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+ política
A esquerda na encruzilhada
OS PROBLEMAS DO PT SÃO OS DA ESQUERDA MUNDIAL E RESULTAM DA CARÊNCIA POLÍTICA DO MARXISMO QUE DOMINA O SEU PENSAMENTO
Ruy Fausto
especial para a Folha
Intelectuais de extrema-esquerda
rompem com o PT. O que salta aos
olhos, nos pronunciamentos de ruptura, é a mistura entre o que é justo e o
que não é, as críticas -em parte fundadas- aos desacertos do PT governamental e o radicalismo mal fundado. Em
sua declaração de saída, Francisco de
Oliveira começa com uma epígrafe do
"Manifesto Comunista" e, mais adiante,
fala de Marx e Engels, "renegados pelo
PT". Sem dúvida, uma epígrafe é uma
epígrafe, e, em documento mais recente,
Francisco de Oliveira se diz "reformista".
Mas a dúvida persiste e o mínimo que se
pode dizer é que o seu projeto é ambíguo. Fazer a crítica do PT invocando a
política marxista é hoje o melhor caminho?
Estou convencido de que não e indico
mais adiante por quê. Para falar do governo Lula, começaria observando que a
famosa continuidade entre a era Cardoso e o governo Lula é em boa parte um
mito. Basta pensar na estratégia das privatizações e em suas consequências,
além de várias outras coisas, para ver que
a relação é muito mais complicada. Francisco de Oliveira critica a reforma da Previdência, a suposta campanha de desmoralização dos funcionários, as alianças
oportunistas e o estilo autoritário do governo. Aqui só posso examinar um ou
dois pontos. A reforma da Previdência,
lançada de forma mais ou menos abrupta, mas denunciada de um modo também autoritário pela extrema-esquerda
(até se exibiram as fotos dos deputados
que votaram favoravelmente), não poderia deixar de ser discutida. É difícil justificar a posição dos que consideram a situação atual da Previdência como um
modelo a ser defendido.
Como já se disse muitas vezes, 21 milhões de assalariados quase sem nenhuma cobertura e menos de 1 milhão com a
possibilidade de uma cobertura integral:
uma desigualdade que não existe em nenhum outro país do mundo. Não vou detalhar todos os abusos. Eles parecem não
ter importância para uma certa esquerda. Os argumentos utilizados, em geral,
para recusar toda reforma, aludem à dívida, ao estímulo à demanda, à pressão
do FMI. Ora, a dívida é a dívida; será preciso resolver esse problema de algum jeito. Mas não é lembrando o volume esmagador da dívida que se vai eliminar o
problema da Previdência.
Quanto ao estímulo à demanda, que os
altos salários provocariam, é evidente
que o que se economizará cortando ou
corrigindo os abusos poderá ser redistribuído de outro modo. Sobre a posição do
FMI, pergunto-me se é bem essa a reforma dos seus sonhos (de modo sintomático, a maioria do PFL votou contra). Mas
o que parece gritante em toda essa história da Previdência, por isso ela tem muito
interesse para além do problema particular, é o fato de que a extrema-esquerda
é mais ou menos cega para o problema
da desigualdade, quando a desigualdade
vem do Estado. Tem-se a impressão de
que, para alguns, a luta da esquerda é,
sem mais, a luta do Estado contra o mercado. Ora, o que define a esquerda não é
ser a favor do Estado e contra o mercado.
O que a caracteriza e é a sua razão de ser é
a luta contra a desigualdade (o que não
significa que ela deva ser favorável a uma
utópica e nefasta igualdade absoluta). Se
a desigualdade vem do mercado ou vem
do Estado, isso define formas diferentes
de exploração ou de injustiça social, mas
não modifica o essencial.
Se a extrema-esquerda não vê ou não
quer ver o problema é porque a tradição
dominante na esquerda pensou a exploração muito mais a partir da sociedade
civil do que a partir do Estado. A exploração na sociedade civil é sempre enxergada, a que se faz por meio do Estado é
mistificada. Um pouco como ocorre,
também, no que se refere à opressão.
Conversando não só com gente de extrema-esquerda, mas com colegas de esquerda moderada, tenho às vezes a impressão de que, para eles, o dinheiro do
Estado cai do céu. De resto -isso no que
concerne à extrema-esquerda-, racionalizar as despesas do Estado é coisa reformista que não ajuda a revolução. Não
demonizemos ninguém, mas também
não angelizemos. Beber o leite da vaca do
Estado sempre foi um esporte nacional.
Com isso não quero dizer que a reforma da Previdência proposta pelo
governo, mesmo com as
modificações impostas
pelo Congresso, seja a reforma ideal. Nem nego
que haja hoje no mundo, e
também no Brasil, uma
ofensiva neoliberal que
tenta um desmonte do
Welfare State. Mas a resposta da esquerda não deve ser a de negar as dificuldades do status quo,
nem de se aferrar em todos os detalhes às formas
clássicas do Estado-previdência. As injustiças saltam aos olhos na forma
quase caricatural que ele
teve no Brasil.
Os problemas que vive
hoje o PT são os da esquerda mundial, refratados pelas particularidades
latino-americanas e brasileiras. É preciso começar pela questão
geral (e, dados os limites de espaço, não
poderei ir mais longe). Como diziam os
primeiro críticos, pré-marxistas, da economia política, precisamos "remontar
aos fundamentos". Essa recomendação é
absolutamente atual, e mais ainda no
Brasil. Fala-se de derrotas da esquerda
no século 20. Houve derrotas, em certo
sentido, porém mais do que elas, o que se
teve foi um "afundamento" de parte da
esquerda, uma espécie de caminho de
autodestruição.
É difícil justificar a posição dos que consideram a situação atual da Previdência como um modelo a ser defendido
Esse ponto é essencial para entender
onde estamos. A vitória do bolchevismo,
movimento "enérgico", mas intransigente e com tendências totalitárias desde
a origem (basta dizer que os bolcheviques -menos Lênin, é verdade, mas talvez por razões táticas- viam com maus olhos os sovietes em
1905), liquida o movimento socialista russo e
abre caminho para um
despotismo burocrático
genocidário. O resto da
historia é conhecida: o
bolchevismo serve de
modelo para os movimentos posteriores. Ele
deforma e finalmente
destrói o movimento socialista em escala mundial. Isso não significa
que tudo tenha andado
bem do lado social-democrata. (Refiro-me
sempre, bem entendido,
à social-democracia como movimento histórico-mundial, não a tal ou
qual partido que, no Brasil, tenha adotado esse
nome). A social-democracia começa com um
desastre que reforça o
bolchevismo: o partido
social-democrata alemão
apoia o Kaiser e os partidos de direita na aventura da Primeira
Guerra.
Segue-se a ruptura da ala esquerda, e
também do centro (Karl Kautsky), o
qual, no primeiro momento, ainda que
teoricamente contrário à guerra, foi incapaz de esboçar uma resistência efetiva.
A história posterior da social-democracia contém o pior e o melhor. Sem falar
no episódio sangrento da repressão da
extrema-esquerda alemã (o qual, não esqueçamos, ocorre sob um partido já desertado pelas grandes figuras do centro),
a social-democracia foi algumas vezes
colonialista (Guy Mollet, Bernstein já o
era) e muitas vezes se perdeu numa política de um reformismo cada vez mais indiscernível da política do centro ou mesmo da direita. Porém, ao mesmo tempo,
a social-democracia teve um compromisso com as instituições democráticas e
com a luta pela sua efetivação, que se fez
aliás muito lentamente. Ela impulsionou
-com os partidos comunistas, é verdade, mas ela encarnava melhor esses
avanços- as principais reformas sociais
que o século conheceu (jornada de oito
horas, cobertura de saúde, aposentadoria etc).
Contrariamente a uma opinião tradicional que ainda faz estragos entre nós, a
social-democracia, com todos os seus erros e insuficiências, se revelou muito melhor que o bolchevismo.
A experiência do século 20 não tem
apenas como resultado a derrubada do
mito do bolchevismo. O marxismo -de
que o bolchevismo se afastava entretanto
consideravelmente- fica também abalado. O socialismo revolucionário marxista (e também o bakunista) se revela
não o parteiro do homem novo e da sociedade livre, mas do despotismo e do
genocídio. Nada nos leva a crer que o resultado seria diferente se revolução houver -houvesse- nos países mais avançados. Nesse sentido, é preciso abandonar as velhas ilusões revolucionárias. Isso não significa proscrever a violência
como contraviolência em todas as situações. Nem significa proscrever as quase-violências que as sociedades democráticas normalmente admitem. Significa sim
dizer que esse não é o caminho fundamental.
A social-democracia
se revelou, com
todos os seus erros,
muito melhor que o bolchevismo
De resto, não se trata de abraçar sem
mais o "reformismo", mas de encontrar
um caminho entre o "reformismo" e o
"revolucionarismo". A política marxista
cai não só no seu projeto, mas já na sua
análise da política. O quadro das análises
políticas de Marx, por brilhante que seja,
não dá conta da realidade do século 20.
Insisti em outra ocasião que um marxista não pode pensar o que significa um
déspota do tipo Saddam Hussein; ele o
vê como simples epifenômeno da totalidade dominada pelo capitalismo.
Esse erro grave, eu dizia, se deve ao fato
de que falta ao marxismo a noção ou a
significação "despotismo" (com exceção
do "despotismo oriental"). Ora, o século
20 foi dominado por déspotas, de direita
e de "esquerda". Nesse sentido, quem
parte apenas das categorias de Marx -e
elas dominam, bem mais do que se supõe, o pensamento da maior parte da esquerda- simplesmente não "vê" o que
ocorreu no século. A observar, mais ou
menos na mesma ordem de considerações, que um livro como "O 18 Brumário
de Luís Bonaparte", de Marx, que muitos
tomam como uma verdadeira Bíblia para a análise política, se engana, essencialmente, nas suas previsões sobre os rumos que tomaria a história mundial.
O "18 Brumário" prevê governos bonapartistas para os países capitalistas avançados. Ora, depois do segundo império,
fora o interregno de Vichy, houve 130
anos de república democrática na França. A mesma coisa, sem exceção, para a
Inglaterra. E o que não foi república democrática, não foi autocracia bonapartista, mas ditadura genocidária de direita
ou de "esquerda". Falo, no entanto, da
política de Marx, não da crítica marxiana
da economia política.
Se faço essas observações sobre o déficit político do marxismo, não nego a riqueza nem a atualidade relativa da crítica
marxiana da economia política. Marx e
Sismondi, no século 19, Keynes e Kalecki,
no século 20, mostram que o sistema
-se abandonado a si mesmo- tem
uma tendência essencial para o desequilíbrio, a desigualdade social e a crise.
Apesar do que dizem os neoliberais, aliás
hoje já meio na defensiva, essas teses resistem à experiência histórica. É de resto
o que, em boa medida, os mais lúcidos
dentre os economistas ligados às instituições financeiras internacionais vêm, de
um modo ou de outro, reconhecendo.
Uma falsa perspectiva (embora não seja só isso) fez com que a primeira vaga
das lutas da esquerda, a que cobre os séculos 19 e 20, se afundasse num abismo
de ditadura e violência. Em vez de chorar
pretensas derrotas e se aferrar a antigos
dogmas, é preciso preparar -na teoria e
na prática- uma segunda vaga. Uma segunda vaga da esquerda mundial talvez
esteja em formação, nesses primeiros
anos do século.
Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor,
entre outros livros, de "Marx - Lógica e Política"
(Editora 34).
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