São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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Peter Sloterdijk defende um código de planejamento biogenético do homem
Zoopolítica

LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha

Numa época como a que estamos vivendo -em que as incertezas com relação a crenças ideológicas, associadas a importantes fatos pontuais, como a recente vitória da direita na Áustria, afligem o mundo-, idéias pronunciadas em alemão sobre a inevitabilidade da seleção experimental genética podem seguramente fazer reviver as sombras do nazismo.
É o que está ocorrendo na Alemanha, França e outros países europeus, depois que o filósofo Peter Sloterdijk, considerado da "nova geração" de intelectuais alemães, apresentou sua conferência "Regras para um Parque Humano - Uma Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo", em fins de julho. Nela, Sloterdijk abordava a crise do humanismo ocidental e a delicada questão da programação (ou seleção) genética de seres humanos.
As idéias de Sloterdijk, divulgadas em um seminário consagrado a Heidegger, provocaram uma violenta controvérsia ao serem difundidas pela mídia. O filósofo foi duramente criticado por seu suposto nazismo e elitismo. "Visão de horror fascista", "renascimento do Ocidente via espírito de laboratório", "intelectual desesperado em delírio" -essas foram algumas das expressões utilizadas pela revista alemã "Der Spiegel", que dedicou a sua capa de 27/9/99 ao assunto. O "Die Zeit" não foi menos veemente: "(Sloterdijk) enterra a época moderna em fantasias de um realismo de terror".
Em termos filosóficos, a discussão se abriu em duas amplas frentes. A primeira se refere à seleção genética, e a outra, ao "esgotamento" da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e sua incapacidade de oferecer uma práxis filosófica engajada em temas atuais da sociedade, na opinião de Sloterdijk. O seu "ataque" à Escola de Frankfurt completou-se com a carta aberta "A Teoria Crítica Está Morta".
Para Sloterdijk -que utiliza a palavra "parque" aludindo à idéia de "zoológico", como ele próprio reconhece-, nossa tentativa de programar a história por meio de uma engenharia social qualquer faliu. No entanto, o programa de controle e aperfeiçoamento da natureza (humana) continua -e muito bem, segundo ele.
A partir de Platão (a referência inicial de Sloterdijk é o diálogo "O Político", do filósofo grego, leia trecho da palestra à pág. 5-6), o alemão defende que a filosofia humanista ocidental visou ao longo da sua história criar um "parque" (uma sociedade) onde, de um lado, haveria os seres humanos a serem "cultivados/selecionados", por não serem os sábios, e de um outro, os próprios sábios, que estariam habilitados pela arte da leitura e da reflexão (a própria filosofia) a dirigirem a vida dos primeiros.
O "parque humano" é um "parque temático": seu tópico essencial conteria o projeto (de formação, educação ou "pastoreio") humanista republicano platônico.
Platão teria estabelecido as bases da necessidade de uma espécie de "antropotécnica", por meio da qual as "pulsões animais" do homem seriam metodicamente postas sob jugo das "pulsões domesticantes" (aqui, Sloterdijk refere-se a Freud), a fim de se atingir um "Estado perfeito".
A habilidade dos sábios apontada por Platão teria, no entanto, ao longo da história do humanismo, passado da leitura ("lesen", em alemão) à seleção ("auslesen"). Isso, porque a arte mesma do "cultivo" humanista teria passado de uma necessidade de discernimento "intelectual formativo" para a de discernimento "material/experimental formativo". Ou seja, teria se estendido das categorias estritamente filosóficas para as práticas políticas e científicas.
Segundo Heidegger, o destino do homem ocidental é a técnica, ainda que isso seja uma espécie de desgraça. Para Sloterdijk, da leitura ("lesen") à seleção ("auslesen"), o humanista ocidental característico de uma época tecnicista como esta acaba por se revelar como alguém que busca estar constantemente do lado dos "selecionadores/formadores".
A fala de Sloterdijk deságua, portanto, na tentativa de se pensar a consequência do desenvolvimento da técnica e de se discutir um código antropotécnico (de seleção). A engenharia genética não seria senão o humanismo revelado em sua face mais ativa e poderosa: a técnica de aperfeiçoamento biológico (pensado em um horizonte puramente materialista) do homem.
Para Sloterdijk, a reação "horrorizada" da "boa consciência" humanista contra a engenharia genética não passaria de uma tentativa de silenciar sobre a técnica seletiva, a fim de poder realizá-la exatamente em silêncio: o horror na verdade é cinismo, diz ele, evocando seu livro "Crítica da Razão Cínica" (1983).
Sloterdijk entende sua obra filosófica como um ato terrorista (ou um "ato de intoxicação voluntária", tema de um de seus últimos livros). Para ele, o pensamento deve produzir mal-estar, de maneira que, assim, o conceito tenha corpo (afeto), pois o homem é um ser do conflito essencial (pulsões animais x pulsões domesticantes). Assim, por meio da "corporificação" do desconforto, tal conflito ganha voz na reflexão.

A posição de Habermas
A postura filosófica de Sloterdijk a partir da conferência se revelou de imediato como um distanciamento (assumido) com relação à Escola de Frankfurt, tradição filosófica dominante no pós-guerra alemão e representada atualmente pelo pensador Jürgen Habermas.
Aqueles que se alinham à Escola de Frankfurt apontam em Sloterdijk justamente a falta de uma reflexão crítica a respeito de suas próprias idéias sobre engenharia genética. Refletir de forma crítica aqui seria ter consciência de que todo conhecimento é social e molda, por sua vez, o social. Pensar é estabelecer estruturas abertas de reflexão, porque se referem a formas atuantes no mundo, e que se constituem na sociedade -que por sua vez condiciona a própria consciência social e psicológica.
Em depoimento ao "Die Zeit", Habermas afirmou que é exatamente devido ao fato de Sloterdijk ter nascido no pós-guerra que ele deve nos preocupar: suas idéias poderão se constituir -por meio de um discurso desejado pela nova geração de alemães que anseiam pelo "esquecimento voluntário" do passado nazista- em um novo modelo para a intelectualidade alemã.
Para o frankfurtiano, não se pode falar na Alemanha em técnicas de manipulação experimental de seres humanos sem levar em conta a história do país e seu "trauma" histórico. Habermas afirmou que Sloterdijk "estaria jogando areia nos olhos das pessoas" ao tentar se fazer passar por um inofensivo "biomoralista", quando na realidade, socialmente e no que se refere à construção das consciências, não existem "idéias inofensivas", sobretudo as que trafegam pelo doloroso passado alemão. É importante frisar que o perigo apontado por Habermas é real em todo o Ocidente, onde se propaga o desejo de "deshistoricizar" o mundo e de transformar o passado em "antiguidade de consumo". Sloterdijk, no entanto, respondeu a Habermas afirmando que a posição dele refletia a "paranóia" típica de uma geração que "um dia foi (ela mesma) nazista" e se aterroriza com o próprio passado.
Para Habermas, o "parque" de Sloterdijk prestaria no limite um desserviço à consciência alemã, por tratar de um tema como a programação genética de modo pretensamente "desencarnado", tentando criar a ilusão de que se pode teorizar sobre engenharia genética depois do nazismo sem se implicar social e politicamente com o horror nazista.
Na sua opinião, é como se Sloterdijk "esquecesse" que vivemos em sociedade e que o homem é um ser político. Em carta enviada ao "Die Zeit" e divulgada na rede de TV alemã ARD, Habermas escreveu: "Creio que Sloterdijk, com sua palestra genuinamente fascista, transpôs uma barreira considerada tabu entre intelectuais no pleno gozo de suas faculdades mentais".
Na entrevista abaixo, feita por telefone, Sloterdijk fala sobre seu rompimento com Habermas e expõe suas idéias sobre a inevitabilidade do planejamento genético do homem. Convidado pela Folha a comentar a conferência de Sloterdijk, o filósofo Jürgen Habermas afirmou que preferia não discuti-la.



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