São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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+ cultura

Um dos principais intelectuais dos EUA, o professor de Harvard Stanley Cavell defende que o cinema e o beisebol são temas apropriados para reflexão

A filosofia do comum

Antoine Baecque
do "Libération"

Simples, bonachão, ar profundamente generoso: assim é Stanley Cavell, professor emérito de filosofia em Harvard. Esse membro da "Ivy League" [nome que congrega as mais prestigiosas universidades norte-americanas] sempre se interessou pela sétima arte e é reconhecido como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo. Autor de obras sobre cinema como "Pursuits of Happiness - The Hollywood Comedy of Remarriage" [Buscas da Felicidade -A Comédia Hollywoodiana do Recasamento] (1981), "The World Viewed - Reflections on the Ontology of Film" [O Mundo Visto - Reflexões sobre a Ontologia do Filme] (1990), ele acaba de lançar na França "Le Cinéma Nous Rend-il Meilleurs?" [O Cinema nos Torna Melhores?]. Pode-se dizer que houve Deleuze e que agora há Cavell, mesmo se os estilos e os modos de pensamento difiram completamente. Nesta entrevista ele fala de sua paixão pelo cinema.

Por que trabalhar sobre o cinema?
Antes de "trabalhar", frequentei o cinema. No início dos anos 1950, assistia a muitos filmes, tornando-me o que na França chamam um "cinéfilo". Naquela época, um de cada dois americanos ia ao cinema regularmente: uma forma de cultura comum se formou.
E todas as comédias de que falo em "Pursuits of Happiness", eu as vi naquele momento, esses 300 filmes, aproximadamente, que constituem meu corpus básico e o da América. É esse material, por ser comum, que eu quis compreender como filósofo.
O sr. escreve então sobre esses filmes...
Isso coincidiu com um momento em que me interrogava sobre minha vida filosófica. Eu acabava de passar de Berkeley para Harvard, em 1963, e me pediam um curso de estética. Também acabava de me separar de minha mulher, e a guerra do Vietnã logo se tornaria uma obsessão nacional. Enfim, eu chegava aos 40. Tudo isso fez com que eu propusesse um "curso de estética do filme" em Harvard, ao mesmo tempo que me sentia mal, alimentando um sentimento de perda, de mim mesmo e da América, de meus referenciais ali. O cinema ajudou-me a repensar minha própria experiência, ligando-a a uma experiência coletiva, a da América.
Como era visto o cinema pelos filósofos?
Passei a fazer filosofia a partir de um objeto que ninguém considerava como filosófico, lançando uma questão que no entanto está no centro da filosofia desde Platão: o que é a experiência humana? As comédias são um exemplo disso: elas colocam a idéia de que o conhecimento profundo de si é o resultado dos roteiros, dos diálogos, da mise-en-scène, do desempenho dos atores. A comédia mais completa será aquela em que os personagens se colocam mais intensamente as questões de quem eles são, onde a experiência os leva, o que os faz agir. Ora, essas são questões filosóficas por excelência.
Por que partir da cultura mais comum para filosofar?
Foi sempre a minha escolha... Assim afirmei a idéia de que os textos fundamentais da filosofia norte-americana eram a poesia romântica de Thoreau, as descrições da natureza por Emerson. Aí está a identidade da América. O cinema faz parte dessa coerência: em meu espírito ele está associado à questão da contribuição norte-americana à cultura e à democracia, o que é evidentemente uma grande questão emersoniana. Isso pode ser descrito de modo filosófico porque diz respeito à identificação de si mesmo e da comunidade. Penso então que o acesso ao conhecimento não passa necessariamente pelo saber, mas pela poesia, pela literatura, pela música e pelo cinema. Mas na América, estranhamente, faltavam escritos críticos e sobretudo filosóficos sobre o cinema. Na França vocês tiveram André Bazin, a nouvelle vague, depois Deleuze ou Daney...
A poesia, os filmes... Quais são os objetos norte-americanos sobre os quais o senhor poderia ainda filosofar?
Seria oportuno refletir a sério sobre o beisebol, cujas regras, a prática, os rituais e a discussão coletiva seriam fonte de uma reflexão sobre a experiência comum nesse país, para empregar um termo filosófico.
O cinema nos torna melhores?
Penso que sim, ainda que o título do livro não seja meu, mas do editor. Pois o cinema consegue mostrar o que poderíamos chamar, com Emerson, de um "momento transcendental". Confrontado com esse momento, o espectador pode "se tornar melhor"...
Dê alguns exemplos.
Tome um filme de Rohmer: uma mulher comum, deprimida, e de repente, num ônibus, um encontro, uma revelação. Num contexto banal, Rohmer nos mostra como essa mulher se torna melhor, na magnífica cena final de "Conto de Inverno". Muitos filmes norte-americanos recentes baseiam sua intriga nesse conceito: "The Little Man Tate" (1992), dirigido por Jodie Foster, "O Sexto Sentido", de Night Shyamalan, "Matrix"... O cinema define-se aí como a ética de um "mundo melhor à espera" e torna seu espectador "sujeito de moralidade".
O mais próximo de meu coração é Fred Astaire. Em suas comédias musicais ele vive geralmente em nosso mundo, mas de repente voa, dança, decola: torna-se, literalmente, bom. Dança com os objetos e nos cenários comuns e torna o mundo musical melhor. Isso define a ambição utópica do cinema, de que a democracia necessita para funcionar e continuar esperando. O filósofo pode falar desse perfeccionismo, longe do cinismo, do sarcasmo. O cinema encarna, para mim, essa esperança: do comum ele faz o bom, o bem, o melhor. Essa filosofia do comum me domina.


Tradução de Paulo Neves.


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