São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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O véu e a lei

Jack Guez/France Presse
Irmãs que foram expulsas de uma escola francesa por se recusarem a tirar o véu na sala de aula


SOCIÓLOGO QUE FAZ PARTE DA COMISSÃO QUE SUGERIU A PROIBIÇÃO NA FRANÇA DO USO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS NAS ESCOLAS COMENTA AS REAÇÕES INTERNACIONAIS AO FATO

Alain Touraine

O debate que se instalou na França sobre a proibição dos alunos das escolas públicas usarem sinais exteriores de sua filiação religiosa ou política provocou, no país e no mundo inteiro, uma reação maior e mais apaixonada do que era de se esperar. O que indica tratar-se de um problema da maior importância. Para a minha geração, os temas das discussões públicas eram definidos e analisados num marco socioeconômico. Falava-se de classes sociais, desigualdade entre categorias sociais ou regiões, desenvolvimentismo ou monetarismo etc. Ninguém colocaria em primeiro plano, sobretudo nos países ocidentais, tanto do Norte como do Sul, preocupações com problemas religiosos, tal como hoje se apresentam na França. Afinal, trata-se de um país laico por excelência, onde, se existe, de fato, um grande contingente de imigrantes muçulmanos, a dimensão simbólica de sua presença não é mais importante do que a política.
Mas, eis que, de repente, a opinião pública nacional e mundial se exalta diante das desventuras de jovens muçulmanas que insistem em usar véu para assistir às aulas no colégio ou no liceu. A importância que esses fatos assumiram é mais assustadora ainda quando se sabe que, até agora, das muitas jovens estudantes, ou melhor, alunas de liceu, que usam véu, apenas três foram expulsas da escola, sendo que duas delas são filhas de pai judeu e mãe berbere cristã. Não se trata, portanto, de uma grave crise política e sim do questionamento ou reexame de um princípio considerado fundamental em muitos países, mas raramente definido: o da laicidade.

Se existe, de fato, um grande contingente de imigrantes muçulmanos, a dimensão simbólica de sua presença não é mais importante do que a política

Em quase todos os países do mundo, a questão dos direitos culturais é colocada no centro da vida social; uma questão que envolve o direito que cada um tem de ser reconhecido pela sociedade não apenas como cidadão ou trabalhador, mas também como portador de uma cultura, isto é, de uma língua e uma religião, tanto quanto de um sistema de parentesco ou de costumes alimentares. É verdade que muitos países, e a França em particular, criticaram -muitas vezes com razão- o risco de diferencialismo, mas também resistiram a reconhecer o pluralismo cultural.
A preocupação que despertou em toda parte o mal chamado "caso do véu islâmico" mostra a dificuldade em conciliar o respeito ao pluralismo cultural com a resistência ao comunitarismo que ameaça a idéia de cidadania.

O contra-ataque ao fundamentalismo não terá o menor sentido se não ajudar a opinião pública a conviver com a ascensão das atitudes propriamente religiosas

A resposta dada até agora pela França está longe de ser clara e satisfatória, mas, como contribuí para sua elaboração, acredito que se vai na direção certa. Quero dizer com isso que a condenação visa não às garotas que usam véu ou aos jovens judeus que usam quipá, mas à corrente de opinião e aos ativistas que, cada vez mais, atacam os programas de história ou história natural das escolas públicas, porque o espírito do Corão proíbe falar de sexualidade e porque a história do mundo foi apresentada com clareza e de uma vez pelo próprio Alá em suas revelações. É inaceitável, na minha opinião, renunciarmos a dois de nossos princípios fundamentais: de um lado, o respeito ao conhecimento racional, de outro, a defesa da igualdade e da diferença entre homens e mulheres.
Ora, todas as tentativas de modificar a organização escolar ou hospitalar vão, claramente, no sentido de separar os sexos e relegar as mulheres a um status inferior. É preciso, portanto, dar um basta aos ataques que se ocultam, muitas vezes, por trás de pretextos religiosos, ou de qualquer outro tipo, e condená-los de forma explícita. Somente quando a população estiver tranquila -e em particular os professores, que pediam, com insistência, uma lei que os liberasse de decisões que se sentiam incapazes de tomar, pois não controlam a hierarquia administrativa acima deles- é que poderemos fazer valer os direitos do pluralismo cultural e, no presente caso, os direitos das jovens que reivindicam o reconhecimento público de sua fé.
Não passa pela cabeça de ninguém defender uma concepção arcaica de laicidade, concepção anti-religiosa e anticlerical que data do final do século 19. Mas é necessário remover os inúmeros e enormes obstáculos que impedem as jovens muçulmanas modernas de se fazerem ouvir, pois elas são atacadas pelos elementos islâmicos mais radicais e, ao mesmo tempo, pelos meios conservadores. Depende da imprensa -jornais, rádio, televisão etc.- que a voz dos modernistas, detectada por mim há dez anos, seja finalmente ouvida. O contra-ataque ao chamado fundamentalismo não terá o menor sentido se não ajudar a opinião pública a conviver com a ascensão do pensamento e das atitudes propriamente religiosas.
Há muito se tornou impossível sustentar o racionalismo universalista, que conheceu um vivo esplendor no século 18, mas se revela ridículo numa época em que os pluralismos culturais estão por toda parte, para o bem e para o mal. É preciso acabar com todas as imprecisões terminológicas que levaram a um relativismo cultural desprovido de sentido. Não existe uma democracia asiática completamente diferente da democracia européia, e são muitos os exemplos que o comprovam. Há, portanto, que se definir claramente, em toda parte, os marcos administrativos e culturais que não podem ser contestados, sob o risco de abrir uma crise maior. É preciso também respeitar um certo número de regras ou proibições. As conquistas do conhecimento científico não podem ser anuladas em nome do tradicionalismo ou do irracionalismo que se estabelece antes pelo terror do que pelo convencimento. Mas, nesse marco científico e intelectual sólido, é preciso reservar um lugar cada vez maior à diversidade dos caminhos que levam à modernidade e recombinar os elementos do universalismo com os do diferencialismo.
De modo geral, a reflexão sobre esses temas importantes demorou a acontecer, e os intelectuais muitas vezes se deixaram levar por posições irracionalistas ou por um relativismo cultural prontamente esvaziado de qualquer conteúdo. Não se trata, de modo algum, de voltar ao Iluminismo do século 18, mas muito menos de se deixar levar por um culturalismo que redunda na recusa de qualquer comunicação entre as culturas. É isso que confere uma importância considerável ao grupo mais ou menos grande daqueles e daquelas que se esforçam em conciliar a modernidade do pensamento e das práticas com a adesão a uma religião ou a uma corrente de idéias. A escolha entre universalismo e particularismo não é mais possível; é indispensável, portanto, não confundir atitudes e orientações culturais com estratégias de tomada de poder em nome de princípios culturais e ideológicos amplamente rejeitados no país em foco.
Essas questões podem parecer muito abstratas se comparadas ao enorme problema da fome, da desigualdade, das imigrações forçadas que povoam nosso horizonte. São elas, porém, que ocuparão o centro da cena, da mesma forma que as do trabalho e do movimento dos assalariados ocuparam a cena política e intelectual por mais de um século e meio. Não seria essa uma razão suficiente para a opinião pública de muitos países ter acompanhado com paixão o debate em que, talvez pela primeira vez, as exigências universalistas da cidadania foram chamadas a se integrar às reivindicações legítimas de todas as minorias culturais?
Poucos observadores esperavam que a França mostrasse o caminho dessa busca; por isso o relatório da comissão Stasi é um importante passo à frente, antes de mais nada porque isola, o mais claramente possível, as investidas comunitaristas que devem ser rejeitadas junto com o surgimento de um islã doméstico que representa um obstáculo cada vez maior à modernização dos assalariados. Tudo isso explica o enorme interesse despertado pelos debates que, à primeira vista e de modo muito superficial, poderiam ser vistos como uma tentativa reacionária de manter a ilusão de um universalismo cultural que a pesquisa antropológica baniu do campo do possível.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Rubia Prates Goldoni.


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