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BRASIL 500 D.C.
A essência da filosofia oscila conforme fazemos oscilar a essência da linguagem
Dois estilos de Hegel
BENTO PRADO JR.
especial para a Folha
Dois juízos de valor, rigorosamente opostos, podem, no entanto, ser convergentes, não apenas
na identificação do objeto do julgamento, mas também de seu
próprio sentido. O que pode parecer paradoxal: como convergir na
circunscrição do "sentido", divergindo na atribuição de valor? É o
que podemos ver comparando
dois julgamentos opostos a respeito do valor da filosofia de Hegel.
Em primeiro lugar, o julgamento duro de Hans Reichenbach:
"Hegel se diferencia de Platão e de
Kant na medida em que não partilha a admiração que ambos têm
pelas ciências matemáticas; mas
se diferencia deles, também, porque não alcança a profundidade
na consideração dos problemas.
Embora repita, isso sim, todos os
erros deles, desenvolve-os de uma
forma tão ingênua que se pode estudar seu sistema como um
exemplo do que a filosofia não deve ser. O sistema de Hegel depende, para seu êxito, de sua estranha
linguagem". Em segundo, o de
Kierkegaard: "Enquanto os filósofos precedentes haviam quase
chegado à idéia de que a língua
existe para esconder o pensamento (de tanto que eram incapazes
de exprimir "das Ding an sich"/a
coisa em si), Hegel tem ao menos
o mérito de mostrar a imanência
do pensamento na linguagem,
que ele se manifesta nela -a outra filosofia limitava-se a tatear
em torno da coisa...".
O curioso na justaposição desses dois textos é como transparece, por sob a oposição dos juízos
de valor, uma mesma estrutura na
maneira de situar o objeto julgado. É a mesma razão que fundamenta num caso o mérito, e no
outro, o demérito da obra. Mais
ainda, essa razão reside numa
maneira semelhante de situar a
obra de Hegel, como desvio da
(ou na) tradição da filosofia. Ao
criarmos este imaginário diálogo,
inventamos uma situação particularmente dialética que é preciso
compreender.
Num caso, é por transgredir os
limites de um certo modelo tradicional da Razão (que se guia pelo
paradigma da matemática) que
Hegel é acusado de abandonar o
campo da filosofia. E essa degradação da filosofia, de que se acusa
a dialética, passa despercebida
aos olhos do leitor desatento por
ser revestida por uma linguagem
obscura que simula a profundidade. Numa palavra, a falta de clareza da linguagem e a falta do rigor
lógico se ajustam como as duas faces de uma moeda.
No outro, é por mergulhar diretamente na "coisa em si", isto é,
por transgredir os limites do entendimento matemático, que Hegel devolve dignidade à filosofia. E
essa restauração da filosofia aparece como a superação da consciência que visa a linguagem e o
pensamento como instância distintas, como a descoberta da imanência do pensamento na linguagem. Numa palavra, a complexidade da linguagem é signo da redescoberta da própria linguagem
como a pátria da filosofia, mesmo
quando parece delirar.
Mas o diálogo imaginário que
criamos entre Reichenbach e
Kierkegaard -e a discordante
concórdia que estabelece- não é
muito misterioso e pode ser facilmente compreendido. Uma mesma descrição e valorização diferente só podem provir de concepções diferentes da filosofia, de sua
história ou, mais precisamente,
do que significa ter sentido. É claro que espíritos tão desiguais só
poderiam descrever de modo parecido a "heresia" de Hegel (contra o próprio, que provavelmente
se consideraria pouco desviante
da tradição e da Razão, ele que se
sentia tão bem na história da filosofia, disciplina que ajudou a
construir), dando-lhe "notas"
muito diferentes, porque partiam
de concepções muito diferentes
da filosofia, da linguagem e do
significado da expressão "ter sentido".
Mais radicalmente, nosso diálogo imaginário põe em cena dois
personagens que usam a linguagem e fazem filosofia de modo diferente. Quer dizer, contrapõe
dois estilos de filosofia, que se tornam um pouco mais visíveis e
comparáveis na discordante concórdia que os liga numa situação
muito precisa: no julgamento de
uma obra singular. Esqueçamos
Hegel e tentemos visar o ponto de
onde divergem os juízos dos nossos dois personagens.
Digamos que há, pelo menos,
duas maneiras de compreender o
"sentido do sentido". Uma, digamos, descritivista, outra expressivista. No primeiro caso (Reichenbach), uma proposição é significativa (ou pode sê-lo) caso, tendo
forma lógica, refira-se a um fato
possível; por exemplo: "Está chovendo". No segundo (Kierkegaard), um enunciado terá sentido caso consiga exprimir para alguém o que se quer dizer; por
exemplo: "Creio em ti".
Num caso, a boa linguagem é a
película mais transparente possível, que separa ou une um sujeito
cognoscente a um fato. Na outra,
ela é essa mesma película, mas interposta agora entre duas subjetividades. Digamos que a linguagem oscila entre dois pólos: descrição de objetividades e expressão da subjetividade: podemos
entendê-la à luz de um e de outro
pólo e, segundo nossa escolha,
perderemos e ganharemos espaços diferentes. Assim como a linguagem será boa ou má segundo
critérios diferentes: como instrumento descritivo ou expressivo.
É claro que a filosofia não tem
nada a ver com a descrição de fatos ou com a expressão de estados
de alma: a ciência empírica e as
artes desempenham essas tarefas.
Mas é claro, também, que a própria essência da filosofia oscilará
conforme fizermos oscilar a essência da linguagem entre esses
pólos.
Num belo ensaio publicado logo após a Segunda Guerra Mundial, sob o título de "Os Filósofos e
Sua Linguagem", Yvon Belaval
terminava sua "estilística do discurso filosófico" (termos que são
meus e não do autor) detectando
duas linhas "que respondem a
dois tratamentos da linguagem:
uma vai em direção às coisas e usa
as palavras como signos; a outra,
na perspectiva de outrem, ou se se
prefere, da dialética, serve-se das
palavras como de expressões do
pensamento".
É bem a disjunção aí descrita
que reencontramos na raiz do
diálogo imaginário entre Reichenbach e Kierkegaard. Visto
como sistema de signos que se
candidata a descrever fatos, o Logos hegeliano é lamentável (o que
é suficiente para que alguns grandes espíritos tendam a excluí-lo
da esfera da filosofia). Visto de
outras maneiras -mesmo quando discordamos dele, como é o
caso de Kierkegaard-, não é possível negar o seu estatuto legitimamente filosófico.
Com estes parágrafos fizemos
pouco mais do que convidar o leitor a ler o livro de Belaval. Mas talvez, além disso, eles nos permitam encerrar, como numa fábula,
com uma espécie de "moral" ou,
menos pretensiosamente, uma
interrogação: há muitas concepções filosóficas das condições da
significação, todas respeitáveis,
mas a filosofia não fica um pouco
empobrecida quando uma delas
nos leva a perder a filosofia de Hegel?
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São Carlos e professor emérito da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C." da Folha.
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