|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
Um dos principais intelectuais dos EUA, o professor de Harvard Stanley Cavell
defende que o cinema e o beisebol são temas apropriados para reflexão
A filosofia do comum
Antoine Baecque
do "Libération"
Simples, bonachão, ar profundamente generoso:
assim é Stanley Cavell, professor emérito de filosofia em Harvard. Esse membro da "Ivy League"
[nome que congrega as mais prestigiosas universidades norte-americanas] sempre se interessou pela
sétima arte e é reconhecido como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo. Autor de obras sobre cinema como "Pursuits of Happiness - The Hollywood Comedy of Remarriage" [Buscas da Felicidade -A
Comédia Hollywoodiana do Recasamento] (1981),
"The World Viewed - Reflections on the Ontology of
Film" [O Mundo Visto - Reflexões sobre a Ontologia do
Filme] (1990), ele acaba de lançar na França "Le Cinéma
Nous Rend-il Meilleurs?" [O Cinema nos Torna Melhores?]. Pode-se dizer que houve Deleuze e que agora há
Cavell, mesmo se os estilos e os modos de pensamento
difiram completamente. Nesta entrevista ele fala de sua
paixão pelo cinema.
Por que trabalhar sobre o cinema?
Antes de "trabalhar", frequentei o cinema. No início
dos anos 1950, assistia a muitos filmes, tornando-me
o que na França chamam um "cinéfilo". Naquela
época, um de cada dois americanos ia ao cinema regularmente: uma forma de cultura comum se formou.
E todas as comédias de que falo em "Pursuits of
Happiness", eu as vi naquele momento, esses 300 filmes, aproximadamente, que constituem meu corpus básico e o da América. É esse material, por ser comum,
que eu quis compreender como filósofo.
O sr. escreve então sobre esses filmes...
Isso coincidiu com um momento em
que me interrogava sobre minha vida
filosófica. Eu acabava de passar de
Berkeley para Harvard, em 1963, e me
pediam um curso de estética. Também acabava de me separar de minha mulher, e a
guerra do Vietnã logo se tornaria uma obsessão nacional. Enfim, eu chegava aos 40. Tudo isso fez com
que eu propusesse um "curso de estética do filme"
em Harvard, ao mesmo tempo que me sentia mal,
alimentando um sentimento de perda, de mim mesmo e da América, de meus referenciais ali. O cinema
ajudou-me a repensar minha própria experiência, ligando-a a uma experiência coletiva, a da América.
Como era visto o cinema pelos filósofos?
Passei a fazer filosofia a partir de um objeto que ninguém considerava como filosófico, lançando uma
questão que no entanto está no centro da filosofia
desde Platão: o que é a experiência humana? As comédias são um exemplo disso: elas colocam a idéia
de que o conhecimento profundo de si é o resultado
dos roteiros, dos diálogos, da mise-en-scène, do desempenho dos atores. A comédia mais completa será aquela em que os personagens se colocam mais
intensamente as questões de quem eles são, onde a
experiência os leva, o que os faz agir. Ora, essas são
questões filosóficas por excelência.
Por que partir da cultura mais comum para filosofar?
Foi sempre a minha escolha... Assim
afirmei a idéia de que os textos fundamentais da filosofia norte-americana
eram a poesia romântica de Thoreau,
as descrições da natureza por Emerson. Aí está a identidade da América.
O cinema faz parte dessa coerência:
em meu espírito ele está associado à
questão da contribuição norte-americana à cultura e à democracia, o que é evidentemente
uma grande questão emersoniana. Isso pode ser descrito de modo filosófico porque diz respeito à identificação de si mesmo e da comunidade. Penso então
que o acesso ao conhecimento não passa necessariamente pelo saber, mas pela poesia, pela literatura,
pela música e pelo cinema. Mas na América, estranhamente, faltavam escritos críticos e sobretudo filosóficos sobre o cinema. Na França vocês tiveram
André Bazin, a nouvelle vague, depois Deleuze ou
Daney...
A poesia, os filmes... Quais são os objetos norte-americanos sobre os quais o senhor poderia ainda filosofar?
Seria oportuno refletir a sério sobre o beisebol, cujas
regras, a prática, os rituais e a discussão coletiva seriam fonte de uma reflexão sobre a experiência comum nesse país, para empregar um termo filosófico.
O cinema nos torna melhores?
Penso que sim, ainda que o título do livro não seja
meu, mas do editor. Pois o cinema consegue mostrar
o que poderíamos chamar, com Emerson, de um
"momento transcendental". Confrontado com esse
momento, o espectador pode "se tornar melhor"...
Dê alguns exemplos.
Tome um filme de Rohmer: uma mulher comum,
deprimida, e de repente, num ônibus, um encontro,
uma revelação. Num contexto banal, Rohmer nos
mostra como essa mulher se torna melhor, na magnífica cena final de "Conto de Inverno". Muitos filmes norte-americanos recentes baseiam sua intriga
nesse conceito: "The Little Man Tate" (1992), dirigido por Jodie Foster, "O Sexto Sentido", de Night
Shyamalan, "Matrix"... O cinema define-se aí como a
ética de um "mundo melhor à espera" e torna seu espectador "sujeito de moralidade".
O mais próximo de meu coração é Fred Astaire.
Em suas comédias musicais ele vive geralmente em
nosso mundo, mas de repente voa, dança, decola:
torna-se, literalmente, bom. Dança com os objetos e
nos cenários comuns e torna o mundo musical melhor. Isso define a ambição utópica do cinema, de
que a democracia necessita para funcionar e continuar esperando. O filósofo pode falar desse perfeccionismo, longe do cinismo, do sarcasmo. O cinema
encarna, para mim, essa esperança: do comum ele
faz o bom, o bem, o melhor. Essa filosofia do comum
me domina.
Tradução de Paulo Neves.
Texto Anterior: ET + Cetera Próximo Texto: + autores: O que o mordom o viu Índice
|