São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Um convidado soviético

O FILÓSOFO LIBERAL ISAIAH BERLIN DESCREVE OS DIAS EM QUE FOI ANFITRIÃO DO COMPOSITOR DMITRI CHOSTAKÓVITCH EM OXFORD, A VIGILÂNCIA DO REGIME SOVIÉTICO SOBRE "SEU" MÚSICO E OS EFEITOS PSICOLÓGICOS DO TOTALITARISMO EM UM GÊNIO ARTÍSTICO

Gemma Levine/Getty Images
O filósofo Isaiah Berlin (1909-97), que nasce no então Império Russo

DA REDAÇÃO

EM 1958 , em plena Guerra Fria, o filósofo e historiador das ideias Isaiah Berlin, um dos principais pensadores liberais do século 20 e crítico implacável do totalitarismo soviético, recebeu em sua casa o compositor Dmitri Chostakóvitch, que, apesar de sua difícil relação com o regime comunista, era apresentado como um símbolo das conquistas artísticas da URSS.
Tanto o compositor russo quanto o francês Francis Poulenc haviam sido convidados pela Universidade de Oxford, onde Berlin lecionava, para receberem o título honorário de doutores em música, daí a viagem.
Na carta a seguir, escrita a um amigo quando a visita já havia terminado, Berlin descreve o seu convidado de fato como um símbolo soviético, mas não no sentido que Stálin desejaria. "É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal", afirma Berlin.

Poulenc e Chostakóvitch já chegaram e se foram. Meu Deus, foi uma agitação.
Para começar, uma grande confusão com o Conselho Britânico, que tinha feito arranjos complicados para uma festa musical para C. [Chostakóvitch] na noite de segunda-feira (nós o receberíamos em casa na terça, e ele receberia seu título honorário com Macmillan e Gaitskell na quarta), mas a embaixada soviética parece estar travando algum tipo de guerra com o Conselho Britânico e praticamente o proibiu de ter contato com o conselho.
O resultado foi que a festa foi promovida sem ele, com muitas recriminações, indignação generalizada, telegramas, cólera e lágrimas. Finalmente ele apareceu, na terça-feira, e foi uma coisa maravilhosa.
Primeiro chegou a nossa sala de estar um jovem oficial soviético muito empertigado e rígido, bastante bonito, que disse: "Eu gostaria de me apresentar. Meu nome é Loginov [Y. Loginov, terceiro-secretário da embaixada soviética em Londres]. O compositor D.D. Chostakóvitch está no carro ali fora. Fomos informados de que os senhores o estariam aguardando às 16h. São 15h agora. O sr. gostaria que ele permanecesse no carro ou o quê?".
Explicamos que o estávamos aguardando às 15h e que seria perfeitamente permissível que entrasse imediatamente. Então o automóvel foi trazido cerimoniosamente para dentro, outro funcionário soviético saltou para fora e, finalmente, surgiu o próprio compositor, baixo, tímido, como um farmacêutico do Canadá, terrivelmente nervoso, com um tique se repetindo quase perpetuamente em seu rosto -nunca em toda minha vida eu tinha visto alguém tão assustado e reprimido.
Ele reapresentou os dois funcionários soviéticos como "meus amigos, meus grandes amigos", mas, depois de ter estado um pouco conosco e de os dois soviéticos terem sido afastados do caminho, nunca mais os descreveu nesses termos, mas apenas como "os diplomatas". A cada vez que os mencionava, uma expressão curiosa de angústia aparecia em seu rosto, mais ou menos como a expressão que às vezes aparece no rosto de Aline [mulher de Berlin]; de fato, na última manhã, quando ele estava esperando a chegada dos dois funcionários e se encontrava em um estado de pânico e desespero absolutos, eu disse em inglês (que ele não entende) a Aline, que também parecia um tanto quanto aflita, que a expressão dos rostos deles era idêntica.
De qualquer maneira, o problema era como conseguir que Chostakóvitch ficasse para o jantar e então fosse à festa musical oferecida na casa dos Trevor-Roper a ele e [Francis] Poulenc [compositor francês, 1899-1963]; e como nos livrarmos dos dois funcionários soviéticos, que lançavam uma sombra terrível sobre o evento.
No final, anunciei, com firmeza, que a universidade [de Oxford] tinha um conjunto rígido de normas a serem obedecidas; por essas normas, um funcionário da universidade iria aparecer em meia hora e levá-los para jantar no New College, depois do que eles seriam autorizados a assistir a uma peça (de David Pryce-Jones), enquanto um arranjo totalmente diferente tinha sido feito para Chostakóvitch.
Depois de olharem um para o outro para ver se estava bem, aceitaram a imposição com calma e abaixaram suas cabeças em submissão. O funcionário da universidade chegou no momento previsto, algum infeliz do New College foi persuadido a encarregar-se dos dois "diplomatas", e Chostakóvitch foi deixado conosco.

 

Sua atitude ficou mais leve. Durante toda a visita, porém, ele pareceu um homem que passara a maior parte de sua vida em algum lugar escuro e sombrio, sob a supervisão de carcereiros de alguma espécie e, sempre que a menor referência era feita a fatos ou personalidades contemporâneos, o velho espasmo doloroso passava por seu rosto, que assumia então uma expressão assombrada ou mesmo perseguida, e ele caía em uma espécie de silêncio apavorado.
Era muito deprimente e aflitivo, e nos fazia gostar dele e sentir muita pena. Na hora devida, os outros convidados chegaram, Poulenc, Cécile [baronesa Cécile de Rothschild, 1913-95, amiga íntima de Aline], os Cecil, Jimmy Smith [James Frederick Arthur Smith, 1906-80, diretor da Royal Opera House], os Trevor-Roper etc. Poulenc se mostrou encantador com C., e este degelou visivelmente sob a influência benigna.
Jantamos e então fomos à sala de estar dos Trevor-Roper [o historiador Hugh Trevor-Roper e sua mulher estavam encarregados de hospedar Francis Poulenc].
Ali, C. imediatamente se dirigiu ao canto mais próximo e sentou-se, contraído como um porco-espinho, ocasionalmente dando um sorriso fraco quando eu fazia algum chiste especialmente ousado.
Sua sonata para violoncelo foi tocada por um jovem e muito belo violoncelista do Ceilão [atual Sri Lanka]; ele ouviu com calma, me disse que o violoncelista era bom e o pianista, muito ruim (o que era absolutamente verdade), e se queixou com o violoncelista, dizendo que este errara em dois trechos. O violoncelista enrubesceu, mostrou a partitura, e C. viu que a partitura confirmava o que o violoncelista tocara.
Não podia entender como isso podia ser, até, de repente, se dar conta de que ela tinha sido editada por Piatigorski [1903-76, violoncelista], que, é claro, alterara a partitura arbitrariamente para agradar a si mesmo; foi esse o momento em que C. chegou mais perto de se enfurecer de verdade, tirou um lápis e riscou violentamente as falsificações de Piatigorski, substituindo-as por sua própria versão original. Depois disso se acalmou e retornou a seu cantinho.
Em seguida, canções de Poulenc foram cantadas pela senhorita Margaret Ritchie [nome artístico da soprano Mabel Willard Ritchie, 1902-69], absurdamente, à maneira inglesa vitoriana ridícula. Chostakóvitch se contorceu um pouco, mas Poulenc, muito educado, muito mundano, a parabenizou e fez caretas para os outros pelas costas dela.
Depois disso, foi tocado um movimento da sonata de Poulenc para violoncelo, para aplacá-lo, e então houve um silêncio, e eu disse a C. que todos ficariam muito felizes se ele também tocasse um pouco.
Sem pronunciar palavra, foi ao piano e tocou um prelúdio e fuga -um dos 24 que compôs, como Bach- com tamanha magnificência, profundidade e paixão, e a própria obra era tão maravilhosa, tão séria, original e inesquecível, que tudo de Poulenc saiu voando pela janela e não pôde ser recapturado.
Poulenc chegou a tocar alguma coisa de "Les Biches" ["As Corças", balé de 1924] e mais alguma coisa, mas a sua música não pôde mais ser ouvida -lamentavelmente, a decadência do mundo ocidental se tornara demasiado aparente.
Enquanto tocava, o rosto de C. realmente se transformara; a timidez e o pavor tinham desaparecido, e um olhar de tremenda intensidade e, realmente, inspiração, apareceu; imagino que é assim que os compositores do século 19 deviam parecer quando tocavam. Mas não acho que esse olhar tenha sido muito visto no mundo ocidental no século 20.
Depois disso, deixou de tocar, e várias pessoas quiseram ser apresentadas. Ele mostrou ao primeiro violinista da Orquestra Philarmonia como tocar o segundo e o terceiro movimentos de seu concerto; falou a Desmond Shawe-Taylor [crítico musical do "Sunday Times"] sobre seus planos futuros; deu autógrafos, comeu e bebeu.
Poulenc, embora tivesse sido bem tratado, se sentiu um tanto quanto relegado, um pouco como Cocteau quando Picasso está presente. Todo mundo sentiu que foi uma ocasião notável, singular e comovente e, embora ele não falasse inglês, todos, menos os mais indiferentes e filisteus, sentiram-se comovidos e o manifestaram mais tarde de diversas maneiras. Foram de fato uma ocasião e uma experiência singulares.
Depois disso, em casa, ele falou um pouco, reclamou da falta de um piano, discorreu sobre seu gosto musical e foi dormir quase feliz, penso.
Enquanto isso, seus dois guardiões foram a uma festa de estudantes do New College, então ao baile Exeter, divertiram-se muitíssimo, trocaram insultos e gracejos com estudantes e membros graduados da universidade e, obviamente, se divertiram. Revelaram ser muito simpáticos -podiam ter sangue húngaro pingando das mãos [referência à repressão soviética ao levante popular ocorrido, em 1956, na Hungria], mas, pessoalmente, eram camponeses ingênuos, um tanto quanto inexpressivos, que, evidentemente, não hesitariam em nos matar a tiros atendendo a ordens superiores, mas que ao mesmo tempo tinham um certo charme.

 

No dia seguinte, o tique nervoso de C. recomeçou, ele passou pelos horrores da cerimônia de entrega do título, ficou terrivelmente constrangido ao conhecer várias pessoas que falavam russo no almoço no All Souls, a todo momento buscava refúgio comigo, que, afinal, era representante credenciado da universidade, cadastrado como tal pela embaixada soviética.
As pessoas lhe faziam perguntas intoleráveis como "o que aconteceu com suas segunda, terceira e quarta sinfonias?" -obras admiráveis condenadas pelo regime. Ele respondia, embaraçado, "não foram um grande sucesso", o que era literalmente verdade, mas sofria ao falar.
Vários russos tentaram conversar com ele, naturalmente, e ele conseguiu se afastar com enorme esforço e agonia.
Finalmente o levamos para casa, o vestimos num traje formal e o enviamos para jantar no Christ Church com os outros agraciados com títulos honorários, como o primeiro-ministro [Harold Macmillan], Gaitskell etc. Ele voltou para casa mais morto do que vivo, mas se levantou cedo pela manhã e nos ofereceu as partituras de três obras com inscrições apropriadas. Chegou a falar um pouco sobre sua mulher e seus filhos.
Às 10h, os guardiões deveriam vir buscá-lo, mas se atrasaram. Ele entrou em estado de pânico nervoso, me fez ligar três vezes para o hotel Mitre, começou a esfregar as mãos em desespero, se perguntou o que aconteceria se chegasse tarde à embaixada, como poderia explicar o atraso, se perguntou se seus guardiões o teriam abandonado de alguma maneira ou se algum erro teria sido cometido pelo qual ele seria culpado, e mergulhou num estado neurótico lamentável.
Mas os guardiões apareceram, explicando que tinham se atrasado porque foram comprar guias para Oxfordshire na Blackwell, e o levaram embora. Fui convidado para almoçar com ele na embaixada soviética no dia seguinte, mas não aceitei o convite.
C. já me vira o suficiente e sabia o bastante sobre mim para se dar conta de que eu compreendia sua posição demasiado bem e que pensava que seria melhor para ele encontrar todos os músicos britânicos etc. que ele conheceria em Londres, com a ajuda de intérpretes, sem o constrangimento da presença de um observador que compreendia suas reações um pouco bem demais. Então, por uma espécie de sensibilidade -acho que você concordará que não foi descabida-, eu recusei e acabou assim.
A coisa toda me deixou com uma sensação curiosa de como é viver em um século 19 artificial -pois é isso o que Chostakóvitch faz- e que efeito extraordinário a censura e a prisão exercem sobre o gênio criativo. Elas o limitam, mas o aprofundam.
Preciso parar por aqui e ir almoçar com Peter e seus amigos da escola, reunidos lá fora em volta da mesa, mas o rosto de C. sempre vai me assombrar um pouco. É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal, quase apavorado diante da ideia de ser mergulhado em alguma outra vida, com todos os poderes de indignação, resistência e protesto removidos, como uma abelha da qual se retira o ferrão, pensando que a infelicidade é felicidade e que a tortura é vida normal.
Com muito afeto, Isaiah

A íntegra deste texto foi publicada na "New York Review of Books".
Esta carta está incluída em "Enlightening - Letters 1946-1960" (Esclarecedor, org. Henry Hardy e Jennifer Holmes, lançamento da editora Chatto & Windus).
Tradução de Clara Allain.



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