São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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+ política

A esquerda na encruzilhada

OS PROBLEMAS DO PT SÃO OS DA ESQUERDA MUNDIAL E RESULTAM DA CARÊNCIA POLÍTICA DO MARXISMO QUE DOMINA O SEU PENSAMENTO

Ruy Fausto
especial para a Folha

Intelectuais de extrema-esquerda rompem com o PT. O que salta aos olhos, nos pronunciamentos de ruptura, é a mistura entre o que é justo e o que não é, as críticas -em parte fundadas- aos desacertos do PT governamental e o radicalismo mal fundado. Em sua declaração de saída, Francisco de Oliveira começa com uma epígrafe do "Manifesto Comunista" e, mais adiante, fala de Marx e Engels, "renegados pelo PT". Sem dúvida, uma epígrafe é uma epígrafe, e, em documento mais recente, Francisco de Oliveira se diz "reformista". Mas a dúvida persiste e o mínimo que se pode dizer é que o seu projeto é ambíguo. Fazer a crítica do PT invocando a política marxista é hoje o melhor caminho?
Estou convencido de que não e indico mais adiante por quê. Para falar do governo Lula, começaria observando que a famosa continuidade entre a era Cardoso e o governo Lula é em boa parte um mito. Basta pensar na estratégia das privatizações e em suas consequências, além de várias outras coisas, para ver que a relação é muito mais complicada. Francisco de Oliveira critica a reforma da Previdência, a suposta campanha de desmoralização dos funcionários, as alianças oportunistas e o estilo autoritário do governo. Aqui só posso examinar um ou dois pontos. A reforma da Previdência, lançada de forma mais ou menos abrupta, mas denunciada de um modo também autoritário pela extrema-esquerda (até se exibiram as fotos dos deputados que votaram favoravelmente), não poderia deixar de ser discutida. É difícil justificar a posição dos que consideram a situação atual da Previdência como um modelo a ser defendido.
Como já se disse muitas vezes, 21 milhões de assalariados quase sem nenhuma cobertura e menos de 1 milhão com a possibilidade de uma cobertura integral: uma desigualdade que não existe em nenhum outro país do mundo. Não vou detalhar todos os abusos. Eles parecem não ter importância para uma certa esquerda. Os argumentos utilizados, em geral, para recusar toda reforma, aludem à dívida, ao estímulo à demanda, à pressão do FMI. Ora, a dívida é a dívida; será preciso resolver esse problema de algum jeito. Mas não é lembrando o volume esmagador da dívida que se vai eliminar o problema da Previdência.
Quanto ao estímulo à demanda, que os altos salários provocariam, é evidente que o que se economizará cortando ou corrigindo os abusos poderá ser redistribuído de outro modo. Sobre a posição do FMI, pergunto-me se é bem essa a reforma dos seus sonhos (de modo sintomático, a maioria do PFL votou contra). Mas o que parece gritante em toda essa história da Previdência, por isso ela tem muito interesse para além do problema particular, é o fato de que a extrema-esquerda é mais ou menos cega para o problema da desigualdade, quando a desigualdade vem do Estado. Tem-se a impressão de que, para alguns, a luta da esquerda é, sem mais, a luta do Estado contra o mercado. Ora, o que define a esquerda não é ser a favor do Estado e contra o mercado. O que a caracteriza e é a sua razão de ser é a luta contra a desigualdade (o que não significa que ela deva ser favorável a uma utópica e nefasta igualdade absoluta). Se a desigualdade vem do mercado ou vem do Estado, isso define formas diferentes de exploração ou de injustiça social, mas não modifica o essencial.
Se a extrema-esquerda não vê ou não quer ver o problema é porque a tradição dominante na esquerda pensou a exploração muito mais a partir da sociedade civil do que a partir do Estado. A exploração na sociedade civil é sempre enxergada, a que se faz por meio do Estado é mistificada. Um pouco como ocorre, também, no que se refere à opressão. Conversando não só com gente de extrema-esquerda, mas com colegas de esquerda moderada, tenho às vezes a impressão de que, para eles, o dinheiro do Estado cai do céu. De resto -isso no que concerne à extrema-esquerda-, racionalizar as despesas do Estado é coisa reformista que não ajuda a revolução. Não demonizemos ninguém, mas também não angelizemos. Beber o leite da vaca do Estado sempre foi um esporte nacional.
Com isso não quero dizer que a reforma da Previdência proposta pelo governo, mesmo com as modificações impostas pelo Congresso, seja a reforma ideal. Nem nego que haja hoje no mundo, e também no Brasil, uma ofensiva neoliberal que tenta um desmonte do Welfare State. Mas a resposta da esquerda não deve ser a de negar as dificuldades do status quo, nem de se aferrar em todos os detalhes às formas clássicas do Estado-previdência. As injustiças saltam aos olhos na forma quase caricatural que ele teve no Brasil.
Os problemas que vive hoje o PT são os da esquerda mundial, refratados pelas particularidades latino-americanas e brasileiras. É preciso começar pela questão geral (e, dados os limites de espaço, não poderei ir mais longe). Como diziam os primeiro críticos, pré-marxistas, da economia política, precisamos "remontar aos fundamentos". Essa recomendação é absolutamente atual, e mais ainda no Brasil. Fala-se de derrotas da esquerda no século 20. Houve derrotas, em certo sentido, porém mais do que elas, o que se teve foi um "afundamento" de parte da esquerda, uma espécie de caminho de autodestruição.

É difícil justificar a posição dos que consideram a situação atual da Previdência como um modelo a ser defendido

Esse ponto é essencial para entender onde estamos. A vitória do bolchevismo, movimento "enérgico", mas intransigente e com tendências totalitárias desde a origem (basta dizer que os bolcheviques -menos Lênin, é verdade, mas talvez por razões táticas- viam com maus olhos os sovietes em 1905), liquida o movimento socialista russo e abre caminho para um despotismo burocrático genocidário. O resto da historia é conhecida: o bolchevismo serve de modelo para os movimentos posteriores. Ele deforma e finalmente destrói o movimento socialista em escala mundial. Isso não significa que tudo tenha andado bem do lado social-democrata. (Refiro-me sempre, bem entendido, à social-democracia como movimento histórico-mundial, não a tal ou qual partido que, no Brasil, tenha adotado esse nome). A social-democracia começa com um desastre que reforça o bolchevismo: o partido social-democrata alemão apoia o Kaiser e os partidos de direita na aventura da Primeira Guerra.
Segue-se a ruptura da ala esquerda, e também do centro (Karl Kautsky), o qual, no primeiro momento, ainda que teoricamente contrário à guerra, foi incapaz de esboçar uma resistência efetiva. A história posterior da social-democracia contém o pior e o melhor. Sem falar no episódio sangrento da repressão da extrema-esquerda alemã (o qual, não esqueçamos, ocorre sob um partido já desertado pelas grandes figuras do centro), a social-democracia foi algumas vezes colonialista (Guy Mollet, Bernstein já o era) e muitas vezes se perdeu numa política de um reformismo cada vez mais indiscernível da política do centro ou mesmo da direita. Porém, ao mesmo tempo, a social-democracia teve um compromisso com as instituições democráticas e com a luta pela sua efetivação, que se fez aliás muito lentamente. Ela impulsionou -com os partidos comunistas, é verdade, mas ela encarnava melhor esses avanços- as principais reformas sociais que o século conheceu (jornada de oito horas, cobertura de saúde, aposentadoria etc).
Contrariamente a uma opinião tradicional que ainda faz estragos entre nós, a social-democracia, com todos os seus erros e insuficiências, se revelou muito melhor que o bolchevismo.
A experiência do século 20 não tem apenas como resultado a derrubada do mito do bolchevismo. O marxismo -de que o bolchevismo se afastava entretanto consideravelmente- fica também abalado. O socialismo revolucionário marxista (e também o bakunista) se revela não o parteiro do homem novo e da sociedade livre, mas do despotismo e do genocídio. Nada nos leva a crer que o resultado seria diferente se revolução houver -houvesse- nos países mais avançados. Nesse sentido, é preciso abandonar as velhas ilusões revolucionárias. Isso não significa proscrever a violência como contraviolência em todas as situações. Nem significa proscrever as quase-violências que as sociedades democráticas normalmente admitem. Significa sim dizer que esse não é o caminho fundamental.

A social-democracia se revelou, com todos os seus erros, muito melhor que o bolchevismo

De resto, não se trata de abraçar sem mais o "reformismo", mas de encontrar um caminho entre o "reformismo" e o "revolucionarismo". A política marxista cai não só no seu projeto, mas já na sua análise da política. O quadro das análises políticas de Marx, por brilhante que seja, não dá conta da realidade do século 20. Insisti em outra ocasião que um marxista não pode pensar o que significa um déspota do tipo Saddam Hussein; ele o vê como simples epifenômeno da totalidade dominada pelo capitalismo.
Esse erro grave, eu dizia, se deve ao fato de que falta ao marxismo a noção ou a significação "despotismo" (com exceção do "despotismo oriental"). Ora, o século 20 foi dominado por déspotas, de direita e de "esquerda". Nesse sentido, quem parte apenas das categorias de Marx -e elas dominam, bem mais do que se supõe, o pensamento da maior parte da esquerda- simplesmente não "vê" o que ocorreu no século. A observar, mais ou menos na mesma ordem de considerações, que um livro como "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", de Marx, que muitos tomam como uma verdadeira Bíblia para a análise política, se engana, essencialmente, nas suas previsões sobre os rumos que tomaria a história mundial.
O "18 Brumário" prevê governos bonapartistas para os países capitalistas avançados. Ora, depois do segundo império, fora o interregno de Vichy, houve 130 anos de república democrática na França. A mesma coisa, sem exceção, para a Inglaterra. E o que não foi república democrática, não foi autocracia bonapartista, mas ditadura genocidária de direita ou de "esquerda". Falo, no entanto, da política de Marx, não da crítica marxiana da economia política.
Se faço essas observações sobre o déficit político do marxismo, não nego a riqueza nem a atualidade relativa da crítica marxiana da economia política. Marx e Sismondi, no século 19, Keynes e Kalecki, no século 20, mostram que o sistema -se abandonado a si mesmo- tem uma tendência essencial para o desequilíbrio, a desigualdade social e a crise. Apesar do que dizem os neoliberais, aliás hoje já meio na defensiva, essas teses resistem à experiência histórica. É de resto o que, em boa medida, os mais lúcidos dentre os economistas ligados às instituições financeiras internacionais vêm, de um modo ou de outro, reconhecendo.
Uma falsa perspectiva (embora não seja só isso) fez com que a primeira vaga das lutas da esquerda, a que cobre os séculos 19 e 20, se afundasse num abismo de ditadura e violência. Em vez de chorar pretensas derrotas e se aferrar a antigos dogmas, é preciso preparar -na teoria e na prática- uma segunda vaga. Uma segunda vaga da esquerda mundial talvez esteja em formação, nesses primeiros anos do século.


Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor, entre outros livros, de "Marx - Lógica e Política" (Editora 34).


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