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Em "O Primeiro Dia", Daniela Thomas e Walter Salles filmam um país sem clemência
Mas dizei uma só palavra...
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
Daniela Thomas e Walter Salles
voltam a trabalhar juntos, depois
de "Terra Estrangeira". "O Primeiro Dia" é um filme curto, feito
para a rede de televisão franco-germânica Arte. A história se passa no Rio, preparado para o espetáculo dos fogos de artifício da virada do milênio. Nesse cenário,
uma mulher da classe média carioca encontra, por acaso, um homem fugido da polícia. A mulher
-Fernanda Torres, como sempre, além dos adjetivos- está
prestes a se suicidar, após uma decepção amorosa. O homem
-Luiz Carlos Vasconcellos, ótimo no papel- luta para preservar a vida, depois de um acerto de
contas entre bandidos e policiais
envolvidos com droga e delação.
Por momentos, um vê no outro a
humanidade que a violência de
classe escondeu; em poucos momentos, o sonho é desfeito pela
mesma teia de acaso e ferocidade
que os aproximou.
O substrato dramático do filme
se apóia nesse "Brief Encounter".
Mas, diferentemente da obra-prima de David Lean, o "Desencanto" brasileiro não é feito de gestos
ou sentimentos polidos. Nos barracos e na "selva de pedra" não há
lugar para sussurros. Em "O Primeiro Dia", os personagens são
pedaços soltos da "cidade partida", forçados a se confrontarem
em situações-limites. Tudo, portanto, é estranhamento e rispidez.
Entregues a si mesmos, empurrados além do suportável, eles procuram arrancar do nada algo que
dê sentido à vida. Ambos são sobreviventes, um da guerra, outro
do amor, e, como "Os Imorais",
de Stephen Frears, estão prontos a
tomar o que lhes cai nas mãos,
com a urgência dos que se acostumaram a perder.
O cinema brasileiro raramente
mostrou com tal delicadeza a brutalidade. Daniela Thomas e Walter Salles, porém, não querem sacudir, de modo gratuito, nossas
consciências. Também não se
contentam em ilustrar catecismos
de "boas obras" ou teses acadêmicas sobre a divisão social. Retomam o problema e insistem em
perguntar, até a última imagem,
por que nos tornamos assim?
Qual o sentido do absurdo brasileiro, se é que pode haver sentido
no absurdo?
Não por acaso, três dos mais belos momentos do filme começam
e terminam no espanto e na interrogação. No primeiro, de uma beleza comovente, Nelson Sargento
faz da desgraça esperança, por
meio de uma numerologia louca,
entrecortada pela melodia de um
samba. No cárcere escuro, o espírito recobra a potência e engrandece uma existência que parecia
reduzida ao mínimo. Como, perguntam os autores, um "condenado da terra" cria o ímpeto de
esperar, enquanto as consciências
felizes desistem de toda esperança?
No segundo, Fernanda Torres e
Luiz Carlos Vasconcellos se abraçam e fazem amor em Copacabana iluminada por fogos. O espoucar dos fogos evoca, de modo
quase inevitável, o ruído de troca
de tiros. O belíssimo trecho romântico da música que acompanha a cena é como que salpicado
de sangue, mostrando que o amor
e a morte são fios de uma mesma
trama. Mas não do modo que a
convenção literária nos habituou
a ver. Não se trata de fazer "psicologia profunda" com os clichês do
senso comum. Repisar que o desvario, a desordem e a desmedida
são a raiz infernal do amor só surpreende quem nunca viu uma
banca de revistas ou um manual
de sexologia do primeiro grau.
Tais imagens já foram coloridas e,
agora, já estão sendo digitalizadas
pelos técnicos de Hollywood.
A questão é outra, mais pedestre
e brasileira: é possível amar em
paz, à sombra dos AR-15 e AK-47?
Emoções gentis resistem à torpeza e à indiferença? Quem tem razão, o que suspeita do amor viçoso em terra estéril ou o que acredita em amor à prova de balas? Nenhuma resposta é fácil, nenhuma
está pronta, nenhuma pode ser
deixada para amanhã.
No terceiro momento, enfim, o
coração do filme. É a vez do solo
de Matheus Nachtergale. Daniela
Thomas e Walter Salles propõem
o mais difícil, Nachtergale aceita o
desafio. A aposta é dizer "com lábios hesitantes e som mutilado"
por que "lutam e se empenham
para o que certo seria". O ator entendeu o recado e o resultado é
magnífico. Só a metáfora poética
de Elizabeth Barret Browning poderia condensar o efeito estético
do que nos é mostrado. Em um
"Dies Irae" às avessas, a criatura
monta o processo do criador. Sem
liturgia, naves góticas ou coros de
anjos, Nachtergale recita a própria oração fúnebre. Cada frase é
uma blasfêmia, cada pausa uma
profanação. A mais sagrada das
preces cristãs é dita entre os dentes, numa fusão sacrílega de réquiem e "magnificat".
Ninguém chora os miseráveis.
"Marginal que é marginal" morre
sozinho, ali onde a traição alcança
e a desova é fácil. A misericórdia,
entre nós, também é "concentrada" e não sobra para mortos sem
grife. A contrição dos "sem nada"
é, portanto, insolente e desbocada. É protesto e sarcasmo, raiva e
acusação. Como exigir piedade de
quem viveu fora dela?
Mas, eis o paradoxo. O sentido
do que é dito depende da forma
como se diz. Ao mesmo tempo
em que escutamos "seja feita Tua
má vontade", nas entrelinhas ouvimos "por que me abandonaste?". A injúria de joelhos vai além
do enunciado e se torna pedido de
amor e consolo. Pois, queixar-se
de Deus a Deus é, "ipso facto", reconhecê-lo; falar de Sua ausência
é reclamar Sua presença; acusá-Lo de Suas faltas é pressupor Sua
bondade. Nas brechas da oração
blasfema, a mágoa revela seu último sentido: "Mas dizei uma só
palavra...".
O desfecho da cena confirma a
prece. No mundo sem Outro, a
clemência é breve, o rancor duradouro. A partir dessa sequência,
tudo corre para o desastre previsível. O filme termina, nossas dúvidas começam: o sacrifício de
um basta para a redenção de
muitos? O rosto do próximo só é
visível se o perdemos? Favela e
asfalto só se aproximam na ilusória verdade da arte? Finalmente,
como mostrou o economista Ricardo Henriques, os 56 milhões
com R$ 105 por mês poderão, um
dia, ver um "primeiro dia" que
não seja véspera do último?
"O Primeiro Dia" não é um filme amargo, ressentido ou derrotista. É um retrato do presente
doado aos homens presentes. Seu
fim é o compromisso com o outro; seu tom, o de Sêneca em
"Medéia": "Leve é a mágoa que se
pode dissimular; grandes dores
não se escondem".
Daniela Thomas e Walter Salles, uma vez mais, acertaram.
Combinaram o melhor da arte
com o melhor do humano. Pensando bem, não há novidade nisso. Quem viu "Terra Estrangeira"
e "Central do Brasil" aprendeu
que o grande artista é sempre
mais que "um grande artista", é
um generoso artista.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício"
(Relume Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na
seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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