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Peter Sloterdijk defende um código de planejamento biogenético do homem
Zoopolítica
LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha
Numa época como a que estamos vivendo -em que as incertezas com relação a crenças ideológicas, associadas a importantes
fatos pontuais, como a recente vitória da direita na Áustria, afligem
o mundo-, idéias pronunciadas
em alemão sobre a inevitabilidade
da seleção experimental genética
podem seguramente fazer reviver
as sombras do nazismo.
É o que está ocorrendo na Alemanha, França e outros países europeus, depois que o filósofo Peter Sloterdijk, considerado da
"nova geração" de intelectuais
alemães, apresentou sua conferência "Regras para um Parque
Humano - Uma Resposta à Carta
de Heidegger sobre o Humanismo", em fins de julho. Nela, Sloterdijk abordava a crise do humanismo ocidental e a delicada questão da programação (ou seleção)
genética de seres humanos.
As idéias de Sloterdijk, divulgadas em um seminário consagrado
a Heidegger, provocaram uma
violenta controvérsia ao serem difundidas pela mídia. O filósofo foi
duramente criticado por seu suposto nazismo e elitismo. "Visão
de horror fascista", "renascimento do Ocidente via espírito de laboratório", "intelectual desesperado em delírio" -essas foram
algumas das expressões utilizadas
pela revista alemã "Der Spiegel",
que dedicou a sua capa de 27/9/99
ao assunto. O "Die Zeit" não foi
menos veemente: "(Sloterdijk)
enterra a época moderna em fantasias de um realismo de terror".
Em termos filosóficos, a discussão se abriu em duas amplas frentes. A primeira se refere à seleção
genética, e a outra, ao "esgotamento" da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e sua incapacidade
de oferecer uma práxis filosófica
engajada em temas atuais da sociedade, na opinião de Sloterdijk.
O seu "ataque" à Escola de Frankfurt completou-se com a carta
aberta "A Teoria Crítica Está
Morta".
Para Sloterdijk -que utiliza a
palavra "parque" aludindo à idéia
de "zoológico", como ele próprio
reconhece-, nossa tentativa de
programar a história por meio de
uma engenharia social qualquer
faliu. No entanto, o programa de
controle e aperfeiçoamento da
natureza (humana) continua -e
muito bem, segundo ele.
A partir de Platão (a referência
inicial de Sloterdijk é o diálogo "O
Político", do filósofo grego, leia
trecho da palestra à pág. 5-6), o
alemão defende que a filosofia humanista ocidental visou ao longo
da sua história criar um "parque"
(uma sociedade) onde, de um lado, haveria os seres humanos a serem "cultivados/selecionados",
por não serem os sábios, e de um
outro, os próprios sábios, que estariam habilitados pela arte da leitura e da reflexão (a própria filosofia) a dirigirem a vida dos primeiros.
O "parque humano" é um "parque temático": seu tópico essencial conteria o projeto (de formação, educação ou "pastoreio") humanista republicano platônico.
Platão teria estabelecido as bases da necessidade de uma espécie
de "antropotécnica", por meio da
qual as "pulsões animais" do homem seriam metodicamente postas sob jugo das "pulsões domesticantes" (aqui, Sloterdijk refere-se a Freud), a fim de se atingir um
"Estado perfeito".
A habilidade dos sábios apontada por Platão teria, no entanto, ao
longo da história do humanismo,
passado da leitura ("lesen", em
alemão) à seleção ("auslesen"). Isso, porque a arte mesma do "cultivo" humanista teria passado de
uma necessidade de discernimento "intelectual formativo" para a
de discernimento "material/experimental formativo". Ou seja, teria se estendido das categorias estritamente filosóficas para as práticas políticas e científicas.
Segundo Heidegger, o destino
do homem ocidental é a técnica,
ainda que isso seja uma espécie de
desgraça. Para Sloterdijk, da leitura ("lesen") à seleção ("auslesen"), o humanista ocidental característico de uma época tecnicista como esta acaba por se revelar como alguém que busca estar
constantemente do lado dos "selecionadores/formadores".
A fala de Sloterdijk deságua,
portanto, na tentativa de se pensar a consequência do desenvolvimento da técnica e de se discutir
um código antropotécnico (de seleção). A engenharia genética não
seria senão o humanismo revelado em sua face mais ativa e poderosa: a técnica de aperfeiçoamento biológico (pensado em um horizonte puramente materialista)
do homem.
Para Sloterdijk, a reação "horrorizada" da "boa consciência" humanista contra a engenharia genética não passaria de uma tentativa de silenciar sobre a técnica seletiva, a fim de poder realizá-la
exatamente em silêncio: o horror
na verdade é cinismo, diz ele, evocando seu livro "Crítica da Razão
Cínica" (1983).
Sloterdijk entende sua obra filosófica como um ato terrorista (ou
um "ato de intoxicação voluntária", tema de um de seus últimos
livros). Para ele, o pensamento
deve produzir mal-estar, de maneira que, assim, o conceito tenha
corpo (afeto), pois o homem é um
ser do conflito essencial (pulsões
animais x pulsões domesticantes). Assim, por meio da "corporificação" do desconforto, tal conflito ganha voz na reflexão.
A posição de Habermas
A postura filosófica de Sloterdijk a partir da conferência se revelou de imediato como um distanciamento (assumido) com relação à Escola de Frankfurt, tradição filosófica dominante no pós-guerra alemão e representada
atualmente pelo pensador Jürgen
Habermas.
Aqueles que se alinham à Escola
de Frankfurt apontam em Sloterdijk justamente a falta de uma reflexão crítica a respeito de suas
próprias idéias sobre engenharia
genética. Refletir de forma crítica
aqui seria ter consciência de que
todo conhecimento é social e molda, por sua vez, o social. Pensar é
estabelecer estruturas abertas de
reflexão, porque se referem a formas atuantes no mundo, e que se
constituem na sociedade -que
por sua vez condiciona a própria
consciência social e psicológica.
Em depoimento ao "Die Zeit",
Habermas afirmou que é exatamente devido ao fato de Sloterdijk
ter nascido no pós-guerra que ele
deve nos preocupar: suas idéias
poderão se constituir -por meio
de um discurso desejado pela nova geração de alemães que anseiam pelo "esquecimento voluntário" do passado nazista- em
um novo modelo para a intelectualidade alemã.
Para o frankfurtiano, não se pode falar na Alemanha em técnicas
de manipulação experimental de
seres humanos sem levar em conta a história do país e seu "trauma" histórico. Habermas afirmou
que Sloterdijk "estaria jogando
areia nos olhos das pessoas" ao
tentar se fazer passar por um inofensivo "biomoralista", quando
na realidade, socialmente e no
que se refere à construção das
consciências, não existem "idéias
inofensivas", sobretudo as que
trafegam pelo doloroso passado
alemão. É importante frisar que o
perigo apontado por Habermas é
real em todo o Ocidente, onde se
propaga o desejo de "deshistoricizar" o mundo e de transformar o
passado em "antiguidade de consumo". Sloterdijk, no entanto,
respondeu a Habermas afirmando que a posição dele refletia a
"paranóia" típica de uma geração
que "um dia foi (ela mesma) nazista" e se aterroriza com o próprio passado.
Para Habermas, o "parque" de
Sloterdijk prestaria no limite um
desserviço à consciência alemã,
por tratar de um tema como a
programação genética de modo
pretensamente "desencarnado",
tentando criar a ilusão de que se
pode teorizar sobre engenharia
genética depois do nazismo sem
se implicar social e politicamente
com o horror nazista.
Na sua opinião, é como se Sloterdijk "esquecesse" que vivemos
em sociedade e que o homem é
um ser político. Em carta enviada
ao "Die Zeit" e divulgada na rede
de TV alemã ARD, Habermas escreveu: "Creio que Sloterdijk,
com sua palestra genuinamente
fascista, transpôs uma barreira
considerada tabu entre intelectuais no pleno gozo de suas faculdades mentais".
Na entrevista abaixo, feita por
telefone, Sloterdijk fala sobre seu
rompimento com Habermas e expõe suas idéias sobre a inevitabilidade do planejamento genético
do homem. Convidado pela Folha a comentar a conferência de
Sloterdijk, o filósofo Jürgen Habermas afirmou que preferia não
discuti-la.
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