São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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Crise na monarquia inglesa pode levar à renúncia de Charles em favor de seu filho mais velho

O que o mordom o viu

Ian Hodgson - 19.jun.2003/France Presse
Príncipe William e o pai, Charles, no País de Gales


Peter Burke

Cinquenta ou cem anos atrás, quando a maioria dos britânicos passava as férias em seu próprio país, à beira-mar, entre Blackpool e Brighton, uma das maiores atrações, sobretudo quando o sol deixava de brilhar, era "o que o mordomo viu". A pessoa metia uma moeda numa caixa e olhava por um buraco para ver duas pessoas seminuas, mas com roupas visíveis em quantidade suficiente para determinar sua posição social: uma dama e um cavalheiro, que supostamente não era o seu marido. Essa forma bastante amena de pornografia foi ultrapassada pelos fatos. Hoje, na Grã-Bretanha, a expressão "o que o mordomo viu" na certa trará ao pensamento não Blackpool nem Brighton, mas sim as memórias de Paul Burrell, ex-mordomo da princesa Diana e ex-lacaio da rainha Elizabeth. Os mordomos antigamente eram conhecidos por sua discrição, mas hoje os poucos remanescentes da profissão descobriram que a indiscrição pode lhes render fortunas. As revelações de Burrell foram amplamente debatidas nos noticiários da BBC e no "Times", bem como em jornais mais populares. Em outubro, o público soube que o ex-mordomo comentara o que foi eufemisticamente chamado de um "incidente" entre um criado e um homem de elevada posição na família real. Em novembro, revelou-se que o protagonista desse incidente era o príncipe Charles e um jornal estampou a manchete: "Será Charles bissexual?". Em outras palavras, houve mais uma reviravolta dramática no que foi muitas vezes denominado de novela da realeza, o similar inglês para "Dallas", "Dinastia" ou para as telenovelas brasileiras. O jornal dominical inglês "Observer" sugeriu que a revelação desse incidente "poderia derrubar a monarquia". Será mesmo?

Proporções astronômicas
A publicação de memórias de ex-serviçais de uma família real não é novidade, embora a soma de dinheiro que eles recebem em troca de seus casos picantes tenha subido a proporções astronômicas. Um dos camareiros de Luís 14 da França publicou suas memórias décadas depois da morte do rei, em 1715. Talvez Napoleão estivesse pensando nessa publicação quando fez seu célebre comentário de que "homem nenhum é um herói para o seu camareiro". Não obstante, as memórias da corte de Luís 14 não eram particularmente escandalosas. As revelações anônimas de "casos secretos" entre soberanos e suas favoritas publicadas no início do século 18 foram muito mais danosas para as monarquias francesa e inglesa. O pior ainda estava por vir, no fim do século 18, quando houve uma enxurrada de publicações sobre a vida privada da família real francesa. Os livros na França, nessa época, estavam sujeitos à censura, mas essas publicações foram impressas no estrangeiro e trazidas clandestinamente para o país: "A Vida Privada de Luís 15", por exemplo, "As Memórias da Madame de Pompadour" (uma amante do rei) ou, o maior sucesso no gênero, "Casos da Condessa du Barry" (1775). Segundo este livro, Du Barry trabalhou numa loja de roupas e depois num bordel, antes de ser descoberta pelo camareiro de Luís 15 e tornar-se amante do rei. Ela é retratada de modo inteiramente favorável, mas o resto da corte não. O que transformou esse livro, e outros semelhantes, em dinamite política foi a história secreta da monarquia, sobretudo o retrato da corte como um centro de devassidão e corrupção. Livros como esses teriam de fato derrubado a monarquia e aberto caminho para a Revolução Francesa? Está claro que não fizeram isso sozinhos. Crises financeiras e safras ruins também debilitaram aquilo que os revolucionários rapidamente qualificaram de "o velho regime" da França, antes de 1789. Não obstante, segundo o historiador americano Robert Darnton, esses "best-sellers proibidos da França pré-revolucionária" contribuíram efetivamente para mudar o sistema político porque, nas palavras do autor, "dessacralizaram a monarquia", tornando mais fácil para as pessoas imaginar a França sem uma corte e sem um rei. Ainda que as pessoas não acreditassem em todos os escândalos sobre os quais liam, estavam menos aptas do que antes a respeitar a monarquia.

Novela sem roteiro
Essa reação nos traz de volta à Grã-Bretanha de hoje. Nossa novela da família real não tem um roteiro. Em contraste com as telenovelas brasileiras, não existe a possibilidade de o público britânico escolher entre desfechos alternativos para a história. O que podemos fazer, porém, é tentar prever qual poderá ser o desfecho, distinguindo três possíveis roteiros.
No primeiro deles, nada muda. Afinal, a monarquia britânica sobreviveu a muitos escândalos no passado, entre eles as seis esposas de Henrique 8º, as numerosas amantes de Carlos 2º, as indecorosas discussões em público entre Jorge 4º e sua mulher, a rainha Carolina, e os boatos de que a rainha Vitória, já viúva, esteve apaixonada por um de seus serviçais, John Brown. À luz desses modelos, o caso de Charles não parece especialmente escandaloso.
No segundo roteiro, o regime não muda, mas, em seu interior, certas pessoas mudam de posição. Alguns jornalistas prevêem que as recentes revelações assinalam o fim da carreira de Charles, ou mais exatamente da sua não-carreira, pois Charles, preparado para ser o sucessor no trono, ainda está desempregado, já que sua mãe preferiu continuar no emprego após a idade normal para a aposentadoria (65 anos, na Grã-Bretanha). Desde o rompimento entre Charles e Diana, têm havido reiteradas sugestões de que o melhor para o país seria Charles renunciar ao trono em favor do seu filho mais velho, dando aos britânicos um William 5º em vez de um Charles 3º.
O terceiro roteiro é mais radical: o fim da monarquia e a instauração de uma República inglesa (mais exatamente, uma "re-instauração", pois a Inglaterra já foi antes uma República, entre 1649 e 1660). Isso, é claro, levantaria o problema do tipo de República a instaurar, mais exatamente o tipo de presidente, um testa-de-ferro, como na Itália e na Índia, ou alguém com poder, como nos EUA e no Brasil.
A vantagem de ter uma monarquia tem sido o de manter separados o carisma institucional e a tomada de decisões, evitando que Margareth Thatcher, digamos, ou Tony Blair se tornassem ainda mais poderosos do que eram ou são. Assim, qual o mais provável roteiro para a Grã-Bretanha? Meu palpite é que o segundo, o de William 5º, será o escolhido. Mas, se eu mesmo estivesse escrevendo a novela, ficaria tentado a criar uma variante para o terceiro roteiro, imaginando uma República inglesa em que Charles concorre à presidência e é eleito, oferecendo ao público inglês, ao mesmo tempo, um sistema mais moderno e alguma continuidade com o passado.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Rubens Figueiredo.


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