São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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LIVROS
Don DeLillo desce ao inferno da América em "Submundo"
Margens da paranóia

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Underworld" tem muitos sentidos em inglês. "Submundo" é o mais comum, desde o filme com esse título, dirigido por Josef von Sternberg em 1927, que fixou as convenções do filme de gângster. "Inferno" vem logo a seguir: o mundo inferior, ou mundo dos mortos, regido por Plutão. Plutão e plutônio se associam nos ínferos do novo romance de Don DeLillo, uma narrativa gigantesca, em centenas de páginas e dezenas de vozes, atravessando 40 anos de história americana, sob o signo da bomba.
No centro do livro fica um outro filme: o "Unterwelt" (fictício) de Eisenstein, "restaurado" em 1974 e apresentado para uma platéia de gala no Radio City Music Hall. O filme mudo mostra os efeitos mutiladores de raios atômicos, disparados por um cientista insano, a partir de uma base subterrânea. Livre de uma trama definida, a sequência de imagens vai revelando os rostos deformados de homens sem contexto ou nacionalidade. A devastação da música de Shostakovich serve para sublinhar o "sentido estranho de perda" que toma conta da platéia. Não são só o futuro (no filme) e o passado (na vida real) que se cruzam aqui; há um contraponto mais intrincado entre a ficção, a história e a formação da nossa consciência, habitada por "um mundo fundo de imagens".
"Existe outro mundo dentro do mundo", repetia Lee Harvey Oswald num outro romance ("Libra", 1988). DeLillo é um mestre consumado da paranóia como afeto primário da cultura americana e em "Submundo" "tudo se "conecta", o que não é só artifício literário, mas uma fantasia ameaçadora. "Acredite em tudo. Tudo é verdade", comenta um técnico russo a serviço de uma firma de destruição de lixo atômico, no Cazaquistão. Um de seus equivalentes americanos, 550 páginas e 20 anos antes, já tecera elucubrações cômico-sérias sobre a dietrologia, "ciência do que está por trás". Mas há uma distância bem marcada entre a "tensão neurótica do mundo dominado pela propaganda", a posição paranóide de personagens vivendo seu inferno interno e a inteligência que escreve essas redes, espalhando-se de trás para frente no romance com virtuosismo proustiano.
O livro abre com um prólogo de 60 páginas, que em retrospecto é uma verdadeira indução ao método, mas que faz prospectivamente de cada leitor um espectador eletrizado. Estamos no dia 3 de outubro de 1951, data do primeiro teste nuclear russo; data também de um dos mais dramáticos jogos de beisebol da história, a famosa partida entre Giants e Dodgers, decidida no último lance. A coincidência dos fatos não é casual no livro; a começar pela presença de J. Edgar Hoover no estádio, onde o diretor do FBI é informado do teste russo. Entre seus companheiros naquela tarde estão Frank Sinatra e o comediante Jackie Gleason (tudo verdade, segundo declarou o autor em entrevistas). Está também o menino preto Cotter Martin, que acaba levando a bola do jogo para casa, dando início a uma linhagem de colecionadores, que vão substituindo uns aos outros ao longo do romance. Em certo sentido, o livro é a epopéia dessa bola, que descreve seu arco no tempo, contra o pano de fundo dos dias.
Esse prólogo em si já vale o livro: DeLillo disputa com A.J. Liebling e Norman Mailer a honra de ter criado a maior façanha moderna de prosa esportiva em língua inglesa. Vocabulário, gramática, ritmo, montagem: tudo colabora para um senso de exaltação, que é tanto do espetáculo quanto da escrita. Euforia e tormento se alternam, pontuadas por vinhetas de personagens, dentro e fora do estádio -figuras que vão retornar com previsível obsessão, dentro e fora do livro. "Uma coisa dessas nos guarda, de algum jeito, pelo resto da vida", comenta um radialista, reeditando Wordsworth em pleno Polo Grounds. Páginas rasgadas de revista caem sobre a arquibancada; entre elas, uma reprodução de "O Triunfo da Morte", de Brueghel, observada com interesse melancólico por Hoover. "Meu coração, meu coração", é só o que o outro consegue dizer. Mas está "tudo caindo indelevelmente no passado", no mundo inferior do tempo, cujos efeitos o romance vai acompanhar.
Os talismãs da experiência não são quase nunca o bastante para contrabalançar o efeito essencial, que é o da perda; sintomaticamente, os colecionadores da bola são torcedores do time derrotado. O último na linha e um dos principais personagens é Nick Shay, um menino de família italiana do Bronx. Órfão do pai, um pequeno golpista desaparecido em circunstâncias insondáveis, Nick entra torto na vida, se entrega com paixão ao caos, mas acaba -no fim e no início desse romance circular- gozando a calma possível de uma existência num subúrbio de Phoenix, Arizona. Especialista em armazenamento e processamento de lixo, ele é bem menos do que um expert nas contingências da amizade e do casamento, mas mesmo assim sofre uma dose especial de processamento sentimental.
Como diz outro ítalo-americano, o velho Bronzini, ex-professor de xadrez do seu irmão (hoje físico nuclear) e ex-marido de uma ex-amante do jovem Nick (hoje artista consagrada), casamento é "un po" complicato". Mas há vários exemplos de afeto bem cultivado no panorama universalmente cheio de empatia do romance. Nesses momentos, palavras e sentidos chegam, afinal, a coincidir; e a sabedoria feliz de pequenos atos parece forte o bastante para se contrapor às "profundezas inomináveis" e ao "underground da memória". No universo paranóico da América de DeLillo, onde cada fenômeno é um símbolo de alguma outra coisa e nada é o que parece, o significado só pode ganhar realidade na superfície, naqueles paraísos improváveis de uma relação amorosa, na qual a aparência se dissolve e tudo é o que é.
O fim da ameaça nuclear, com a queda do bloco comunista, deixa um vazio na imaginação moral da cultura e suas "nostalgias complexas" pedem outra forma de agenciamento, contemplada de modo comovente e intensamente americano no romance. Desse ponto de vista, ele se integra à companhia de outros livros recentes, dedicados a pensar o seu país, no final anunciado de uma época: "Na Beleza dos Lírios", de John Updike, "Pastoral Americana", de Philip Roth, e "Mason & Dixon", de Thomas Pynchon. Cada um a seu modo, todos são romances sociais. Deles, o menos oblíquo em seus propósitos é "Submundo", o que não se traduz, em ponto nenhum, em obviedades de estilo, nem mesmo naquelas passagens em que o livro não é mais capaz de sustentar a energia segura da prosa, sua "música calma" (na expressão de Colm Tóibin).
"Toda arte aspira à condição de música", escreveu o crítico vitoriano Walter Pater. "Todo lixo aspira à condição de merda" é uma das versões menos polidas da mesma idéia, entre outras tantas, nesse livro cheio de música e lixo. DeLillo é o mais espantoso ventríloquo da ficção contemporânea, como escreveu Luc Sante ("New York Review of Books", 6/11/97); e exerce aqui um tour de force de tons e vozes. Há tantas figuras e tantos episódios que resenha alguma pode dar conta. Klara Sax e sua instalação de bombardeiros B-52 pintados no deserto. O pai de Cotter Martin, um preto pobre, negociando a bola do filho. O vídeo amador de um homem no volante de um carro, sendo atingido por um tiro; e nossa visita à consciência do próprio atirador. Reencenações maravilhosas do humorista político Lenny Bruce. Bombardeios no Vietnã, crise em Cuba. A "infinita e inspirada catástrofe" de Nova York. Um grafiteiro de trens de metrô; uma freira no Bronx; o famoso baile em branco e preto de Truman Capote, no Hotel Plaza, em 1966. Um arqueólogo do lixo, promotor do turismo nuclear; um colecionador de beisebol, apaixonadamente rendido a uma vida de lembranças da mulher.
Versões e retroversões dessas histórias vão se combinando à medida que se avança para frente no livro, para trás no tempo. A parataxe -a passagem de uma voz, ou uma idéia, a outra, sem transição- chega aqui à apoteose. O estilo conta histórias; e a falta de propósito, ou falta de centro, experienciada nos episódios da atualidade, no início e no fim do romance, recebe assim sua alegoria retórica.
Não é por acaso que um romance tão controlado em suas vertigens reserve uma última ironia para o fim. Ela revolve em torno a mais um sentido de "underworld", uma imagem da vida subterrânea das palavras, imprevisivelmente torcidas em seu destino etimológico. A percepção de que "tudo se conecta", fantasia clássica da paranóia, é invertida com toda a coragem da ingenuidade ao ancorar o romance na palavra "paz", cujo sentido original, glosado no texto, é "reunir, combinar, ajustar". Ninguém acredita, a essa altura, com todo o mundo inferior se acumulando à nossa frente e todo o futuro invisível às nossas costas, que o passado possa ser pacificado tão facilmente. Mas a falta de crença, no caso, vira uma repetição do que há de mais perdido e atormentado no romance e nos condena implicitamente à alternativa: "acreditar na paranóia" e descer, mais uma vez, aos infernos da América de Don DeLillo.


A OBRA
Submundo - Don Delillo. Tradução de Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conj. 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 736 págs. R$39,50.




Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da PUC/SP, autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.
E-mail: nestro@uol.com.br




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