São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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ARTE
Períodos de estabilidade e momentos de ruptura marcam história da arte
A evolução do estilo da música ocidental

ROGÉRIO C. DE CERQUEIRA LEITE
do Conselho Editorial

Há uma opção simplificada e concisa para percorrer a história e a evolução do estilo musical que, no entanto, não compromete seja a clareza, seja a acuidade. Seguindo o esquema adotado por René Huyghe para as artes plásticas, a história da música pode ser compreendida como uma sucessão de períodos de relativa estabilidade, de consolidação, intercalados por breves momentos de ruptura, pontos de inflexão, por vezes verdadeiramente revolucionários. O esquema também se assemelha àquele proposto por Kuhn para o progresso científico.
Embora, evidentemente, esses pontos de inflexão evolucionária nem sempre sejam tão bem definidos, frequentemente uma escola ou uma obra ou mesmo um autor se torna emblemático da transição considerada. E, como essas bruscas e profundas mudanças de estilo foram relativamente poucas, é possível acompanhar a história da música ocidental com um número pequeno de exemplos. No que segue identificaremos sete transcrições e pelo menos sete estilos que chegaram à plenitude.

1 - Época Medieval
Não perderemos tempo com as muitas teorias relativas aos débitos da música ocidental com as inúmeras e eventuais fontes judias e orientais e com as culturas pagãs européias. Em realidade a primeira música que nos chegou de maneira satisfatoriamente documentada foi o canto gregoriano e suas formas contemporâneas. O acervo gregoriano é constituído de cerca de 600 peças do ordinário e outro tanto do próprio.
Durante esse período, que se estende desde os primórdios da era cristã na Europa até meados do século 12, domina a monodia, tanto na música litúrgica, como na secular. O termo "monodia" significa que é utilizada apenas uma voz. (Alguns especialistas preferem a designação "monofonia".) O uso de uma única voz limita, obviamente, as opções de elementos expressivos, mas tem a vantagem de focalizar a atenção em uma idéia musical a cada momento.
O clímax da monodia é alcançado pelo canto gregoriano, fórmula que o rigor eclesiástico burilou ao extremo de perfeição expressiva que ainda hoje permite que incógnitos monges beneditinos dos mosteiros de Silos ou de Solesnes possam competir em tiragem de discos com as maiores, modernas e ricas orquestras sinfônicas do mundo.

2 - Estilo Gótico
Muitos musicólogos se oporão ao termo gótico para caracterizar o estilo musical que se inicia em meados do século 12 e se estende até os primórdios do Renascimento, em meados do século 15. Alguns preferirão, talvez, o termo "Medieval Tardio" ou entenderão que a Idade Média se estende até o Renascimento. Todavia há uma aguda coincidência temporal entre o que se denomina gótico em arquitetura, pintura e escultura, e este que se inicia com uma das mais notáveis rupturas na evolução do estilo da música ocidental.
Essa primeira revolução ocorre em Paris. Ensaios primitivos em polifonia já existiam tanto na música popular quanto na sacra desde o século 10, mas só se consolida a polifonia à época das obras atribuídas pelo escriba "Anônimo 4" aos geniais religiosos compositores Leoninus e Perotinus.
A influência dessa escola, dita de Notre Dame, foi enorme. Desde então a composição passou a ser crescentemente polifônica. Ou melhor, a preocupação fundamental do músico passa a ser com os problemas relativos à escrita por partes, ou seja, com a escrita vertical, por assim dizer. Com o crescente império da polifonia houve um imenso ganho quanto a opções criativas, pois a disponibilidade de várias vozes simultâneas propiciava uma infinidade de combinações sonoras, mas também houve perdas. Ao compor para várias partes, o autor é obrigado a obedecer regras de harmonia mais restritivas que aquelas necessárias para a música monofônica. É como viver em uma sociedade de iguais, onde regras de convivência limitam a liberdade individual.
Talvez seja por uma espécie de nostalgia dessa liberdade própria da solidão que a monodia nunca será inteiramente abandonada. E não é de espantar que ainda hoje, decorridos mil anos de sua superação, ainda ouçamos, atenta e tão frequentemente, o mais simples canto gregoriano.
E aqui talvez seja oportuna uma associação ousada entre a simplicidade da arquitetura romanesca e aquela de sua contemporânea arte musical, a do canto gregoriano, da monodia. A complexa arquitetura gótica nasce simultaneamente com a intrincada polifonia da Escola de Notre Dame. E haverá, por certo, imaginações suficientemente férteis para encontrar afinidades entre, de um lado, os previsíveis contornos dos arcos romanos e a suave fluência da melodia gregoriana e, de outro, entre os ângulos improváveis das flechas góticas e os acordes abruptos da nova polifonia emergente no Renascimento.

3 - O Renascimento
Vamos chamar de Renascimento a época que começou em meados do século 15 e termina em inícios do 17. Se olharmos esse período como se fora um bloco monolítico, a característica principal que o distinguiria de seu predecessor seria a restauração da monodia, agora acompanhada de uma ou mais vozes subsidiárias, uma consequência natural das necessidades dramáticas das formas precursoras da ópera. Todavia essa é uma característica que só se acentua tardiamente no Renascimento. A polifonia do Renascimento também exibe algumas diferenças perceptíveis. Como consequência de algumas inovações harmônicas (do crescente uso da terça em lugar de consonâncias perfeitas), foi possível dispensar a separação aguda entre as vozes e permitir movimentos mais livres entre elas, com o surgimento de novos dispositivos, inclusive da imitação, o germe da fuga, que veio a frutificar no barroco.
O "epicentro" da invenção musical que residia na Itália durante o primeiro milênio de nossa era se desloca para Paris no começo do segundo, e antes que a metade deste nosso milênio se escoe se instala, por um período breve porém brilhante, nas terras franco-flamengas do ducado de Borgonha -que, não podemos esquecer, ao fim do Renascimento se estendia desde a região hoje denominada Borgonha até a totalidade dos Países Baixos. Não devemos nos espantar tanto com essa inesperada geografia da genialidade. Basta lembrar dos contemporâneos Bosch, Brueghel, Van Eyck etc.
Todavia a Velha e Eterna Itália já despertava. E, antes mesmo que o Renascimento se encerrasse, explodia a imaginação italiana. Lassus, o último dos grandes flamengos, mal chegara a Munique e já brilhavam por toda a Itália os gênios dos Gabrielis, de Palestrina e do Jovem Monteverdi.
Sim, a monodia havia sido reinstalada, mas em compensação a polifonia se enriquecia graças a técnicas avançadas de contraponto de ritmos e de melodia. Se há talvez uma característica dominante do Renascimento, esta não é de ordem técnica, mas, ouso dizer, ideológica. Pela primeira vez o músico percebe que não está a serviço de regras, quaisquer que sejam, mas que pode mudá-las, que elas estão a seu serviço.

4 - O Estilo barroco
Toda e qualquer delimitação de épocas para os estilos musicais será necessariamente arbitrária. Todavia existe na transição Renascimento-Barroco um marco mais bem definido do que qualquer outro. É a adoção consciente e intencional de uma "Segunda Prática", por Monteverdi. É claro que não é uma ruptura técnica extrema, mas é declarada e perceptível. Entretanto essa transição difere das demais pelo fato de formalmente ter conservado o estilo anterior como alternativa competente. Pela primeira vez, como diz Bukofzer, o compositor é obrigado a ser bilingue. Em realidade, a proclamada unidade de estilo do Renascimento e mesmo do Gótico sempre foi atropelada por manifestações variadas da monodia. Mas nesses casos essas formas sempre foram consideradas como "clandestinas".
Se olharmos, entretanto, o período barroco como um todo, perceberemos como característica mais saliente, ou seja, aquela que o distingue mais claramente do estilo renascentista, o uso quase permanente de um dispositivo denominado "baixo contínuo". Vejamos como isso acontece. A transição Renascimento-Barroco decorre de um misterioso imperativo, talvez de origem biológica mesmo, que propulsiona a mente criativa na busca de novos acordes, ou melhor, de novas formas de lidar com dissonâncias, o que implica mudanças das regras da harmonia e, consequentemente, invenções em outros elementos, inclusive no contraponto.
Por outro lado, o progressivo deslocamento da música de concerto, da igreja para o salão, implicava a absorção de elementos narrativos de natureza dramática, embora simbólicos, o que encontrava dificuldades com a intrincada polifonia característica do Renascimento. Essa mudança de enfoque resultou em maior concentração na voz baixa dos elementos rítmicos e sustentação da tonalidade, liberando as vozes mais altas para o contraponto e assim melhor lidar com dissonâncias. Levada ao extremo, essa fórmula se torna o baixo contínuo. É também um expediente conveniente para essa nova forma de música secular que se afirma no barroco, a ópera, pois é adequada para fórmulas dramáticas tais como árias, recitativos acompanhados e lamentos.

5 - O Classicismo
Nós vimos que o epicentro da invenção musical se desloca da Itália para a França em começos do segundo milênio, deslizando para as terras flamengas (Ducado de Borgonha) antes do final da primeira metade do segundo milênio e se instalando na Itália em fins do Renascimento. O que acontece agora, já em meados do século 18, é uma transição geográfica tão aguda quanto a mudança de estilo. É agora no mundo germânico, Alemanha e Áustria, que irá ocorrer a mais profunda revolução no estilo da música ocidental.
O contraponto havia chegado a um nível de perfeição tão elevado, por Bach, Haendel e outros, que não havia mais o que ser inventado dentro do mesmo universo formal. A solução seria derrubar todo o edifício. Renova-se o conceito de homofonia, que permanecia embrionária desde inícios da ópera renascentista. As vozes múltiplas já não se contrapõem em ritmo e melodia, mas colaboram na expressão de uma mesma idéia. Com a polifonia o interesse do espectador era obrigado a se concentrar em um período curto de tempo para poder compreender o diálogo de muitas vozes expressando idéias diferentes. Na homofonia o que importa é o desenrolar de uma única idéia, ou poucas, colocadas em sucessão. A música instrumental, tanto quanto a vocal, se torna assim uma "narrativa".
A figura central dessa revolução é Joseph Haydn, embora muitos sejam os seus precursores. Mas é Haydn que pacientemente vai, por meio de uma infinidade de experiências, elaborar ao longo de décadas, com a colaboração de seu genial discípulo Wolfgang Amadeus Mozart, a mais complexa e misteriosa "receita" para a produção musical de todos os tempos, a "forma-sonata". Essa é a fórmula básica do primeiro e, por vezes, de outros movimentos de quase todas as composições instrumentais do classicismo, do romantismo e de muitos autores posteriores a estes períodos. Sinfonias, concertos, quartetos e outros agrupamentos de câmara adotam esta estrutura, extremamente rígida, mas, não obstante, versátil e eficaz.
A macroestrutura da forma-sonata é a segmentação didática tradicional. Exposição - Desenvolvimento - Recapitulação, a mesma fórmula para uma boa aula ou para um discurso demagógico. Até aqui tudo é muito simples. A coisa se complica é com a microestrutura. Em primeiro lugar, são utilizados quase sempre dois temas básicos, contrastantes. A tonalidade do primeiro tema, o principal, geralmente de caráter viril, é na tônica, maior ou menor. O segundo tema, de caráter geralmente "feminino", é escolhido tanto quanto à tonalidade, como quanto à melodia, ritmo e dinâmica, em contraste com o tema principal. Outros elementos musicais -pontes, codetas etc.- são introduzidos nos três segmentos do movimento, ou como temas derivados, ou como material independente. É um teatro completo. Fortes relações entre tonalidades dos temas e suas formas derivadas acabam por constituir regras tão rígidas quanto aquelas do intrincado contraponto que acaba de ser deposto. Artistas são como os burocratas, fazem suas revoluções, destroem regras nefastas, conseguem uma tão almejada liberdade, apenas para poder escolher outras prisões, outras burocracias, outras regras.

6 - O romantismo
Uma das questões que são colocadas com mais frequência por melômanos é se seriam Beethoven e Schubert clássicos ou românticos. Pois bem, de acordo com os critérios aqui apresentados, eles seriam autores clássicos, pois do ponto de vista formal pouco diferem de Haydn e Mozart. Mas haveria compositor mais romântico que Beethoven? Pois bem, o paradoxo está justamente nessa ambivalência do romantismo. O herói precisa lutar continuamente contra os grilhões que limitam sua liberdade. Não há herói em tempos de paz. A rígida estrutura da forma-sonata oferece a Beethoven infinitas possibilidades de transgressão. Por outro lado, também disciplina sua rebeldia. Ninguém violentou mais a forma-sonata que Beethoven e ninguém a explorou tão bem. Eis por que Beethoven é o primeiro e maior dos românticos da música ocidental. Mas foi ele um revolucionário ou um reacionário? Beethoven inovou tanto ou mais que qualquer outro músico, não na forma, mas no abuso de forma.

7 - Moderna e contemporânea
"O novo, somente o novo interessa ao homem", disse o romântico Goethe. A forma-sonata se lastreava não só em algumas fórmulas harmônicas bem-sucedidas, mas também na necessidade do homem do século 19 de introspecção e auto-análise. Mas até a perfeição da forma-sonata envelhece, como também a harmonia clássica, o diatonalismo.
Assim, bastaram quatro minutos para que o gênio de Debussy derrubasse o sólido edifício diatônico que tomou cinco séculos para ser erigido e ferisse mortalmente o estilo narrativo e seu clímax, a forma-sonata, e ainda abrisse caminho à revitalização do ritmo como elemento musical autônomo.
Foi em 1894 que Debussy apresentou seu revolucionário "Prélude à l'Après-midi d'un Faune". Esses quatro minutos representam, de fato, o prelúdio de uma nova era na música ocidental, pois todas as regras haviam sido rompidas, sutilmente embora, sem o estardalhaço com que Stravinski, 20 anos depois, imporia o ritmo como um parceiro igualitário na composição.
O período a que nos referimos como música moderna costuma ser encerrado em análises correntes, com a Segunda Escola de Viena e seus geniais mentores, Schoenberg, Webern e Berg. O diatonalismo só foi formalmente considerado ultrapassado quando substituído por outro sistema oficialesco. Nesse caso, o serialismo dodecafônico. Todavia, se tivéssemos o cuidado hoje de fazer uma estatística, veríamos que há um número equivalente de compositores neoclássicos ao de compositores que rejeitam de fato a harmonia clássica. Se a intenção de Debussy era a de eliminar paradigmas e regras, esse objetivo acabou sendo alcançado. Não há um estilo musical próprio da nossa época, mas uma multitude de experiências divergentes, muitas das quais interessantes, inspiradas mesmo, mas nenhuma, ao que aparece até agora, capaz de gerar um estilo característico de nossa era.


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