente poucas, é
possível acompanhar a história da
música ocidental com um número
pequeno de exemplos. No que segue identificaremos sete transcrições e pelo menos sete estilos que
chegaram à plenitude.
1 - Época Medieval
Não perderemos tempo com as
muitas teorias relativas aos débitos da música ocidental com as
inúmeras e eventuais fontes judias
e orientais e com as culturas pagãs
européias. Em realidade a primeira música que nos chegou de maneira satisfatoriamente documentada foi o canto gregoriano e suas
formas contemporâneas. O acervo
gregoriano é constituído de cerca
de 600 peças do ordinário e outro
tanto do próprio.
Durante esse período, que se estende desde os primórdios da era
cristã na Europa até meados do século 12, domina a monodia, tanto
na música litúrgica, como na secular. O termo "monodia" significa
que é utilizada apenas uma voz.
(Alguns especialistas preferem a
designação "monofonia".) O uso
de uma única voz limita, obviamente, as opções de elementos expressivos, mas tem a vantagem de
focalizar a atenção em uma idéia
musical a cada momento.
O clímax da monodia é alcançado pelo canto gregoriano, fórmula
que o rigor eclesiástico burilou ao
extremo de perfeição expressiva
que ainda hoje permite que incógnitos monges beneditinos dos
mosteiros de Silos ou de Solesnes
possam competir em tiragem de
discos com as maiores, modernas
e ricas orquestras sinfônicas do
mundo.
2 - Estilo Gótico
Muitos musicólogos se oporão
ao termo gótico para caracterizar
o estilo musical que se inicia em
meados do século 12 e se estende
até os primórdios do Renascimento, em meados do século 15. Alguns preferirão, talvez, o termo
"Medieval Tardio" ou entenderão que a Idade Média se estende
até o Renascimento. Todavia há
uma aguda coincidência temporal
entre o que se denomina gótico em
arquitetura, pintura e escultura, e
este que se inicia com uma das
mais notáveis rupturas na evolução do estilo da música ocidental.
Essa primeira revolução ocorre
em Paris. Ensaios primitivos em
polifonia já existiam tanto na música popular quanto na sacra desde o século 10, mas só se consolida
a polifonia à época das obras atribuídas pelo escriba "Anônimo 4"
aos geniais religiosos compositores Leoninus e Perotinus.
A influência dessa escola, dita de
Notre Dame, foi enorme. Desde
então a composição passou a ser
crescentemente polifônica. Ou
melhor, a preocupação fundamental do músico passa a ser com
os problemas relativos à escrita
por partes, ou seja, com a escrita
vertical, por assim dizer. Com o
crescente império da polifonia
houve um imenso ganho quanto a
opções criativas, pois a disponibilidade de várias vozes simultâneas
propiciava uma infinidade de
combinações sonoras, mas também houve perdas. Ao compor para várias partes, o autor é obrigado
a obedecer regras de harmonia
mais restritivas que aquelas necessárias para a música monofônica.
É como viver em uma sociedade
de iguais, onde regras de convivência limitam a liberdade individual.
Talvez seja por uma espécie de
nostalgia dessa liberdade própria
da solidão que a monodia nunca
será inteiramente abandonada. E
não é de espantar que ainda hoje,
decorridos mil anos de sua superação, ainda ouçamos, atenta e tão
frequentemente, o mais simples
canto gregoriano.
E aqui talvez seja oportuna uma
associação ousada entre a simplicidade da arquitetura romanesca e
aquela de sua contemporânea arte
musical, a do canto gregoriano, da
monodia. A complexa arquitetura
gótica nasce simultaneamente
com a intrincada polifonia da Escola de Notre Dame. E haverá, por
certo, imaginações suficientemente férteis para encontrar afinidades entre, de um lado, os previsíveis contornos dos arcos romanos
e a suave fluência da melodia gregoriana e, de outro, entre os ângulos improváveis das flechas góticas
e os acordes abruptos da nova polifonia emergente no Renascimento.
3 - O Renascimento
Vamos chamar de Renascimento a época que começou em meados do século 15 e termina em inícios do 17. Se olharmos esse período como se fora um bloco monolítico, a característica principal que
o distinguiria de seu predecessor
seria a restauração da monodia,
agora acompanhada de uma ou
mais vozes subsidiárias, uma consequência natural das necessidades dramáticas das formas precursoras da ópera. Todavia essa é uma
característica que só se acentua
tardiamente no Renascimento. A
polifonia do Renascimento também exibe algumas diferenças perceptíveis. Como consequência de
algumas inovações harmônicas
(do crescente uso da terça em lugar de consonâncias perfeitas), foi
possível dispensar a separação
aguda entre as vozes e permitir
movimentos mais livres entre elas,
com o surgimento de novos dispositivos, inclusive da imitação, o
germe da fuga, que veio a frutificar
no barroco.
O "epicentro" da invenção musical que residia na Itália durante o
primeiro milênio de nossa era se
desloca para Paris no começo do
segundo, e antes que a metade
deste nosso milênio se escoe se
instala, por um período breve porém brilhante, nas terras franco-flamengas do ducado de Borgonha -que, não podemos esquecer, ao fim do Renascimento
se estendia desde a região hoje denominada Borgonha até a totalidade dos Países Baixos. Não devemos nos espantar tanto com essa
inesperada geografia da genialidade. Basta lembrar dos contemporâneos Bosch, Brueghel, Van Eyck
etc.
Todavia a Velha e Eterna Itália já
despertava. E, antes mesmo que o
Renascimento se encerrasse, explodia a imaginação italiana. Lassus, o último dos grandes flamengos, mal chegara a Munique e já
brilhavam por toda a Itália os gênios dos Gabrielis, de Palestrina e
do Jovem Monteverdi.
Sim, a monodia havia sido reinstalada, mas em compensação a
polifonia se enriquecia graças a
técnicas avançadas de contraponto de ritmos e de melodia. Se há
talvez uma característica dominante do Renascimento, esta não é
de ordem técnica, mas, ouso dizer, ideológica. Pela primeira vez o
músico percebe que não está a serviço de regras, quaisquer que sejam, mas que pode mudá-las, que
elas estão a seu serviço.
4 - O Estilo barroco
Toda e qualquer delimitação de
épocas para os estilos musicais será necessariamente arbitrária. Todavia existe na transição Renascimento-Barroco um marco mais
bem definido do que qualquer outro. É a adoção consciente e intencional de uma "Segunda Prática", por Monteverdi. É claro que
não é uma ruptura técnica extrema, mas é declarada e perceptível.
Entretanto essa transição difere
das demais pelo fato de formalmente ter conservado o estilo anterior como alternativa competente. Pela primeira vez, como diz
Bukofzer, o compositor é obrigado a ser bilingue. Em realidade, a
proclamada unidade de estilo do
Renascimento e mesmo do Gótico
sempre foi atropelada por manifestações variadas da monodia.
Mas nesses casos essas formas
sempre foram consideradas como
"clandestinas".
Se olharmos, entretanto, o período barroco como um todo, perceberemos como característica
mais saliente, ou seja, aquela que o
distingue mais claramente do estilo renascentista, o uso quase permanente de um dispositivo denominado "baixo contínuo". Vejamos como isso acontece. A transição Renascimento-Barroco decorre de um misterioso imperativo,
talvez de origem biológica mesmo, que propulsiona a mente criativa na busca de novos acordes, ou
melhor, de novas formas de lidar
com dissonâncias, o que implica
mudanças das regras da harmonia
e, consequentemente, invenções
em outros elementos, inclusive no
contraponto.
Por outro lado, o progressivo
deslocamento da música de concerto, da igreja para o salão, implicava a absorção de elementos narrativos de natureza dramática,
embora simbólicos, o que encontrava dificuldades com a intrincada polifonia característica do Renascimento. Essa mudança de enfoque resultou em maior concentração na voz baixa dos elementos
rítmicos e sustentação da tonalidade, liberando as vozes mais altas
para o contraponto e assim melhor lidar com dissonâncias. Levada ao extremo, essa fórmula se
torna o baixo contínuo. É também
um expediente conveniente para
essa nova forma de música secular
que se afirma no barroco, a ópera,
pois é adequada para fórmulas
dramáticas tais como árias, recitativos acompanhados e lamentos.
5 - O Classicismo
Nós vimos que o epicentro da invenção musical se desloca da Itália
para a França em começos do segundo milênio, deslizando para as
terras flamengas (Ducado de Borgonha) antes do final da primeira
metade do segundo milênio e se
instalando na Itália em fins do Renascimento. O que acontece agora, já em meados do século 18, é
uma transição geográfica tão aguda quanto a mudança de estilo. É
agora no mundo germânico, Alemanha e Áustria, que irá ocorrer a
mais profunda revolução no estilo
da música ocidental.
O contraponto havia chegado a
um nível de perfeição tão elevado,
por Bach, Haendel e outros, que
não havia mais o que ser inventado dentro do mesmo universo formal. A solução seria derrubar todo
o edifício. Renova-se o conceito de
homofonia, que permanecia embrionária desde inícios da ópera
renascentista. As vozes múltiplas
já não se contrapõem em ritmo e
melodia, mas colaboram na expressão de uma mesma idéia. Com
a polifonia o interesse do espectador era obrigado a se concentrar
em um período curto de tempo
para poder compreender o diálogo de muitas vozes expressando
idéias diferentes. Na homofonia o
que importa é o desenrolar de
uma única idéia, ou poucas, colocadas em sucessão. A música instrumental, tanto quanto a vocal,
se torna assim uma "narrativa".
A figura central dessa revolução
é Joseph Haydn, embora muitos
sejam os seus precursores. Mas é
Haydn que pacientemente vai, por
meio de uma infinidade de experiências, elaborar ao longo de décadas, com a colaboração de seu
genial discípulo Wolfgang Amadeus Mozart, a mais complexa e
misteriosa "receita" para a produção musical de todos os tempos, a "forma-sonata". Essa é a
fórmula básica do primeiro e, por
vezes, de outros movimentos de
quase todas as composições instrumentais do classicismo, do romantismo e de muitos autores
posteriores a estes períodos. Sinfonias, concertos, quartetos e outros agrupamentos de câmara
adotam esta estrutura, extremamente rígida, mas, não obstante,
versátil e eficaz.
A macroestrutura da forma-sonata é a segmentação didática tradicional. Exposição - Desenvolvimento - Recapitulação, a mesma
fórmula para uma boa aula ou para um discurso demagógico. Até
aqui tudo é muito simples. A coisa
se complica é com a microestrutura. Em primeiro lugar, são utilizados quase sempre dois temas básicos, contrastantes. A tonalidade
do primeiro tema, o principal, geralmente de caráter viril, é na tônica, maior ou menor. O segundo
tema, de caráter geralmente "feminino", é escolhido tanto quanto à tonalidade, como quanto à
melodia, ritmo e dinâmica, em
contraste com o tema principal.
Outros elementos musicais
-pontes, codetas etc.- são introduzidos nos três segmentos do
movimento, ou como temas derivados, ou como material independente. É um teatro completo. Fortes relações entre tonalidades dos
temas e suas formas derivadas
acabam por constituir regras tão
rígidas quanto aquelas do intrincado contraponto que acaba de ser
deposto. Artistas são como os burocratas, fazem suas revoluções,
destroem regras nefastas, conseguem uma tão almejada liberdade,
apenas para poder escolher outras
prisões, outras burocracias, outras regras.
6 - O romantismo
Uma das questões que são colocadas com mais frequência por
melômanos é se seriam Beethoven
e Schubert clássicos ou românticos. Pois bem, de acordo com os
critérios aqui apresentados, eles
seriam autores clássicos, pois do
ponto de vista formal pouco diferem de Haydn e Mozart. Mas haveria compositor mais romântico
que Beethoven? Pois bem, o paradoxo está justamente nessa ambivalência do romantismo. O herói
precisa lutar continuamente contra os grilhões que limitam sua liberdade. Não há herói em tempos
de paz. A rígida estrutura da forma-sonata oferece a Beethoven infinitas possibilidades de transgressão. Por outro lado, também
disciplina sua rebeldia. Ninguém
violentou mais a forma-sonata
que Beethoven e ninguém a explorou tão bem. Eis por que Beethoven é o primeiro e maior dos românticos da música ocidental.
Mas foi ele um revolucionário ou
um reacionário? Beethoven inovou tanto ou mais que qualquer
outro músico, não na forma, mas
no abuso de forma.
7 - Moderna e contemporânea
"O novo, somente o novo interessa ao homem", disse o romântico Goethe. A forma-sonata se
lastreava não só em algumas fórmulas harmônicas bem-sucedidas, mas também na necessidade
do homem do século 19 de introspecção e auto-análise. Mas até a
perfeição da forma-sonata envelhece, como também a harmonia
clássica, o diatonalismo.
Assim, bastaram quatro minutos para que o gênio de Debussy
derrubasse o sólido edifício diatônico que tomou cinco séculos para
ser erigido e ferisse mortalmente o
estilo narrativo e seu clímax, a forma-sonata, e ainda abrisse caminho à revitalização do ritmo como
elemento musical autônomo.
Foi em 1894 que Debussy apresentou seu revolucionário "Prélude à l'Après-midi d'un Faune".
Esses quatro minutos representam, de fato, o prelúdio de uma
nova era na música ocidental, pois
todas as regras haviam sido rompidas, sutilmente embora, sem o
estardalhaço com que Stravinski,
20 anos depois, imporia o ritmo
como um parceiro igualitário na
composição.
O período a que nos referimos
como música moderna costuma
ser encerrado em análises correntes, com a Segunda Escola de Viena e seus geniais mentores,
Schoenberg, Webern e Berg. O
diatonalismo só foi formalmente
considerado ultrapassado quando
substituído por outro sistema oficialesco. Nesse caso, o serialismo
dodecafônico. Todavia, se tivéssemos o cuidado hoje de fazer uma
estatística, veríamos que há um
número equivalente de compositores neoclássicos ao de compositores que rejeitam de fato a harmonia clássica. Se a intenção de
Debussy era a de eliminar paradigmas e regras, esse objetivo acabou sendo alcançado. Não há um
estilo musical próprio da nossa
época, mas uma multitude de experiências divergentes, muitas das
quais interessantes, inspiradas
mesmo, mas nenhuma, ao que
aparece até agora, capaz de gerar
um estilo característico de nossa
era.
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