São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em "O Primeiro Dia", Daniela Thomas e Walter Salles filmam um país sem clemência
Mas dizei uma só palavra...

JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha

Daniela Thomas e Walter Salles voltam a trabalhar juntos, depois de "Terra Estrangeira". "O Primeiro Dia" é um filme curto, feito para a rede de televisão franco-germânica Arte. A história se passa no Rio, preparado para o espetáculo dos fogos de artifício da virada do milênio. Nesse cenário, uma mulher da classe média carioca encontra, por acaso, um homem fugido da polícia. A mulher -Fernanda Torres, como sempre, além dos adjetivos- está prestes a se suicidar, após uma decepção amorosa. O homem -Luiz Carlos Vasconcellos, ótimo no papel- luta para preservar a vida, depois de um acerto de contas entre bandidos e policiais envolvidos com droga e delação. Por momentos, um vê no outro a humanidade que a violência de classe escondeu; em poucos momentos, o sonho é desfeito pela mesma teia de acaso e ferocidade que os aproximou.
O substrato dramático do filme se apóia nesse "Brief Encounter". Mas, diferentemente da obra-prima de David Lean, o "Desencanto" brasileiro não é feito de gestos ou sentimentos polidos. Nos barracos e na "selva de pedra" não há lugar para sussurros. Em "O Primeiro Dia", os personagens são pedaços soltos da "cidade partida", forçados a se confrontarem em situações-limites. Tudo, portanto, é estranhamento e rispidez. Entregues a si mesmos, empurrados além do suportável, eles procuram arrancar do nada algo que dê sentido à vida. Ambos são sobreviventes, um da guerra, outro do amor, e, como "Os Imorais", de Stephen Frears, estão prontos a tomar o que lhes cai nas mãos, com a urgência dos que se acostumaram a perder.
O cinema brasileiro raramente mostrou com tal delicadeza a brutalidade. Daniela Thomas e Walter Salles, porém, não querem sacudir, de modo gratuito, nossas consciências. Também não se contentam em ilustrar catecismos de "boas obras" ou teses acadêmicas sobre a divisão social. Retomam o problema e insistem em perguntar, até a última imagem, por que nos tornamos assim? Qual o sentido do absurdo brasileiro, se é que pode haver sentido no absurdo?
Não por acaso, três dos mais belos momentos do filme começam e terminam no espanto e na interrogação. No primeiro, de uma beleza comovente, Nelson Sargento faz da desgraça esperança, por meio de uma numerologia louca, entrecortada pela melodia de um samba. No cárcere escuro, o espírito recobra a potência e engrandece uma existência que parecia reduzida ao mínimo. Como, perguntam os autores, um "condenado da terra" cria o ímpeto de esperar, enquanto as consciências felizes desistem de toda esperança?
No segundo, Fernanda Torres e Luiz Carlos Vasconcellos se abraçam e fazem amor em Copacabana iluminada por fogos. O espoucar dos fogos evoca, de modo quase inevitável, o ruído de troca de tiros. O belíssimo trecho romântico da música que acompanha a cena é como que salpicado de sangue, mostrando que o amor e a morte são fios de uma mesma trama. Mas não do modo que a convenção literária nos habituou a ver. Não se trata de fazer "psicologia profunda" com os clichês do senso comum. Repisar que o desvario, a desordem e a desmedida são a raiz infernal do amor só surpreende quem nunca viu uma banca de revistas ou um manual de sexologia do primeiro grau. Tais imagens já foram coloridas e, agora, já estão sendo digitalizadas pelos técnicos de Hollywood.
A questão é outra, mais pedestre e brasileira: é possível amar em paz, à sombra dos AR-15 e AK-47? Emoções gentis resistem à torpeza e à indiferença? Quem tem razão, o que suspeita do amor viçoso em terra estéril ou o que acredita em amor à prova de balas? Nenhuma resposta é fácil, nenhuma está pronta, nenhuma pode ser deixada para amanhã.
No terceiro momento, enfim, o coração do filme. É a vez do solo de Matheus Nachtergale. Daniela Thomas e Walter Salles propõem o mais difícil, Nachtergale aceita o desafio. A aposta é dizer "com lábios hesitantes e som mutilado" por que "lutam e se empenham para o que certo seria". O ator entendeu o recado e o resultado é magnífico. Só a metáfora poética de Elizabeth Barret Browning poderia condensar o efeito estético do que nos é mostrado. Em um "Dies Irae" às avessas, a criatura monta o processo do criador. Sem liturgia, naves góticas ou coros de anjos, Nachtergale recita a própria oração fúnebre. Cada frase é uma blasfêmia, cada pausa uma profanação. A mais sagrada das preces cristãs é dita entre os dentes, numa fusão sacrílega de réquiem e "magnificat".
Ninguém chora os miseráveis. "Marginal que é marginal" morre sozinho, ali onde a traição alcança e a desova é fácil. A misericórdia, entre nós, também é "concentrada" e não sobra para mortos sem grife. A contrição dos "sem nada" é, portanto, insolente e desbocada. É protesto e sarcasmo, raiva e acusação. Como exigir piedade de quem viveu fora dela?
Mas, eis o paradoxo. O sentido do que é dito depende da forma como se diz. Ao mesmo tempo em que escutamos "seja feita Tua má vontade", nas entrelinhas ouvimos "por que me abandonaste?". A injúria de joelhos vai além do enunciado e se torna pedido de amor e consolo. Pois, queixar-se de Deus a Deus é, "ipso facto", reconhecê-lo; falar de Sua ausência é reclamar Sua presença; acusá-Lo de Suas faltas é pressupor Sua bondade. Nas brechas da oração blasfema, a mágoa revela seu último sentido: "Mas dizei uma só palavra...".
O desfecho da cena confirma a prece. No mundo sem Outro, a clemência é breve, o rancor duradouro. A partir dessa sequência, tudo corre para o desastre previsível. O filme termina, nossas dúvidas começam: o sacrifício de um basta para a redenção de muitos? O rosto do próximo só é visível se o perdemos? Favela e asfalto só se aproximam na ilusória verdade da arte? Finalmente, como mostrou o economista Ricardo Henriques, os 56 milhões com R$ 105 por mês poderão, um dia, ver um "primeiro dia" que não seja véspera do último?
"O Primeiro Dia" não é um filme amargo, ressentido ou derrotista. É um retrato do presente doado aos homens presentes. Seu fim é o compromisso com o outro; seu tom, o de Sêneca em "Medéia": "Leve é a mágoa que se pode dissimular; grandes dores não se escondem".
Daniela Thomas e Walter Salles, uma vez mais, acertaram. Combinaram o melhor da arte com o melhor do humano. Pensando bem, não há novidade nisso. Quem viu "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil" aprendeu que o grande artista é sempre mais que "um grande artista", é um generoso artista.


Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br


Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - Bento Prado Jr.: Dois estilos de Hegel
Próximo Texto: Luiz Felipe Pondé: Zoopolítica
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.