São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Jorro de sustos

Ranking que comenta os principais trabalhos de Stephen King e um novo romance do mestre da literatura de horror são lançados no Brasil

Marçal Aquino
especial para a Folha

Harold Bloom detesta a literatura de Stephen King. Stanley Kubrick a respeitava e serviu-se dela para criar um filme apontado por muita gente como um clássico do cinema de horror contemporâneo, "O Iluminado" (1980). Um dos escritores mais lidos em todo o mundo e um dos mais adaptados pelo cinema, Stephen King é capaz de atrair, com a mesma paixão, devotos e detratores. Seu território pode ser visitado em dois livros recentes, "Buick 8" e "O Essencial de Stephen King", este, na verdade, um panegírico escrito por Stephen J. Spignesi. Um livro de um fã do escritor para outros fãs. Para definir o "essencial" na obra de King, Spignesi se rendeu ao modismo das listas e criou um ranking com as 101 criações que considera mais importantes, misturando romances, contos, filmes, séries, artigos e até mesmo prefácios escritos pelo autor de "Dança Macabra". Obviamente, a subjetividade dá o tom ao livro. Spignesi explica as razões (ou idiossincrasias pessoais) que o levaram a escolher e a classificar cada item de sua lista, apoiando-se em critérios pessoais quase insondáveis, como "narrativa excitante e irresistível; personagens memoráveis, intrigantes e, acima de tudo, honestos; beleza, graça e poder da linguagem". Ele complementa suas "análises" com uma sinopse do enredo e com comentários e curiosidades que cercam cada obra, além de informações sobre adaptações cinematográficas e para a televisão. O resultado é um livro de alcance limitado, de interesse mais direto para quem já é leitor de Stephen King, que poderá até mesmo cotejar escolhas e classificações (a propósito: Spignesi coloca no topo de sua lista o romance "A Coisa", reservando para "O Iluminado" um modesto terceiro lugar). Para os que ainda não adentraram o universo de King, a obra de Spignesi equivale a tentar visitar uma cidade examinando apenas seu mapa. É sempre melhor conhecer um autor por seus livros, e não por aquilo que se escreveu sobre eles.

Assustar os leitores
"Buick 8", nesse sentido, é exemplar, pois retoma temas e tramas caros à literatura de Stephen King. Desde sua estréia com "Carrie" (livro que serviu para outra adaptação eficiente pelo cinema, dirigida por Brian De Palma), King maneja em seus livros alguns dos componentes clássicos das narrativas de horror, entre eles as visitas alienígenas e os objetos inanimados que ganham vida e se rebelam. O objetivo central, como o próprio King admite, é contar uma história. E, de preferência, assustar os leitores.
Como no livro "Christine", de 1983 (39º colocado no ranking de Spignesi), em que um Plymouth com vida própria espalha destruição e morte, "Buick 8" também tem um carro como personagem. Alternando blocos narrativos entre o passado e o presente, o livro narra as peripécias dos policiais do regimento D, da Pensilvânia, que um dia apreendem um Buick abandonado num posto de gasolina por um personagem misterioso. Recolhido a um galpão, o carro é mantido em segredo pelos policiais, enquanto passa a desafiá-los e a atemorizá-los com os fenômenos que provoca. Entre tempestades elétricas inexplicáveis e quedas repentinas de temperatura, o veículo se dedica a deglutir desavisados e a regurgitar seres estranhos e repugnantes, como se fosse uma porta de entrada e saída para outra dimensão. A história é contada a Ned, um novato no regimento, cujo pai, também policial, morreu em circunstâncias não de todo esclarecidas, e sua morte pode estar vinculada ao Buick, que ele apreendeu 12 anos antes.
Em geral, a eficiência do horror como gênero literário está ligada, mais do que às preocupações formais, à capacidade de convencimento dos leitores pelo próprio enunciado das narrativas, já que é um gênero que embaralha dados da realidade com elementos que roçam perigosamente o inverossímil. Três décadas depois de sua estréia literária, Stephen King demonstra que conhece claramente o seu público e que está disposto a continuar dando o que se espera dele. Nenhum susto a mais.
Sua prosa é direta, informativa, pouco afeita a qualquer rebuscamento estilístico. Um texto quase trivial no qual impera a imaginação e que exige do leitor sobretudo a cumplicidade de acreditar naquilo que está sendo contado. O que dá sustentação a "Buick 8", assim como na maioria dos livros de King, é a condução habilidosa da trama, temperada por reviravoltas e revelações repentinas. Uma narrativa típica, que certamente encontrará lugar na lista de preferências de fãs do escritor como Stephen Spignesi.
Uma curiosidade: "Buick 8" era o livro que Stephen King escrevia em 1999, quando sofreu um grave atropelamento, e só pôde ser retomado em 2002. Essa coincidência, a que o escritor não dá grande importância, conforme relata no posfácio, é na verdade bem mais assustadora do que qualquer outro elemento ficcional do livro.


Marçal Aquino é escritor, autor de, entre outros, "Cabeça a Prêmio" e "Famílias Terrivelmente Felizes" (Cosac & Naify).


Buick 8
384 págs., R$ 44,90 de Stephen King. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Ed. Objetiva (r. Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, RJ, tel. 0/xx/21/ 2556-7824).

O Essencial de Stephen King
376 págs., R$ 39,90 de Stephen J. Spignesi. Trad. Fernanda Monteiro dos Santos. Ed. Madras (r. Paulo Gonçalves, 88, SP, CEP 02403-020, tel. 0/ xx/11/ 6959-1127).



Texto Anterior: + política: A esquerda na encruzilhada
Próximo Texto: Virilidade, valentia e violência
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.